
Ando vendo menos filmes e por isso surge a oportunidade de repensar alguns títulos vistos no ano passado e que estavam ainda na lista dos que “esperavam” espaço no blog. Sempre escrevo um textinho no calor do momento e esses textos agora são aproveitados no “+ 3 Filmes” depois do principal, como muita gente já deve ter notado. Esse recurso passou a ser feito por mim por conta do pouco tempo que tenho para escrever, em comparação com tempos atrás, em que eu conseguia escrever sobre qualquer filme visto. Agora eu acabo escolhendo um para expandir um pouco, pensar mais um pouco, e trazer para este espaço.
Eis que percebo que ESTÔMAGO (2007), de Marcos Jorge, visto no ano passado, quando de seu relançamento, poderia ser um desses filmes. Até porque posso aproveitar e ler o texto de Andrea Ormond para o livro Ensaios de Cinema Brasileiro: Volume III – Os Anos 2000 e 2010. E há também o texto de Marcos Santuario para o 100 Melhores Filmes Brasileiros, livro produzido pela Abraccine, com apoio do Canal Brasil. Sim, eu gosto muito de ler sobre os filmes antes de escrever a respeito, e faço isso não apenas para perceber novas maneiras de se ver o mesmo filme, mas também para obter mais informações a respeito, ainda que, em se tratando de filmes novos, eu prefira não ler outras críticas.
Os textos da Andrea sempre me ganham muito por seu valor literário mesmo. Percebe-se que ela tem um vasto background de alta literatura, em especial de literatura brasileira. Lembro de Machado de Assis quando a leio, mas também de escritores modernistas e contemporâneos. Sobre ESTÔMAGO, ela destaca o erotismo que uma receita de comida pode também representar, algo que o próprio Jorge Amado havia destacado em algumas de suas obras (Gabriela, Cravo e Canela; Dona Flor e Seus Dois Maridos, em especial, ambas levadas ao cinema). E o filme de Marcos Jorge também explora muito bem esses dois elementos: quem não se lembra da cena de sexo em que Nonato saboreia o corpo de Íria (Fabíula Nascimento), enquanto ela saboreia a comida feita por ele simultaneamente? Ou quem não se lembra do êxtase de Íria ao experimentar pela primeira vez a coxinha feita por ele?
Andrea também destaca o recurso do voice-over de Nonato/Alecrim, e do quanto ele parece um “cordel sem rimas”. O sotaque e a musicalidade da voz de João Miguel fazem a diferença no modo como o personagem nos ganha, ao contar sua história em duas linhas temporais: a chegada à cidade grande, a descoberta de seu dom culinário e seu encontro com a prostituta Íris; e a vida na prisão, depois de ter cometido um crime grave, apenas revelado no final do filme.
Já Santuario destaca as hierarquias de poder que o filme trata: o poder de alguém que sabe cozinhar, o poder de um bandido numa penitenciária, o poder de sedução de uma mulher, o poder de alguém que tem dinheiro, como o dono do restaurante que contrata Nonato. Há também destaque para o toque cômico que é um dos elementos que o filme mais se beneficia para conquistar o espectador. Nesse sentido, eu diria que aí está o poder de Marcos Jorge, o de saber manipular o espectador com seus ingredientes, e organizando-os na ordem correta para que o resultado seja o melhor possível.
Podemos dizer que ESTÔMAGO se tornou um clássico. Revê-lo depois de menos de vinte anos mostrou o quanto este sucesso do cinema brasileiro dos anos 2000 permanece um prazer de ver. Eu diria até que ficou melhor com o tempo. E talvez seja o grande papel da carreira de João Miguel, mesmo contendo no currículo maravilhas como CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS, O CÉU DE SUELY e À BEIRA DO CAMINHO, só pra citar três de meus queridos.
Como seu personagem é muito divertido e aparentemente ingênuo, e a montagem contribui para que tenhamos esse tipo de relação com ele, fica até difícil acabar o filme fazendo algum tipo de julgamento mais pesado. Além do mais, isso atrapalharia se a história fosse contada na ordem exata dos acontecimentos, com toda a história na prisão sendo jogada para a segunda metade. ESTÔMAGO é uma delícia de ver, pela gastronomia também, mas principalmente por ser um exemplo de filme em que tudo funciona perfeitamente: montagem, roteiro, atuação (Paulo Miklos sempre rouba a cena quando aparece) e humor (difícil não rir várias vezes durante a projeção).
Inclusive, o diretor confessou que para fazer ESTÔMAGO, ele bebeu na fonte de outros filmes de gastronomia, como A FESTA DE BABETTE, de Gabriel Axel, e O COZINHEIRO, O LADRÃO, SUA MULHER E O AMANTE, de Peter Greenaway. Sim, o cinema também é feito para dar água na boca.
+ TRÊS FILMES
GREICE
Dos três longas-metragens de Leonardo Mouramateus, vejo GREICE (2024) como seu maior acerto até o momento. É um filme que tem um sabor de Éric Rohmer, mas com o diferencial (vantagem) de fazer com que o espectador brasileiro, em especial o cearense, se veja representado no sotaque, na graça e na espontaneidade dos personagens. Amandyra, jovem atriz-revelação, dá um show como a personagem-título que se vê numa encrenca em seu curso superior em Lisboa e volta para Fortaleza, sem que sua família saiba, até a poeira baixar. O trabalho de montagem está sempre a favor da narrativa e é usado de maneira criativa e envolvente. Gosto também de que existe um mistério na trama, um segredo, mas há algo que torna esse segredo leve e consonante com o espírito do filme e de seus heróis.
BANDIDA – A NÚMERO UM
Vendo BANDIDA – A NÚMERO UM (2024) fiquei pensando no quanto CIDADE DE DEUS poderia ter sido uma dessas obras muito copiadas, devido a sua importância e repercussão inclusive internacional, mas que acabou não sendo. Talvez porque, para seguir os passos do filme de Meirelles, teria que haver uma produção mais cara, mais caprichada, e nem sempre se pode contar com isso no Brasil. Eis que vendo este novo trabalho de João Wainer (A JAULA, 2022), percebemos que é uma obra que segue, sim, os passos do CIDADE. E falo isso não como um problema. Na verdade, é uma delícia de acompanhar, tem uma linguagem bem dinâmica e conta a história da heroína de um jeito que nos importamos com os personagens, além de ser muito fácil gostar de alguém como Rebeca (Maria Bomani, ótima!), a garota que é comprada na infância para ser propriedade de um traficante e depois acaba se tornando, de certa forma, a líder do tráfico na Rocinha nos anos 1990. Aliás, a contextualização da época é muito boa também, embora eu considere meio aleatórias aquelas mudanças de janela e texturas, mas não chega a incomodar. Até é uma maneira de brincar com os formatos de filmagem existentes nas épocas retratadas (anos 1970-90). As escolhas de Milhem Cortez e Otto como dois líderes de tráfico rivais foi muito acertada. Eu até faço a reclamação de que o filme podia ser maior (tem apenas 82 minutos) e também vejo isso como uma qualidade. Afinal temos um filme que deixa aquele gostinho de quero-mais. Muito bom.
AUMENTA QUE É ROCK'N'ROLL
Muito da força de AUMENTA QUE É ROCK'N'ROLL (2024), de Tomas Portella, vem da sempre ótima atuação de Johnny Massaro. Ele imprime ao personagem Luiz Antônio algo que certamente teria se perdido se fosse outro ator no papel. O filme é sobre ele, sobre sua busca por criar uma rádio dedicada exclusivamente ao rock num tempo em que o rádio era o meio de comunicação mais democrático e barato do país, que ainda vivia em tempos de ditadura, mas a caminho da redemocratização. O filme de Portella é redondinho e muito gostoso de ver, principalmente para quem viveu aquele período, e também para quem é amante da energia sem igual do rock. Quando termina vemos que não se trata apenas da história da criação da primeira rádio rock do Brasil, mas também da superação do medo pelo amor, para usar as palavras da minha namorada Giselle. E o filme até faz uso de um clichê de comédia romântica para isso. Mas ficou lindo, hein. Além do mais, ouvir duas canções inteiras (ou quase) da Legião Urbana (ao contrário das demais que tocam só trechos) pode ter uma justificativa: a trilha sonora do filme é de Dado Villa-Lobos. Não sei o quanto a inclusão da banda de Renato Russo foi ou não uma "licença poética", mais ou menos como fez BOHEMIAN RHAPSODY, que brincou com a ordem dos acontecimentos, já que a história do filme termina justamente em janeiro de 1985, com os shows do Rock in Rio. O primeiro disco da Legião também foi lançado em janeiro de 85.