domingo, setembro 04, 2022

ERA UMA VEZ UM GÊNIO (Three Thousand Years of Longing)



“What is desire and what is contentment? What is love? How do you define love? What are the gestures that make it clear to you that there is love?”
(George Miller, em entrevista ao Indiewire)

A teoria dos autores ou política dos autores é algo sempre tentador para os cinéfilos que acompanham com atenção a carreira de grandes diretores. E por isso quando um deles parece fazer algo um pouco diferente do que esperávamos, tentamos compreender suas motivações e as conexões de tal obra com as anteriores. Curiosamente, procurando pelo nome de George Miller aqui no blog para ver quantos filmes dele foram citados, dei de cara com uma afirmação minha a respeito de seu segmento para NO LIMITE DA REALIDADE (1983) em que eu dizia: “Não deixa de ser curioso o fato de o melhor dos episódios partir das mãos do diretor menos criativo da turma.” Isso é imperdoável, mesmo levando em consideração que os demais diretores do filme sejam Steven Spielberg, Joe Dante e John Landis. Na época que eu escrevi isso ainda não existia a obra-prima MAD MAX – ESTRADA DA FÚRIA (2015) e eu não tinha revisto os dois primeiros filmes do herói mais recorrente da filmografia do cineasta. Por isso, perdoem minha ignorância.

De todo modo, talvez o filme que faça uma conexão mais próxima com o novo ERA UMA VEZ UM GÊNIO (2022) seja justamente o que eu ainda não vi de Miller, AS BRUXAS DE EASTWICK (1987), que trata da questão do desejo e suas consequências. O novo filme seria mais elaborado do ponto de vista filosófico, pois, imagino eu, usar a conversa entre duas pessoas sábias e inteligentes para refletir sobre a ideia do desejo recebido magicamente como algo perigoso a partir de experiências, histórias e até piadas dá ao filme mais munição para explorar o assunto de forma aprofundada.

ERA UMA VEZ UM GÊNIO conta a história de uma narratologista (Tilda Swinton) que, em viagem para Istambul para uma de suas palestras, compra um vidrinho que chama sua atenção em um antiquário. Ao chegar no quarto do hotel e esfregar o objeto para tirar um pouco da sujeira, sai um enorme e assustador gênio (Idris Elba), que necessita que ela faça três pedidos para que ele consiga, enfim, sua liberdade, depois de passar milhares de anos preso em recipientes minúsculos.

A história parece ser muito simples e muito familiar. E aparentemente infantil até. E talvez esse seja um dos motivos de haver várias cópias dubladas do filme por aí. Talvez tenham pensado se tratar de uma fantasia quase infantil, quando na verdade o que temos é algo bem adulto, não apenas por causa do sexo, da nudez e da violência, mas também, principalmente, por causa dos diálogos. Assim que a personagem de Swinton recebe a proposta, ela fica logo ressabiada, pois, especialista em narrativas, sabe que sempre há consequências para esse tipo de pedido. Nós, cinéfilos, também sabemos, mas talvez tenhamos mais intimidade com viagens no tempo e suas consequências desastrosas. (Aliás, quando o gênio falou sobre a história do pedido, a primeira coisa que pensei foi poder voltar no tempo.)

A conversa do gênio com a narratologista rende muitas histórias paralelas e é nessas histórias que o filme se enche de uma beleza visual fantástica – o diretor de fotografia John Seale (MAD MAX – ESTRADA DA FÚRIA; SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS) estava aposentado e Miller conseguiu tirá-lo da aposentadoria para que ele o ajudasse a materializar essa história cheia de tintas coloridas e exóticas, com subtramas passadas na antiguidade. A história que mais me surpreendeu foi a que traz Salomão e a Rainha de Sabá, isso porque ela traz um Salomão cheio de truques de magia, a ponto de ser o primeiro a encarcerar o gênio. Haverá outras histórias fantásticas, como a do herdeiro do trono que é obcecado por mulheres grandes; ou a do relacionamento do gênio com uma mulher casada e a obsessão dela por adquirir a maior quantidade de inteligência possível.

ERA UMA VEZ UM GÊNIO talvez tenha um problema de ritmo ou de montagem – por vezes parece ter a duração maior do que tem –, mas é uma prova de que Miller é um dos cineastas mais inventivos e surpreendentes da atualidade. Ele consegue passar por caminhos que parecem distantes um do outro, indo desde uma forte dedicação a sua maior criação (o universo Mad Max), passando por animações sobre pinguins, uma história sombria sobre um porquinho, uma comédia envolvendo bruxaria e um melodrama tocante sobre uma doença rara de uma criança.

Por que motivo ele escolheria fazer um filme sobre um gênio da lâmpada e sua relação com uma mulher solitária antes de lançar FURIOSA (2024), que, imagina-se, seja um filme tão pouco verbal e tão visual quanto MAD MAX – ESTRADA DA FÚRIA? A mais fácil das respostas seria dizer que é por ser mais barato e a produção custar menos. E por mais que seja um filme visualmente lindo, há um interesse em demonstrar o amor pela velha e boa arte de narrar histórias. ERA UMA VEZ UM GÊNIO é uma declaração de amor à narrativa clássica, mas talvez seja principalmente uma história de amor, com ênfase nas duas palavras: "história" e "amor".

+ DOIS FILMES

O DEBATE

A estreia na direção de longas-metragens de Caio Blat com O DEBATE (2022) é de certa forma bem discreta: temos um filme pequeno com basicamente dois atores discutindo em duas linhas temporais distintas. Debora Bloch e Paulo Betti são um casal separado que trabalha junto em uma redação dum telejornal durante os debates acirrados para presidente da república. Disputam o cargo o presidente (negacionista) e o ex-presidente. Os nomes não são citados, mas nem é preciso. O filme se divide em dois momentos, o presente, 2022, e o passado, durante o início da pandemia, em 2020, quando a relação dos dois começa a se deteriorar. Em ambos os momentos, é possível ver que ela está mais à esquerda e ele é um pouco mais ao centro. O roteiro escrito a quatro mãos por Guel Arraes e Jorge Furtado passa a impressão de que cada um pode ter escrito as falas de cada personagem. Será?

ENNIO, O MAESTRO (Ennio)

Linda celebração da vida e da obra de um dos maiores gênios da história do cinema e da música. Acompanhamos, através de depoimentos do próprio Ennio Morricone sua história de vida, seu início fazendo arranjos para artistas da RCA e depois seu ingresso definitivo no mundo do cinema, fazendo a princípio trilhas para westerns italianos. Morricone tem mais de 500 créditos em filmes e ENNIO, O MAESTRO (2021), de Giuseppe Tornatore, tenta condensar o que há de mais importante em sua obra em um filme de menos de três horas de duração. No final, a gente vê que é pouco, embora eu tenha achado a última meia hora um pouco menos empolgante do que o que o mostra produzindo até a década de 1980. O Oscar que ele não ganhou pela trilha de OS INTOCÁVEIS, de Brian De Palma, também é lembrado, com indignação. É muito bom ouvir os depoimentos de diversos outros cineastas e também de pessoas que trabalharam com ele. Alguns momentos são de arrepiar, como as cenas de ERA UMA VEZ NO OESTE e de CINEMA PARADISO, e podemos perceber o quanto Ennio se emocionou ao lembrar de certos momentos-chave de sua vida. Sem dúvida, um artista sem igual. No mínimo.

Nenhum comentário: