quarta-feira, janeiro 31, 2024

27 CURTAS E UM MÉDIA-METRAGEM BRASILEIROS



Tem sido no mês de janeiro de cada ano que vejo mais curtas-metragens brasileiros. Isso acontece geralmente por ocasião da curadoria de duas associações de críticos, a ABRACCINE e a ACECCINE, de que faço parte. Faço o possível para conseguir dar conta de ver todos e não me contento em apenas ver: quero também escrever pelo menos um parágrafo que seja, no calor do momento. Estes foram os pequenos textos que escrevi ao longo do mês sobre os 28 filmes vistos. Uma boa safra.

AMOR BY NIGHT

Em se tratando de um filme que envolve uma rádio, eu diria que me falta sintonia para que possa compreender melhor o que o filme diz, inclusive compreender o áudio mesmo. Talvez tenha ficado um pouco surdo ao longo dos anos. Mas é inegável a beleza da direção de arte e da fotografia de AMOR BY NIGHT (2022), de Henrique Arruda, com tantos tons de cores, especialmente o verde, que mais remete à ficção científica, de encher os olhos. Na trama, uma locutora espacial vive uma vida dentro de uma cápsula, num futuro não especificado. A personagem tem uma ligação visual com a sci-fi retrô, com a tecnologia musical antiga e com a disco. Enquanto isso, o filme aos poucos nos apresenta às tristezas que ela parece querer negar ou evitar.

OS ANIMAIS MAIS FOFOS E ENGRAÇADOS DO MUNDO

Neste curta somos apresentados a um homem de cerca de 70 anos que trabalha como camareiro de um motel. Seu diferencial é que ele gosta de gravar áudios dos momentos íntimos dos clientes. Ele vende os áudios para um conhecido, que se excita com os sons. Além disso, o funcionário do motel sabe vender o produto. Acho interessantes esses filmes que exploram os desejos mais íntimos e taras bem peculiares das pessoas. Pena que este aqui eu vi com mais distanciamento, o que não quer dizer que tenha sido ruim. Até porque OS ANIMAIS MAIS FOFOS E ENGRAÇADOS DO MUNDO (2023), de Renato Sircilli, carrega um clima de suspense e de algo inesperado até o final.

CABANA

Um trabalho admirável este curta que se passa quase que inteiramente dentro de uma cabana e que chama a atenção quando percebemos que não há som nenhum. A voz das duas mulheres é substituída por legendas e a situação que é apresentada faz lembrar o Brasil escravocrata do século XIX. Por outro lado, a pessoa que surge é guerrilheira da revolução cubana, e há uma situação delicada e perigosa. A conversa entre as duas mulheres é tensa, e o forte está na expressividade das duas atrizes, cujas reações enfatizam a sensação de perigo. Incrível o uso da iluminação e das sombras no local.

CASA DE BONECAS

Creio que seja o caso de filme em que se embarca ou não na viagem. Há a questão de atrair em especial o público LGBTQIA+, mas eu diria que a essência de CASA DE BONECAS (2023), de George Pedrosa, pelo menos visualmente falando, é explorar o seu aspecto de pesadelo, de construção de um mundo em cor de rosa e com um misto de homens, animais e peças de metal. Não sei se entendi, mas a própria sinopse oficial já deixa o filme em aberto: "Nós, três profetas imateriais de rosa, que seduzem com corpos brilhantes e desejos sombrios, sempre estaremos dentro do coração um do outro. Dia após dia, nós mudamos e ficamos muito mais fortes."

CAMA VAZIA

Belo, incômodo, raivoso e lúcido curta que traz reflexões sobre o quanto a ciência tem prolongado não necessariamente a vida, mas o sofrimento do idoso doente ou simplesmente do doente. Consequentemente, os hospitais lucram mais, assim como os profissionais de medicina envolvidos. Corajoso o texto falado por Bernadet, que na época da rodagem foi hospitalizado e, junto com Rogério, decidiram fazer esse filme com um custo quase zero. CAMA VAZIA (2023), de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernadet, é uma dessas obras para se deixar um gosto amargo na boca. Se acontece isso vendo-o em casa, imagina numa sala cheia de festival.

A EDIÇÃO DO NORDESTE

Filme de edição, como já dá a entender pelo título. A tela preta com informações nos anuncia sobre o ano da criação do conceito do nordeste (1919), da separação por regiões (1941) e em seguida houve a criação do nordeste pela elite, sendo que o cinema teve um papel importante. A EDIÇÃO DO NORDESTE (2023), de Pedro Fiuza, não cita em palavras, mas mostra também a importância da literatura (Jorge Amado, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, José Lins do Rego etc.), que veio antes do cinema para ajudar a trazer essa ideia que mais buscou colocar cada pessoa nascida na região no mesmo saco. O filme tem uma montagem ótima, separando por temas: o cangaço, a seca, o êxodo rural, o recomeço de uma nova vida no Sudeste etc. É gostoso ver os tantos clássicos dialogando entre si dentro desses temas.

CAIXA PRETA

Um filme que necessita de duas coisas: 1) uma entrega do espectador para que entre na viagem proposta e se veja em transe; e 2) um pouco de informação extra que possa auxiliar na compreensão de certas cenas, certos áudios. Acredito que o momento de que mais gostei foi do áudio mais longo, com a tela toda preta. Podemos tirar os olhos da tela e nos concentrar no som. Já a cena do culto evangélico com influências africanas bem acentuadas, achei interessante, mas não sei se a intenção de vê-lo é de observação ou para entrar em transe, como muitos dos crentes no vídeo. É corajoso da parte dos diretores Saskia e Bernardo Oliveira fazerem um filme tão experimental com cerca de 50 minutos, já que o média-metragem é o mais marginal dos formatos, embora possa conseguir uma ou outra sessão num cinema alternativo. (Se bem que, justamente por causa de suas peculiaridades, ele acaba chamando a atenção de um grupo de cinéfilos.) CAIXA PRETA (2022) é um filme que busca a violência estética como forma de enfrentar a violência e o racismo e de certa forma consegue, mas a questão é: vai chegar aos herdeiros dos senhores de engenho?

CÉU

A simplicidade deste documentário carrega desde o início uma interrogação quanto à pessoa que é citada, elogiada e louvada por suas companheiras, louceiras na Comunidade Quilombola Serra do Talhado Urbano, em Santa Luzia, interior da Paraíba. Como não sabia nada sobre Maria do Céu, CÉU (2022), de Valtyennya Pires, acabou me surpreendendo e me comovendo. Infelizmente vivemos ainda numa sociedade doente e que deve levar um bom tempo para ser curada, se é que isso vai acontecer. E o símbolo de Céu, como uma flor num vaso, como aparece no cartaz, é representativo do que há de bom e belo neste mundo.

PROCURO TEU AUXÍLIO PARA ENTERRAR UM HOMEM

Este filme de Anderson Bardot já me ganhou pelas primeiras imagens, com um preto e branco muito expressivo. Mas há algo de misterioso e cruel que também muito me chama a atenção, embora tenha achado a trama confusa. De certa forma é um convite para rever o filme, que recebemos com muito prazer. Se o visual salta aos olhos, também impressionam as cenas envolvendo rituais desesperados de bruxas. Há um simbolismo envolvendo a opressão à transexualidade, mas o filme parece transcender a militância, sem, no entanto, deixá-la de lado. Em alguns momentos, PROCURO TEU AUXÍLIO PARA ENTERRAR UM HOMEM (2023) me fez lembrar É DIFÍCIL SER UM DEUS, de Aleksei German, pela riqueza plástica, mas também pela crueldade e atmosfera mitológica de certas cenas.



CORAÇÃO DA MATA

Na cidade de Nazaré da Mata, no interior de Pernambuco, um grupo de mulheres se prepara para festejar o primeiro maracatu rural 100% feminino, com as mulheres desempenhando os papéis, inclusive, dos reis e dos caciques. Uma das coisas mais bonitas de CORAÇÃO DA MATA (2022), de Camila Martins, nem está no maracutu, na festa em si, que só aparece praticamente no final, mas no modo como a câmera adentra as casas humildes dessas pessoas, flagrando as crianças comendo ou tomando banho, a relação de afeto com os bichos, a decoração muito simples, as paredes precisando de uma mão de tinta, a rotina de ir e voltar da escola, de visitar as amigas, de conversar com uma mulher idosa, de perceber o quanto a pobreza também tem uma ligação com a escolaridade, que muito provavelmente tem relação com a má alimentação, embora esse tema não seja tratado aqui.

ELA MORA LOGO ALI

Muito bom ver que o cinema brasileiro está mostrando mais sua cara, sendo mais plural também no que se refere a apresentar pessoas de estados do país que são normalmente pouco vistos. Em ELA MORA LOGO ALI (2023), de Fabiano Barros e Rafael Rogante, temos a chance de ver a história de uma mulher simples de Rondônia que passa o dia vendendo chips na rua e quando volta para casa cuida com carinho do filho com deficiência. Mas o mais interessante da narrativa é a relação que ela estabelece com uma moça que está lendo muito entretida e feliz um livro no ônibus. A mulher, que não sabe ler, fica admirada com o poder que aquelas palavras fazem e puxa conversa; a moça começa a contar a história do livro, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. O filme passa a seguir uma estrutura que lembra um pouco As Mil e uma Noites, já que o filho fica feliz sempre que a mãe traz um pouco da história do romance, que a moça contara para ela. O final me fez lembrar minha própria relação com a descoberta da leitura, uma das minhas memórias mais remotas da infância. Acredito que este filme seria ótimo se exibido em escolas, especialmente as que trabalham com educação de jovens e adultos.

O CAVALO DE PEDRO

Pra quem gostou de VENTO SECO (2020), O CAVALO DE PEDRO (2023) tem um gostinho parecido do longa do mesmo diretor, Daniel Nolasco. E isso é muito legal. Mas é preciso tirar as crianças da sala. Há o humor desavergonhado, o brincar com a exploração dos corpos masculinos pela visão do desejo da câmera, o sarro que tira com a masculinidade até de uma personalidade famosa por ser mulherenga, como é o caso de D. Pedro I, e há o sexo explícito. Pois é, quando achei que o filme ia acabar lá vem aquela cena para maiores de 18 anos. É interessante como o cinema gay masculino tem se tornado mais ousado do ponto de vista da sexualidade quase na mesma proporção que o cinema hétero foi ficando mais tímido. No mais, O CAVALO DE PEDRO tem um rigor formal que chama a atenção, além de um belíssimo uso de cores.

PULMÃO DE PEDRA

O que faz de PULMÃO DE PEDRA (2022), de Torquato Joel, um filme que ultrapassa o registro mais convencional de um documentário sobre um garimpeiro que sabe que tem uma vida curta pela inalação da poeira de seu próprio trabalho é o modo inventivo como a câmera cria as imagens da caverna, que coincidem ou brincam com a própria criatividade do personagem retratado, Joãozinho, um homem com alma de poeta. É um filme que tem mais pedra do que homem, mas talvez isso represente o quão pequeno é o homem para a natureza, até mesmo o homem rico que emprega o pobre que trabalha no garimpo.

QUEBRA PANELA

Eu já tenho uma boa vontade natural quando vejo que o filme é pernambucano. Já vi tanta coisa boa produzida nesse estado que já crio uma boa expectativa. Este QUEBRA PANELA (2022), de Rafael Anaroli, é muito inventivo, brinca com o fazer cinema através do olhar de quem está de fora. No caso, uma senhora muito humilde que vive de fazer as unhas das pessoas do bairro. Acontece que na sua rua estão filmando uma produção para cinema. E a ordem na vizinhança é que os locais colaborem nos momentos das filmagens. O filme tem umas tiradas muito interessantes, brincadeiras metalinguísticas como na cena da menina olhando o quadro. Há também um motivo de se estar feliz com os astros e estrelas que foram se formando em Pernambuco e no Brasil, como é o caso de Irandhir Santos, que é apenas citado, mas também visualizado na busca do celular da protagonista.

MOVENTES

Gosto do efeito de imagens bem pensadas (a janela clássica é muito bonita) aliadas a uma narração lírica. MOVENTES (2023), de Jefferson Cabral, é curtinho: na hora que a gente tá criando gosto o filme acaba. Mas falo isso como elogio. As imagens são límpidas, e lembram às vezes o cinema clássico japonês (talvez por causa do pequeno altar), noutras, há imagens que causam certa angústia, como a visão em tons azuis da pessoa que olha para a praia. Enquanto isso, na fala do patriarca que se muda para São Paulo, há algo que desperta um sentimento que faz lembrar ARÁBIA, aquele sentimento de pensar uma pequena revolução aproveitando momentos de greve de grupos de trabalhadores.

REMENDO

Este filme passou por Roterdã e venceu o prêmio de melhor curta em Gramado. Chamou a atenção entre críticos e cinéfilos. Achei inventivo o modo como lida com a comunicação, que por vezes é contemporâneo, mas às vezes remete ao passado analógico. Aliás, as fotos antigas e em preto e branco que de vez em quando aparecem quando certo personagem é citado é outro detalhe interessante, assim como a paquera com o cinema de horror – o protagonista parece uma espécie de vampiro, dentro daquele lugar onde dorme, e há outras passagens bem intrigantes. Na sinopse de REMENDO (2023), de Roger Ghil, Zé é um homem preto de meia idade que procura amor. Aí ele conhece uma mulher que se muda para o prédio de sua mãe. Não que esse aspecto narrativo mais convencional seja algo que o filme pareça se interessar tanto assim.

RAMAL

Tive certa dificuldade com RAMAL (2023), de Higor Gomes, embora o ache plasticamente bem bonito, além de dar voz a pessoas da periferia. Acontece que quando vejo esses garotos andando de motocicleta empinada já fico logo irritado. Talvez por simbolizar um tipo desnecessário de correr perigo e de se divertir. E ainda podem bater num carro ou em alguma pessoa. O engraçado é que no começo eu achei que o filme ia fazer algum tipo de crítica à masculinidade dos personagens, mas não se trata disso. E de certa forma isso é bom, já que o cinema é um meio que mais abraça do que julga. O filme caiu nas graças da crítica, ganhando prêmios em festivais importantes, como o de Curitiba e o de Vitória.

MÃRI HI – A ÁRVORE DO SONHO

Este filme de Morzaniel Ɨramari é um encanto desde as primeiras imagens ao som da fala de um yanomami, que só será visto ao final do filme. As palavras têm uma doçura natural, mas o que mais encantam são as imagens, muitas delas buscando reproduzir os sonhos daquele povo. E para isso o cineasta yanomami busca técnicas muito interessantes para trazer essa impressão onírica, como nas cenas de clarão das imagens da floresta. Há uma espécie de barreira que impede que vejamos mais desse povo, de sua cultura e de seu modo de pensar o mundo. E vejo isso como algo que depõe a favor de MÃRI HI – A ÁRVORE DO SONHO (2023), algo que o torna misteriosamente atraente.

A ALMA DAS COISAS

Certos documentários (a maioria, provavelmente) são vistos com um olhar de distanciamento, mas um olhar de curiosidade, especialmente quando seu objeto de estudo passa a chamar a atenção do espectador. Não sou um entusiasta do carnaval carioca, por exemplo, dos desfiles das escolas de samba. Por isso, fiquei surpreso quando os diretores de A ALMA DAS COISAS (2023), de Douglas Soares e Felipe Herzog, começaram a me deixar muito intrigado com este curta, que mostra o começo da criação de um personagem central de uma escola de samba, passando por várias etapas, inclusive a apresentação na Sapucaí. A narração do personagem chama a atenção para outros aspectos, quase filosóficos do ser.



BENÇA

Este BENÇA (2023) acabou me fazendo lembrar dos "filmes de prisão" de Aly Muritiba, que, coincidência ou não, também é de Curitiba. Não à toa, Mano Cappu está entre os diretores da série IRMANDANDE, série de prisão da Netflix. Este curta é simples, mas se percebe o amor no modo como os personagens, em sua maioria presidiários, são tratados no dia de visita, o dia que eles consideram sagrado. Um deles está triste que a namorada o largou; outro porque é o terceiro aniversário de seu filho pequeno na prisão; e a há outro caso especial. Tudo passa muito rápido nos 15 minutos de duração, mas isso pode ser visto como uma qualidade.

DINHO

Estou gostando de acompanhar a trajetória de Leo Tabosa. Este é o quarto que vejo dele, após o sucesso de BAUNILHA (2017), NOVA YORK (2018) e MARIE (2019). Seus filmes curtos, especialmente os de ficção, tem uma estrutura mais clássica e já parecem feitos para serem apreciados como um longa-metragem mais comercial, no bom sentido do termo. Até um elenco profissional ele já usa. Em DINHO (2023), temos Hermila Guedes e Renata Carvalho, excelentes, como as mães substitutas de um menino órfão cheio de imaginação. O filme não aprofunda muito a relação do menino com o coleguinha nem dele com suas tias, mas o pouco que é mostrado me pareceu muito amoroso e bonito. Ver na telona deve ser bem legal.

LAPSO

Como eu acho raro ver histórias de amor em curtas-metragens brasileiros, fiquei bastante feliz com LAPSO (2023), de Caroline Cavalcanti, que conta uma história da juventude negra de Belo Horizonte, mas também uma história de pessoas que se comunicam pela linguagem de sinais - a personagem de Beatriz Oliveira é surda. A diretora, Caroline Cavalcanti, tem trabalhado com filmes sobre pessoas com essa deficiência desde que se tornou também deficiente auditiva há cinco anos. Na trama, dois jovens se conhecem quando precisam cumprir pena de prestação de serviços numa biblioteca após praticarem atos de vandalismo. O filme tem alguns dos deliciosos clichês de comédias românticas (destaque para a cena do aniversário), mas tudo transposto com muita propriedade para a realidade de seus personagens. O filme foi selecionado para exibição no Festival de Berlim de 2024.

POR QUE NÃO ENSINARAM BIXAS PRETAS A AMAR?

Não há dúvidas de que o relato que ouvimos neste filme é impactante. Se a ação fosse contada com atores interpretando de maneira explícita, seria uma daquelas obras que trafegaria algo entre o exploitation e o realismo brutal, dada a violência que o narrador sofre. O que talvez tenha me incomodado um pouco em POR QUE NÃO ENSINARAM BIXAS PRETAS A AMAR? (2023), de Juan Rodrigues, foi o recurso de usar imagens aparentemente saídas de uma gravação em VHS (mas que, por alguma razão, estão com a data de 2022, ou talvez 2023). É um recurso que já estou vendo com certa frequência em alguns filmes em curta-metragem. Não sei se cada imagem foi pensada para cada palavra dita ou se as imagens como um todo funcionam como uma espécie de contraponto. Ou seja, enquanto as imagens mostram momentos de paz e tranquilidade, a narração fala de um pesadelo ocorrido. Talvez seja isso: talvez a intenção seja mostrar o quanto uma ação tão brutal acaba sendo esquecida diante das imagens aparentemente pacíficas de uma viagem a uma praia. Como se os violentadores merecessem o perdão.

