terça-feira, janeiro 07, 2025
O COMBOIO DO MEDO (Sorcerer)
Uma coisa que me chama a atenção em relação a O COMBOIO DO MEDO (1977) é seu intervalo até que bastante longo (de quatro anos) entre ele e O EXORCISTA (1973), o maior sucesso comercial de William Friedkin – e que foi durante muito tempo o filme de horror mais rentável já produzido. Durante esse tempo, o cineasta era um dos reis de Hollywood, junto com Coppola e Spielberg. Isso por causa de seus dois imensos sucessos de público e crítica anteriores, OPERAÇÃO FRANÇA (1971), que ganhou o Oscar de melhor filme, e o já citado fenômeno O EXORCISTA.
Um daqueles filmes fundamentais que por algum motivo eu não tinha visto até hoje, O COMBOIO DO MEDO chega até mim na bela cópia em BluRay da Versátil, com direito a uma excelente entrevista de mais de uma hora do diretor William Friedkin para o diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn, que tinha a irritante mania de se autoproclamar a versão jovem de Friedkin e a irritar muitas vezes o diretor de O EXORCISTA. Inclusive, ao trazer por demasiado tempo da conversa a questão do fracasso. E o filme de fato foi um fracasso na época, de bilheteria e de crítica, mas não quer dizer que seja um fracasso artístico. Tanto que hoje é visto como uma de suas obras-primas.
Algo que me chamou a atenção na entrevista nem foi o jeito ora irritadiço, ora simpático de Friedkin, em contar pacientemente e detalhadamente sua experiência com a produção do filme, mas a sua modéstia ao citar O TESOURO DE SIERRA MADRE, de John Huston, como uma de suas maiores inspirações para sua história. Ao dizer que jamais fez e jamais fará uma obra-prima do quilate do filme de Huston ele se coloca numa posição que eu não costumava vê-lo. De certa sobriedade e reverência. Se temos a história de que ele chegou a Henri-Georges Clouzot para dizer que faria um filme melhor que o dele, já se cria uma imagem de alguém bem pouco modesto.
Aliás, senti falta na entrevista de uma ênfase maior na questão do mal no mundo, e de como Friedkin foi talvez o grande cineasta americano a lidar com esse tema. Que aparece em todos os filmes da década de 1970 e também em PARCEIROS DA NOITE (1980), VIVER E MORRER EM LOS ANGELES (1985), entre outros. Nas primeiras cenas de O COMBOIO DO MEDO, as que apresentam os quatro personagens principais, vindo de quatro diferentes partes do planeta, o que vemos é justamente esse aspecto sombrio e triste quanto ao estado das coisas naquele momento: ataques terroristas em Israel, cobrança extrema seguida de suicídio na França, assalto a uma igreja nos Estados Unidos, um trabalho de encomenda de um matador de aluguel no México.
O COMBOIO DO MEDO é um desses filmes que a gente começa a ver e não quer parar. Não importa se os personagens provocam ou não alguma empatia. São mesmo todos criminosos e estão naquela espécie de purgatório, que é esse país empoeirado e extremamente quente em algum lugar da América Latina (boa parte do filme foi filmada na República Dominicana).
Já havia visto O SALÁRIO DO MEDO, de Henri-Georges Clouzot, inclusive no cinema, e acredito que Friedkin conseguiu fazer um trabalho ainda mais admirável a partir do romance de Georges Arnaud. Por mais que seja um trabalho cru, sem sentimentalismos (Friedkin é assim) e com um pé mais no realismo, em determinado momento, principalmente quando os quatro personagens principais estão nos dois caminhões carregando nitroglicerina, em algumas cenas o filme se reveste de uma atmosfera de sonho, em especial quando Roy Scheider se vê entre sua missão e seus traumas do passado.
Antes de encerrar o texto, não posso deixar de destacar a cena mais incrível: a primeira passagem de um dos caminhões pela ponte de madeira. Que loucura! E de fato, quando Friedkin dizia para Steve McQueen que já havia conseguido as locações, ele de fato havia encontrado um lugar perfeito. McQueen era a primeira escolha do diretor quando fez seu elenco. Foi substituído por Scheider pois McQueen não queria deixar sua casa para passar meses longe de sua então esposa, Ali McGraw. Pediu que Friedkin conseguisse um papel para ela no filme e o diretor negou; pediu que ele arranjasse um lugar para ela como produtora executiva, também negou; pediu que transferisse as filmagens para os Estados Unidos, e Friedkin também negou. Ou seja, o diretor sabia o que queria e inclusive, quando finalizou suas filmagens, ficou tão satisfeito que viu O COMBOIO DO MEDO como sua obra mais bem acabada. E que bom que hoje o mundo percebe o filme com outros olhos.
+ TRÊS FILMES
POPCORN – O PESADELO ESTÁ DE VOLTA (Popcorn)
Acho legal pegar pra ver algum slasher ou filme de terror de baixo orçamento e ter depois algum extra interessante com depoimentos dos envolvidos para enriquecer o trabalho (ou a experiência). Isso pode ajudar a valorizar o esforço de realização de um filme que pode não ser bom. No caso, de POPCORN – O PESADELO ESTÁ DE VOLTA (1991), de Mark Herrier, eu acho que ajudou pouco (gosto mais do extra do que do filme), mas não há como negar que esta fita tem suas qualidades, especialmente na força da protagonista, uma atriz, que, curiosamente, entrou no meio das filmagens, pois a atriz anterior não estava fazendo um bom trabalho, segundo os realizadores. Trata-se de um filme que, de certa forma, antecipa o que veríamos a partir da franquia Pânico de Wes Craven, que representaria uma nova página na história dos slashers, depois de passada a era de ouro, nos anos 1980. Aqui temos a história de uma garota que é estudante de cinema e que planeja fazer um filme inspirado nos pesadelos que tem com recorrência. Seu grupo de estudantes de cinema resolve fazer uma noitada só com filmes de terror vagabundos, mas divertidos, e que trazem alguns atrativos para as audiências, como uma inovação no 3D ou uso de cheiros ou eletricidade nas cadeiras. Essa é a parte divertida. A parte mais chata do filme é o vilão, principalmente quando ele começa, na meia-hora final, o blá-blá-blá de como foi injustiçado e como será o seu plano de vingança. Curiosamente, o filme foi rodado na Jamaica, o que me pareceu inusitado, mas para o elenco foi uma diversão: fazer o filme e ainda viajar para uma ilha do Caribe. Pena que a participação de Dee Wallace é pequena (faz o papel da mãe/tia da jovem protagonista), mas ao que parece ela não se importou de viver o resto da vida fazendo horror de baixo orçamento. Certamente tem uma relação de afeto com o gênero. No mais, não sei se era já uma tendência da época, mas nenhuma das cenas de morte provoca qualquer impacto, o que depõe contra o filme. Visto no box Slashers VI.
ANJO E DEMÔNIO (Supernatural)
Em tempos de busca por filmes curtos para tentar ver a possibilidade de vê-lo integralmente, pelo cansaço, optei por este horror B da era pré-code de Hollywood, com apenas 64 min de duração. Embora barato, o filme conta com a estrela Carole Lombard e com o jovem Randolph Scott, que ficaria famoso por estrelar excelentes westerns nas décadas seguintes. A trama de ANJO E DEMÔNIO (1933), de Victor Halperin, é muito louca: envolve uma mulher que foi condenada à pena capital por assassinatos em série. Ela tinha a fama de matar suas vítimas, todos homens, usando as próprias mãos em seus pescoços. Um cientista que acredita no sobrenatural faz um acordo com ela. Seu interesse é checar a possibilidade de espíritos de mortos reaparecerem e deixarem sua marca. Enquanto isso, uma jovem aristocrata (Lombard) sofre com a morte recente de seu irmão e é abordada por um médium fake que diz que seu irmão deseja falar com ela do outro plano de existência. É um filme bem acelerado e fiquei pensando no quanto sua trama seria bem aproveitada por um novo diretor talentoso da atualidade. Aqui, se por um lado o ritmo dinâmico é interessante e atraente, por outro, senti falta de algum respiro. Visto no box Obras-Primas do Terror 21.
CAMPEÃO DE BOXE (The Champion)
O boxe no cinema sempre foi um sucesso. E acredito que este filme de Charles Chaplin nem foi o primeiro a apresentar esse esporte, que seria explorado das mais diferentes maneiras ao longo da história do cinema. Em CAMPEÃO DE BOXE (1915) ele antecipa o que faria depois em LUZES DA CIDADE (1931). O uso da câmera parada fica bem evidente nesses primeiros curtas, mas Chaplin já era aqui um mestre da mise en scène. Na trama, o vagabundo aceita levar umas porradas de um boxeador para ganhar uns trocados, mas, usando uma ferradura escondida dentro da luva, acaba se tornando um dos favoritos a disputar o campeonato. Gosto mais do primeiro ato do que dos dois seguintes, mas é um belo filme, com algumas gags que não envelheceram. Apresentei para meus alunos e eles acharam parecido com Chapolin Colorado. Bingo!
segunda-feira, janeiro 06, 2025
GAROTO
Na manhã seguinte ao Globo de Ouro de melhor atriz dramática para Fernanda Torres por sua impecável interpretação em AINDA ESTOU AQUI, paro um instantinho para escrever para o blog pela primeira vez neste ano. Em outras circunstâncias estaria escrevendo sobre a festa, que não via desde a edição de 2020, que consagrou os filmes 2017, de Sam Mendes, e ERA UMA VEZ EM...HOLLYWOOD, de Quentin Tarantino. Depois disso o prêmio foi “cancelado” por uma série de situações problemáticas, que depois foram contornados e hoje é um prêmio mais democrático, mais inclusivo e que voltou a ser transmitido por uma rede de televisão. Como não estava com a cabeça muito boa ontem, e não vi a premiação com muita atenção, achei melhor não escrever a respeito da cerimônia ou dar outros pitacos. Na verdade, só não parei de ver para dar play num filme ou ler um livro para dormir pois estava esperando o resultado do prêmio que a Fernanda estava concorrendo.
Por isso, comecemos o ano falando do primeiro filme que vi em 2025, GAROTO (2015), de Julio Bressane. Curiosamente, também se trata de um filme com a presença de uma grande atriz, Marjorie Estiano, provavelmente a maior de sua geração.
Como os filmes de Bressane são um pouco mais herméticos e por isso mesmo adoro ter a oportunidade de vê-los no cinema para ter uma experiência mais imersiva e saborosa, entendendo ou não as referências – só vi cinco de seus filmes no cinema, sendo o primeiro CLEÓPATRA (2007) e o último CAPITU E O CAPÍTULO (2021). Mas em casa pude fazer anotações de cenas que me chamavam a atenção e isso foi muito rico, ajudou ainda mais, tanto na compreensão quanto no prazer de pensar o filme.
"O mistério do amor é maior que o mistério da morte". Essa é uma das várias frases citadas pela personagem de Estiano ao longo do filme. Procurei na internet o autor da frase, achando se tratar de Borges, mas parece que é de Oscar Wilde. Essa frase me agrada muito e tem tudo a ver com o destino de seus personagens, numa história inspirada (mas não creditada) num conto do grande Jorge Luis Borges, chamado “O Assassino Desinteressado Bill Harrigan”, presente no livro História Universal da Infâmia (1935). Aliás, soube, enquanto procurava informações sobre GAROTO, que Bressane conversava com Borges por telefone na década de 1980. Já há muito tempo que o cineasta tinha interesse em adaptar este conto.
Pois bem. Começo o ano com um filme da fase mais recente do maior cineasta brasileiro vivo. Um filme curtinho, de apenas 76 min, com uma Marjorie Estiano no início da fama e um Gabriel Leone recém-saído da série adolescente MALHAÇÃO – só conheci Leone vendo EDUARDO E MÔNICA. Em GAROTO, Leone faz um jovem inseguro e mudo; Estiano é uma moça que não para de falar e filosofa sobre a vida, além de ser ela que orienta os rumos de quase tudo para os dois.
E ela tem um viço que mexe com o rapaz. Algo que o diretor faz questão de transformar em tensão sexual. E quando o sexo surge, surge de maneira inusitada, a partir do uso de uma câmera subjetiva. Marjorie aproxima-se para a câmera a fim de beijar o rapaz, o que me remeteu a uma das cenas mais sensuais da história do cinema: a de Grace Kelly se aproximando para beijar James Stewart em JANELA INDISCRETA, de Alfred Hitchcock.
Logo em seguida, pela mesma câmera subjetiva, o sexo oral é ocultado, mas o leite espesso não. Antes disso, somos convidados a partilhar do desejo dos personagens, a partir dos closes dos ombros dela, das mãos, da nuca, e das imagens de aproximação de seus corpos. Em determinado momento, a personagem feminina segura um cipó enorme, que parece seguir até os céus, segundo o posicionamento da câmera de baixo para cima, como se estivesse segurando, com muita segurança e poder feminino. O cipó parece um falo gigante, ou divino.
A trama é dividida em duas partes, uma em que predomina o verde e outra no sertão da Paraíba, o mesmo lugar onde Bressane filmou SÃO JERÔNIMO (1999). No sertão, o filme muda de tom. Sai o viço, entra o companheirismo em tempos difíceis, o desconforto, a fome, o cansaço, a falta de teto, imagens que lembram às vezes VIDAS SECAS, de Nelson Pereira dos Santos. Senti falta nesta segunda parte das falas filosóficas da primeira. Mas aqui é um momento em que os dois, apesar de tudo, parecem se unir no silêncio.
