quarta-feira, dezembro 13, 2006

RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA



A primeira vez que ouvi falar em João César Monteiro (falecido em 2003) foi quando eu li uma absurda nota sobre BRANCA DE NEVE (2000). Nesse filme, Monteiro cobriu as lentes com um pano e o resultado é um filme todo em tela preta. Exceto por algumas cenas, na maior parte do filme, só se ouve as vozes dos atores. Isso me chamou muito a atenção e imagino que deve ser um tanto incômodo ver esse filme. Depois, Iñarritú faria algo parecido em seu segmento para 11 DE SETEMBRO, mas como se tratava apenas de alguns minutos, não cheguei a ficar tão incomodado. Em 2004, foi exibida em São Paulo uma mostra integral com os 21 filmes do cineasta. Talvez tenha sido o período de maior visibilidade dos filmes de Monteiro no Brasil. Até hoje seus filmes são raros por aqui, inéditos em DVD e no circuito comercial também - creio eu.

RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA (1989) foi o filme que apresentou ao mundo o personagem João de Deus, interpretado pelo próprio João César Monteiro. Quando o filme começa, ao som da voz de Monteiro comentando sobre a expressão "casa amarela", e de como o termo era usado para descrever as prisões onde se deixavam os negros, a impressão que eu tinha do filme é que se tratava de um drama lírico e melancólico. Pode até haver um pouco disso, mas no geral o filme é uma comédia onde se é possível até rir de algumas situações. Quando João de Deus vai ao médico descrever os seus problemas de saúde, o filme lembra CARO DIÁRIO, de Nanni Moretti. Esse primeiro ato ratifica a impressão que se tem de que Portugal é um país de velhos. Depois, quando o filme passa a focalizar a atenção na obsessão de João de Deus pela "Menina Julieta" (Teresa Calado) essa impressão - de Moretti português - se dissipa. Inclusive, a cena em que ele bebe a água do banho da "Menina Julieta" e idolatra um de seus pentelhos lembra um pouco as pornochanchadas brasileiras das décadas de 70 e 80. No terceiro ato, o filme já adquire outros ares e começa a se utilizar de auto-referências que deixaram a mim, um espectador leigo na obra de Monteiro, sem entender muita coisa. A partir do momento em que João de Deus aparece vestido de oficial de polícia, o humor do filme se fecha para as platéias estrangeiras e para aqueles que desconhecem a obra de Monteiro. Esse terceiro ato destoa dos demais até pela pouca utilização de voz em off e pelos poucos diálogos.

RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA é o primeiro de uma trilogia que se completa com A COMÉDIA DE DEUS (1995) e AS BODAS DE DEUS (1999). Interessante saber que em A COMÉDIA DE DEUS, há um personagem que se chama Antoine Doinel, claramente uma homenagem ao ilustre herói de Truffaut. Há uma espécie de "namoro" de Monteiro com a Nouvelle Vague e com os críticos dos Cahiers du Cinéma. Namoro esse que se estende a homenagens e participações especiais de críticos da revista. Uma das principais auto-referências do filme está na participação de Luís Miguel Cintra, ator-fetiche do cineasta desde QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO MORRE DESCALÇO (1970). Em RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA, quando Luís Miguel Cintra aparece pela primeira vez, há toda uma brincadeira em torno dos inúmeros personagens que ele interpretou nos filmes de Monteiro. Essa cena deve ser particularmente interessante para quem conhece um pouco mais a fundo a obra de Monteiro. Quem não conhece, como eu, fica boiando.

Agradecimentos especiais ao amigo Marcos Felipe, que muito gentilmente me emprestou o DVD, me dando a oportunidade de entrar em contato com a obra do meu "primo".

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