No último dia 13 de setembro Jean-Luc Godard resolveu partir por conta própria deste mundo. Usou o método legal (na Suíça) do suicídio assistido por já estar exausto, e por outros motivos que não foram publicados e talvez só ele mesmo saiba, ou quem sabe alguém mais próximo. Godard, que nunca fez concessões, que fez tudo que sempre quis no cinema, também fez o que quis no fim de sua vida. Diferente de tantos outros diretores que optaram por um caminho mais fácil em sua arte, Godard foi escolhendo caminhos singulares para seus filmes, de natureza mais desafiadora.
A difícil penetrabilidade de boa parte de seus trabalhos é tanto o que atrai quanto o que repele. Mais repele do que atrai, na verdade, se pensarmos em um público maior. Os anos em que eu mais vi filmes do cineasta foi entre 2006 e 2010, e ainda assim foram filmes da década de 1960, e depois disso, por algum motivo, acabei me afastando, a não ser por exibições de novas produções no cinema ou de uma ou outra reprise de ACOSSADO (1960), seu longa de estreia e seu filme mais popular.
Ver PAIXÃO (1982) foi um choque. O diretor não cansou de fazer obras radicais em suas propostas formais, embora uma revisão imediata do filme já ajude a clarear bastante, como numa releitura de um livro mais denso. Na revisão, pude perceber que logo no início Godard deixa clara a melhor maneira de se ver o filme: ao ser perguntado qual é a história do filme, o cineasta vivido por Jerzy Radziwilowicz diz que é "uma obra cheia de buracos, espaços mal ocupados... não observe severamente a estrutura nem a fotografia; faça como Rembrandt, olhe os seres humanos atenta e demoradamente por um bom tempo".
Não consegui fazer isso, fiquei tentando juntar a confusão que os primeiros 20 minutos trazem, para depois começar a compreender um pouco mais a "trama". O final, com aquela menina pulando e dizendo que não gosta de carros, pode ser também uma chave para entender o filme como algo menos severo do que é, como algo mais leve do que parece, como são algumas de suas obras dos anos 60.
Por isso, o melhor é ver PAIXÃO como um filme-ensaio, como ficaria muito claro em obras mais recentes do cineasta, como ADEUS À LINGUAGEM (2014). O que ocorre, é que, ao buscar entender a trama, o espectador se vê confuso em um emaranhado de cortes pouco comuns e até uso de falta de sincronia deliberada nos diálogos de modo a nos deixar ainda mais desconfortáveis, embora o ideal fosse ficar confortável e feliz com tal experiência tão original e espirituosa. Aos poucos, a brincadeira com a história já se manifesta na própria figura do cineasta vivido por Jerzy Radziwilowicz, que fica sempre revoltado quando alguém pergunta qual é a “história” de seu filme. Como se já não bastasse a pressão do produtor italiano para que sua obra tivesse que fazer um sentido fácil.
É fascinante ver a construção das cenas do filme dentro do filme, como no momento em que testemunhamos o que ocorre fora das lentes da câmera, quando assistentes de direção trabalham na posição de um monte de atores, todos vestidos com figurinos de época (outros e outras totalmente nus, como que buscando também, com a nudez dos corpos, uma beleza que remete aos clássicos gregos). Ao som de Mozart, Ravel, Dvorak, Beethoven e Faure, Godard traz referências às pinturas de Goya, Delacroix, El Greco, Rembrandt etc., demonstrando uma bagagem cultural invejável e que mais uma vez nos deixa entre a tristeza de nossa ignorância e a ansiedade para conhecer de maneira mais aprofundada a arte, aquilo que aproxima o homem da divindade. O que é uma pena para quem é um trabalhador assalariado e precisa cumprir horas exaustivas de trabalho e não tem energia para se alimentar de tal nutrição espiritual.
No fiapo dessa trama esburacada, mas que vai ganhando mais sentido com o passar do tempo, o cineasta-protagonista (Radziwilowicz), alter-ego de Godard, tem dois interesses amorosos, uma jovem operária de fábrica, vivida por Isabelle Huppert, e uma empresária, dona de imóveis, vivida por Hanna Schygyulla, e é muito bom acompanhar as cenas com as duas. O personagem de Michel Piccoli, marido de Hanna, parece um pouco perdido nas vezes que aparece, mas é sempre bem-vindo como figura representativa de um momento áureo do cinema francês. Além do mais, seu personagem tem um quê de Paul Javal de O DESPREZO (1963), mas sem o tom trágico e ridículo.
Acho também muito interessante a associação que Godard faz entre trabalho e amor, como se ambos fossem praticamente a mesma coisa. Teria que prestar mais atenção para compreendeer mais atentamente suas intenções e seu modo de ver o mundo, pela perspectiva de alguém que critica as condições de trabalho em seu país e o próprio capitalismo. Enquanto isso, a preocupação política com a luta da esquerda segue presente como tema, com a situação preocupante na Polônia, no início da década de 1980.
Curiosamente, Jean-Claude Carrière aparece como roteirista não creditado no IMDB. Não sei o quanto ele participou da obra e não entendi por que não foi creditado, mas em alguns momentos o filme me lembrou suas contribuições com Luis Buñuel. Ah, e a fotografia, de Raoul Coutard (O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS, 1965), mais uma vez está de encher os olhos. Quem puder encontrar uma cópia em alta resolução do filme ficará ainda mais encantado.
+ DOIS FILMES
NASCEMOS HOJE, QUANDO O CÉU ESTAVA CARREGADO DE FERRO E VENENO
Uma pequena surpresa, ao procurar por curtas em meu HD externo e encontrar um filme inédito para mim de Juliana Rojas e Marco Dutra. NASCEMOS HOJE, QUANDO O CÉU ESTAVA CARREGADO DE FERRO E VENENO (2013) é um pouco mais diferente das obras anteriores, mais direcionadas ao terror. Aqui temos uma espécie de sci-fi com filme de amor, sobre um casal (Carla Kinzo e Eduardo Gomes) que, cansado da vida na Terra, resolve se aventurar no espaço sideral, a fim de encontrar um lugar que lhes seja mais gentil. Há utilização frequente de canções (originais) que ajudam a dar ao filme um ar de fábula, mas que também fazem lembrar de outros títulos mais conhecidos da produtora Filmes do Caixote, como SINFONIA DA NECRÓPOLE (2014, de Juliana Rojas) e O QUE SE MOVE (2012, de Caetano Gotardo).
MERENCÓRIA
Um dos filmes mais bonitos de Caetano Gotardo. Adoro os dois primeiros terços de MERENCÓRIA (2017), quando a melancolia e a dor de algo não dito paira no ar e se manifesta. Primeiro na cena da sacada, quando o casal conversa e acontece um momento mágico em que o tempo parece parar e o homem começar a chorar. O segundo ato, da mesma mulher cantando, é de partir o coração. E vem o terceiro ato, que é mais a cara do Gotardo, e que traz uma fisicalidade para a dor de outros dois personagens masculinos, e essa fisicalidade também vem com a dor, com a angústia, com o desespero ou qualquer outro sentimento que aflige a alma. As opções sempre certeiras de ângulos de câmera por parte do diretor são de dar gosto, assim como a escolha da luz para cada momento.
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