sexta-feira, janeiro 27, 2017
APESAR DA NOITE (Malgré la Nuit)
Entrar em uma sessão de cinema sem saber absolutamente nada sobre o filme pode ser frustrante caso o espectador não esteja preparado para uma experiência mais hermética ou muito distinta do que se esperaria minimamente. Às vezes, porém, certos filmes têm uma força tão grande, uma aura tão especial, que é preciso que sua apreciação seja próxima de uma adoração, de estar vendo algo sagrado em um templo. No caso, a sala de cinema vira esse templo. E é até bom que as pessoas que não estejam sintonizadas com o filme saiam mesmo, para que aquele momento sublime, ainda que de difícil absorção, seja contemplado por poucos, os que estejam mais ou menos na mesma sintonia.
É o caso de APESAR DA NOITE (2015), de Philippe Grandrieux, cineasta francês ainda pouco conhecido do grande público, mas que vem encantando algumas audiências, principalmente aquelas que apreciam o trabalho de David Lynch, o nome que mais nos vem à lembrança ao experienciarmos esse trabalho, já que há cenas que remetem a várias obras do cineasta americano. Há, inclusive, o uso de uma moça cantando, como em um sonho. E esses filmes que transformam a sala de cinema em casas de sonho merecem todo o nosso respeito.
Escrever sobre APESAR DA NOITE é uma tarefa ingrata, pois cada cena tem uma força tão imensa que mereceria uma análise à parte, citando trechos de diálogos que invocam as paixões de seus personagens e o modo como essas cenas são dispostas. Essas paixões se manifestam muitas vezes de maneira bastante mórbida ou totalmente despida de esperança, como é o caso das cenas envolvendo Hélêne, vivida por Ariane Labed, atriz de rosto expressivo e familiar, que aparece em papéis pequenos em filmes como ANTES DA MEIA-NOITE, de Richard Linklater, e O LAGOSTA, de Yorgos Lanthimos, mas que pôde ser vista como protagonista em um filme recente, A ODISSEIA DE ALICE, de Lucie Borleteau.
Hélène é uma mulher que procura sensações que a façam desesperadamente se sentir viva, mesmo que isso signifique afligir o próprio corpo. Ao menos estaria sentindo alguma coisa. O caso de Hélène, porém, é muito mais delicado do que imaginamos, muito mais depressivo, a ponto de ela envolver-se com um grupo de pessoas extremamente perigosas que produzem snuff movies. Hélène mora com um homem que é tão devotado a ela que não se importa que ela volte para a casa cheia de hematomas, contanto que não o abandone.
As paixões em APESAR DA NOITE têm essa força avassaladora. Hélène está envolvida com um rapaz que é usuário de drogas, Lenz (Kristian Marr). As palavras que os dois trocam entre si, as juras de amor sussurradas e ditas como se estivessem próximos a morrer no próximo instante, são tão poeticamente belas que parecem saídas, às vezes, de uma peça de teatro trágica, com a diferença que no teatro os personagens não possam se dar ao luxo de sussurrar, como nos filmes. Eis o cinema, mais uma vez, em situação de vantagem em relação às outras formas de arte.
Escrever sobre APESAR DA NOITE é uma tarefa ingrata, pois certamente não conseguimos passar em palavras o impacto do filme, que é feito de cenas relativamente longas, algumas em plano-sequência, outras mostradas de forma desconcertante, como é o caso da famosa cena do peixe gigante. Na tal cena, vemos/ouvimos o monólogo de uma espécie de vilão demoníaco, Vitali (Johan Leysen), um homem velho que parece sentir desejo pela própria filha, a bela Lena (Roxane Mesquida). Lena, por sua vez, é apaixonada por Lenz, e tem como namorado Louis (Paul Hamy, de O ORNITÓLOGO), protegido do pai da moça.
O filme é também uma obra que fala da busca por uma mulher que desapareceu misteriosamente e cujo nome é citado várias vezes ao longo da narrativa. Seu nome, Madeleine, até remete, não sei se por coincidência ou por intenção, à outra famosa morta-viva do cinema, a Madeleine de UM CORPO QUE CAI, de Alfred Hitchcock. A diferença é que a também misteriosa Madeleine do filme de Grandrieux parece estar mesmo morta.
No entanto, falar da trama de APESAR DA NOITE talvez diminua um pouco a impressão da natureza do filme, de sua forma única, ainda que remeta às vezes a Lynch e a Claire Denis, de narrar, de compor com mistério os planos e as sequências. Trata-se também de um filme que nos faz sentir dor. Muitas vezes uma dor física mesmo pelos atores/personagens em circunstâncias desagradáveis. Inclusive, o filme de Grandrieux tem uma estreita relação com o gênero horror. E aqui temos um horror que passa longe de provocar uma sensação de segurança e bem-estar familiar, como geralmente sentimos com o gênero. O que temos é cinema de gente grande. Poético, desesperador, apaixonado, assustador, intenso.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário