
Quando MISERICÓRDIA (2024), de Alain Guiraudie, apareceu encabeçando o top 10 da prestigiada revista francesa Cahiers du Cinéma, à frente de filmes incríveis como SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO, ZONA DE INTERESSE, OS DELINQUENTES, O MAL NÃO EXISTE e ARMADILHA, para citar apenas os que vi dos dez, fiquei logo muito interessado para conferir este novo trabalho do diretor de UM ESTRANHO NO LAGO (2013) e NA VERTICAL (2016). Os três filmes, inclusive, acredito que foram os únicos dos nove longas-metragens do realizador que chegaram a nosso circuito comercial. E, aliás, é uma pena que este novo filme não tenha ficado um bom tempo em exibição, pois eu diria que se trata de um dos melhores lançamentos do ano, sem dúvida nenhuma.
Saí da sessão de MISERICÓRDIA, no já distante janeiro, com a sensação de ter visto uma espécie de Luis Buñuel queer, além de trazer também a lembrança do Hitchcock de filmes tão distintos quanto O TERCEIRO TIRO e A TORTURA DO SILÊNCIO. A melhor coisa a fazer com relação ao novo trabalho de Guiraudie é entrar na sessão sem saber nada da trama, uma vez que tudo o que surge em cena floresce como incríveis surpresas.
Na trama, Félix Kysyl é um rapaz que volta à cidade onde viveu na juventude para o velório de um homem, um padeiro daquela cidadezinha ou vilarejo. Demora um pouco para compreendermos sua relação com a família desse homem, mas aos poucos vamos entendo a lógica das relações e da própria cidadezinha, que parece representar um espaço habitado por personagens em sua maioria gays, ou que já tiveram alguma história de relacionamentos homossexuais. Há um quê de TEOREMA, o clássico moderno de Pasolini também, já que o rapaz é objeto do desejo de quase todos ao redor, inclusive da mãe do falecido, interpretada por Catherine Frot.
MISERICÓRDIA é também um retorno de Guiraudie ao thriller de assassinato, embora aqui haja um tom fabular e de comicidade, que eu, sinceramente, demorei um pouco a perceber. No último ato, porém, a sala inteira troca a tensão pelo riso. Às vezes até pela gargalhada. Sem falar no bem-estar que é a sensação de ver uma obra tão primorosa no cinema. O filme mereceu a ótima recepção da crítica francesa. É um filme sobre desejo, ciúme e solidão, mas com aquele toque de estranheza e transgressão dos outros filmes do realizador.
Perguntado em entrevista sobre o tema da culpa, presente neste filme e em outros trabalhos seus, Guiraudie diz que ela veio de sua criação, de sua educação católica, e que ele viveu pensando muito a respeito desses conceitos de culpa e de perdão. Então, o diretor acabou fazendo uma espécie de conto moral, que não necessariamente faz uma crítica ao catolicismo (como Buñuel costumava fazer), mas que é mais humanista, ao pensar sobre o perdão de certos atos cometidos por pessoas que não têm uma índole ruim. Além do mais, há também um senso de humanidade (no sentido de reconhecer as próprias fraquezas) no modo como o padre justifica a ação do rapaz, levando em consideração seu desejo por ele.
+ TRÊS FILMES
BABY
Se BABY (2024) não me ganhou em tudo, a mão boa de Marcelo Caetano é algo que se percebe desde o primeiro fotograma, com aquela imagem da banda na prisão onde o jovem protagonista está prestes a sair para enfrentar uma nova vida, sem pais ou qualquer outra pessoa que o possa acolher, do lado de fora. As cores, os sons, a São Paulo que mais uma vez Caetano sabe tão bem mostrar – como fez também em CORPO ELÉTRICO (2017) –, assim como o caminho tortuoso que o jovem passa a partir do momento que conhece um homem mais velho que busca ganhar uns trocados como michê. São pessoas que expõem feridas expostas, mas que preferem seguir em frente, na batalha. Baby, mais jovem, parece ter mais esperança no futuro ao descer do ônibus numa das cenas mais delicadas do filme. A cena final, e a opção por uma técnica cinematográfica pouco usual, me deixou desconcertado, mas também me fez respeitar ainda mais o trabalho do diretor.
MALU
Assim como fiquei impressionado com TIA VIRGÍNIA, de Fabio Meira, no ano passado, isso se repete com MALU (2024), de Pedro Freire. O que há de comum entre os dois filmes? A incrível capacidade de os realizadores serem tão bons na construção do texto e da importância dada a seus atores contracenando dentro de espaços fechados, que é de se ficar admirado de se tratar de roteiros originais, feitos para o cinema. O trio de atrizes está incrível, especialmente Yara de Novaes, como a personagem-título, mas também Juliana Carneiro da Cunha como sua mãe idosa e Carol Duarte como a filha jovem que volta de uma temporada na Europa. A lembrança de UMA MULHER SOB INFLUÊNCIA do Cassavetes é praticamente inevitável, mas o texto em MALU parece ser mais preciso, bem menos improvisado. É difícil não sair da sessão pensando em nossas famílias, em nossas mães e avós, no nosso próprio processo de envelhecimento, mas o trabalho de condução do filme é tão impressionante que essa lembrança da vida real vem junto com nosso extremo carinho e admiração por este primeiro longa-metragem de Freire.
TUDO O QUE VOCÊ PODIA SER
Durante boa parte da metragem de TUDO O QUE VOCÊ PODIA SER (2023), de Ricardo Alves Jr., diretor do ótimo ELON NÃO ACREDITA NA MORTE (2016), as quatro personagens LGBT principais são mostradas como num mundo paralelo e pacífico, um pouco desligado do mundo habitado pela maioria heterossexual. Mais adiante, porém, as duas cenas em que as personagens se veem em contato com pessoas não-LGBT são vistas em momentos de rejeição, incompreensão e agressão. Ou seja, estarem juntas e unidas é o que as faz felizes neste filme que tem um respiro muito bonito e bem-vindo (como na cena em que as quatro comem um sanduíche depois da festa), assim como há soluções plásticas interessantes, como o mostrar portas ou paredes entrecortando a imagem principal onde acontece a ação. É também um filme que pode representar um momento de alegria para as pessoas LGBT, já que duas delas ganham oportunidades de vencerem dentro dos meios profissional e acadêmico. Em alguns momentos, o diretor parece deixar as personagens falarem com muita naturalidade e menos rigor formal, como se as conversas fossem quase todas improvisadas, e como se para dar a elas a devida voz. Belo filme, que equilibra muito bem a alegria e a melancolia.
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