O trabalho de som é um destaque, assim como a ênfase à passagem do tempo através da natureza, do céu, das árvores, das misteriosas cenas finais. Bressane faz filmes artesanais ímpares, com uma marca sua. Quem dera todos os seus trabalhos fossem exibidos em nosso circuito. Vê-los na tela grande é sempre glorioso. Mas também é uma alegria termos hoje uma oportunidade de conseguir com mais facilidade grande parte de seus mais de 40 filmes, entre longas, curtas e segmentos.
+ TRÊS FILMES
ESTRANHO CAMINHO
Ainda se costuma falar de Guto Parente como um dos melhores cineastas do Ceará, mas isso já deve nem ser mais dito. É dos melhores do Brasil e do mundo. O modo como ele narra esta história trazendo leveza e doçura para um momento tão delicado, como foi a pandemia, é admirável. Além do mais, a trama de um jovem cineasta que se vê perdido frente ao fato de que seu filme não passará mais num festival por causa do lockdown e das mudanças que transformaram o Brasil e o mundo num filme de apocalipse é tão carregada de humor que imagino que foi sábio da parte do cineasta (ou do tempo ou das conjunções astrais) que este filme não entrasse em cartaz em 2021, quando ainda se era muito delicado tratar com um pouco de humor desse cenário. Mas Parente está longe de tratar seus personagens e as situações por que eles passam sem a devida solidariedade. O rapaz, David (Lucas Limeira, ótimo), procura por seu pai em Fortaleza, um pai que ele não vê há muito tempo. Aparentemente, ele guarda alguma lembrança ou situação triste envolvendo o pai. Geraldo, seu pai, é vivido por Carlos Francisco (definitivamente, um dos maiores atores brasileiros vivos). Todas as cenas de David no apartamento do pai, enquanto este está no computador são impagáveis. Trazem um humor que combina com as estranhezas que logo tomarão corpo ao longo da obra. De Lynch a Bresson, ESTRANHO CAMINHO (2023) é uma declaração de amor ao cinema. Mas também, e principalmente, um gesto delicado para quem amamos.
SAUDOSA MALOCA
Achando interessante a carreira do diretor Pedro Serrano e sua forte relação com Adoniran Barbosa. Primeiro foi com o curta DÁ LICENÇA DE CONTAR (2015), depois com o documentário ADONIRAN – MEU NOME É JOÃO RUBINATO (2018) e agora com SAUDOSA MALOCA (2023), um longa de ficção que nada na contramão das cinebiografias mais convencionais, optando por uma história menos centrada na vida do celebrado sambista paulista e mais nas letras de suas canções. Sendo assim, pouco importa se Joca (Gustavo Machado) e Mato-Grosso (Gero Camilo) realmente existiram (ao que parece, sim), mas eles estão na letra da canção-título do filme e aqui desempenham papéis tão importantes quanto o vivido por Paulo Miklos. Há também Iracema (Leilah Moreno), que ganhou uma triste canção com seu nome por Adoniran e que é uma das poucas personagens femininas importantes de um filme que se destaca por um elenco basicamente masculino. Gosto das cenas de samba no bar e gostaria que houvesse mais. Além do mais, o filme nem sempre se apresenta muito atraente, por mais que o trio de atores principais esteja ótimo e o diretor às vezes opte por ângulos muito bonitos e pouco usuais.
VERMELHO MONET
Um filme sobre um falsificador em busca de inspiração e de duas mulheres que se sentem atraídas uma pela outra e roubam um pouco de cada uma para benefício próprio. No meio de tudo, citações a grandes pinturas e a Florbela Espanca – o famoso poema musicado por Fagner surge como um fado em determinado momento. As primeiras imagens de VERMELHO MONET (2022), a primeira incursão de Halder Gomes num cinema por assim dizer mais sério até que trazem uma boa impressão, até porque são valorizadas pela bonita fotografia em cores nítidas. Imagens em super close-up dos olhos de Maria Fernanda Cândido em scope, imagens em preto e branco que depois veríamos ser da visão sendo perdida do personagem de Chico Diaz, imagens de uma Lisboa cheia de charme, cenas que valorizam o vermelho se destacando das demais cores. Aliás, é como se a ideia do filme surgisse justamente desse destaque do vermelho (com o azul, principalmente) para depois ser criada uma história e um roteiro infelizmente bem problemáticos e que acabam por prejudicar também a performance do trio principal de atores. A jovem estreante Samantha Müller funciona bem como símbolo do amor passado do pintor. As cenas mais bonitas do filme são as mais desprendidas da trama. Por isso talvez o diretor tivesse mais sucesso num filme mais experimental.
Assinar:
Postagens (Atom)