THUË PIHI KUUWI – UMA MULHER PENSANDO

Um filme que funciona muito bem como uma dobradinha com MÃRI HI – A ÁRVORE DO SONHO, de Morzaniel Ɨramari. Ambos abordam, de diferentes prismas, os efeitos que uma determinada planta da floresta amazônica traz para os Yanomamis, em rituais religiosos. Em THUË PIHI KUUWI – UMA MULHER PENSANDO (2023), de Aida Harika, Edmar Tokorino e Roseane Yariana, a planta tem seu nome citado diversas vezes: "yãkoana". E ela é preparada por um homem, enquanto uma jovem (a narradora) assiste e faz conjecturas sobre o poder e os efeitos dessa planta. É um filme com uma simplicidade encantadora e imagino que a tendência é que essas produções se tornem melhores e mais ambiciosos.

PIRENOPOLYNDA

Achando interessante essa leva de filmes LGBTQIA+ vindo de Goiânia. Ao que parece, a cidade, e o estado também, apesar de ter uma tradição aparentemente mais machista da música sertaneja e da cultura que a circunda, possui uma cena gay bem ousada. Este PIRENOPOLYNDA (2023), de Izzi Vitório, Tita Maravilha e Bruno Victor, tem mais de 20 minutos e se fosse só a conversa das três travestis enquanto preparam comida, eu já ficaria satisfeito. Não sei se gosto tanto quando o filme se transforma em outra coisa - em outras coisas, na verdade. Como se fossem vários filmes num só, mas com um orgulho travesti da protagonista que dá organicidade ao todo. Há também um belo cuidado com os aspectos visuais, com uso de split screens, diferentes câmeras e cores vivas em cenas externas que valorizam a fotografia.

QUINZE PRIMAVERAS

Bastante inventivo o modo como o diretor constrói sua história, por assim dizer. Dentro do formato documentário, temos uma mulher travesti falando daquilo que lhe incomodou quando jovem, quando sofreu preconceito e resistência por tentar ser quem ela era. Mas o que achei mais interessante em QUINZE PRIMAVERAS (2022), de Leão Neto, foi o modo como ele chama a atenção para um certo álbum de retratos, para uma fotografia em particular. E depois há cenas de festas de aniversários de 15 anos de moças feitas em câmeras VHS. Em vários momentos ficamos nos perguntando em que sentido aquelas imagens se associam à mulher que está sendo entrevistada. E esse não saber faz parte do prazer e da graça de ver o filme.

BARRA NOVA

Tenho certa dificuldade de manter minha concentração em animações sem diálogos que acabam por trafegar caminhos de natureza onírica. Mas não há como não ficar encantado com a beleza, principalmente do ponto de vista visual mesmo, de BARRA NOVA (2023), de Diego Maia, que nos apresenta a uma garotinha vivendo uma experiência que foi definidora para sua vida. O título do filme se refere a uma praia cearense que tem a intersecção entre o rio e o mar. Então, o que achei mais bonito foram detalhes, como o vento, o mar, o olhar das crianças, o encontro com um urubu e uma baleia morta, o olhar carinhoso dos pais da menina. Às vezes entender é superestimado.

NOTURNO

Estou gostando de ver Tavinho Teixeira dando preferência, sempre que possível, para o cinema de horror. Ele teve um papel de grande destaque nos ótimos longas O CLUBE DOS CANIBAIS e PROPRIEDADE, esteve no filme em segmentos O NÓ DO DIABO, apareceu em um curta bacana recente chamado NÃO EXISTE PÔR DO SOL, e em NOTURNO (2023), de Irene Bandeira, ele é um dos poucos sobreviventes de um apocalipse zumbi. Ele vive olhando o que acontece pelas ruas com suas câmeras e até conversa com alguns dos zumbis, que têm nomes e respeito por parte do protagonista. Não sei se gosto tanto da conclusão, mas é um desses filmes que já conquistam pelo ator e pela temática. Para quem é de Fortaleza, é legal reconhecer alguns prédios.

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