Robert Bresson é fascinante. O período que mais vi filmes do realizador foi entre os anos de 2004 e 2007. Ou seja, preciso rever tudo que vi. Por mais que o ideal seja rever seus filmes numa bela sala de cinema em cópias remasterizadas digitalmente, como foi o caso de O DINHEIRO (1983), revisto em 2021, o lançamento do box O Cinema de Robert Bresson pela Versátil é um verdadeiro presente para os cinéfilos, especialmente os fãs do cineasta. Como o próprio curador Fernando Brito bem disse, o próprio box é uma obra-prima. E há filmes que ainda não havia visto/não vi nenhuma vez ainda, como foi o caso de QUATRO NOITES DE UM SONHADOR (1971), que está em uma cópia tão linda que parece BluRay.
Ainda que traga alguns elementos que se destacam de outras obras do realizador, esta adaptação da novela Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski, como o inusitado de ouvirmos música brasileira, ou haver um protagonista-pintor (Bresson queria ser pintor quando jovem), a assinatura e as marcas do cineasta estão presentes de maneira muito forte. Para começar, temos mais uma vez um herói aprisionado. Não literalmente aprisionado, como em UM CONDENANDO À MORTE ESCAPOU (1956) ou O PROCESSO DE JOANA D’ARC (1962), mas alguém que é escravo de seu próprio destino pouco generoso.
Jacques (Guillaume des Forêts) é um jovem pintor que vive uma vida de desânimo e muita solidão e que tem por hábito usar um gravador portátil para lhe auxiliar na criação de suas pinturas feitas a partir de seus sentimentos mais profundos. Um dia, ele encontra uma jovem, Marthe (Isabelle Weingarten, de O ESTADO DAS COISAS), que está prestes a se suicidar, pulando da Ponte Neuf. Ele a impede e os dois passam a conversar sobre seus próprios problemas e Jacques se mostra disposto a ajudá-la.
No flashback de Marthe, ficamos sabendo seus motivos, assim como também é o momento em que o filme mais explora a sensualidade e a carnalidade: o belo corpo nu da atriz, em delicadas luz e cor, é algo que o cineasta faz para tornar a imagem da jovem atraente para os espectadores, de modo que fique muito mais fácil nos identificarmos com o sentimento de paixão crescente de Jacques por ela. Ele grava seu nome, "Marthe", repetidamente numa fitinha cassete. Ele vê o nome dela em todos os lugares. Mas ele sabe, no fundo, que, dada sua experiência de vida, dada sua falta de sorte com relacionamentos amorosos, raramente terá chance naquele jogo de entregar cartas para o homem por quem Marthe é apaixonada e esperar pela não-vinda dele, esperar por um possível sentimento que a jovem possa criar por ele nessas quatro noites do título.
Uma das cenas finais é tão perfurante no peito quanto o final de JOANA D’ARC ou as palavras finais do casal de PICKPOCKET (1959). Talvez tenha sido o filme de Bresson que mais me causou identificação com o protagonista – por mais que seja uma identificação mais com meu passado do que com meu presente. O pessimismo do realizador tem a ver com sua crença no jansenismo, uma doutrina de um pensador católico que atribui a salvação da alma ao juízo prévio de Deus e não às boas obras, não à caridade. Ou seja, se o destino de cada pessoa já está escrito, não há muito sentido em lutar tanto pela salvação, ou pelo que essa salvação possa simbolizar de bom na vida material.
Na obra de Breson, a prisão é uma metáfora para o aprisionamento espiritual. E Jacques é uma pessoa presa àquilo que o destino supostamente o transformou, ou a sua própria sorte. Assim, as composições do diretor, em sua austeridade, são ao mesmo tempo duras e carinhosas com seus personagens. É como se o ato do diretor de mostrar o movimento de seus olhos, enfatizando suas tristezas e falta de esperança no próprio destino, fosse uma maneira de ele se solidarizar com eles, dizer que os compreende. Ele, que depois de ter sido prisioneiro de guerra, fora resgatado por uma ordem de freiras. Nada dessas circunstâncias pessoais parece em vão nas obras do realizador .
+ TRÊS FILMES
O ANDARILHO NA CHUVA (Vagabundo en la Lluvia)
Muito bom o trabalho que a Versátil vem fazendo de trazer em mídia física obras que muito provavelmente passariam batidas em nosso mercado, como é o caso de certos filmes de terror mexicanos, que eu só conheci graças a eles. O ANDARILHO NA CHUVA (1968) já é o quinto filme de Carlos Enrique Taboada trazido na coleção Obras-Primas do Terror - Horror Mexicano (este no volume 3) e, mesmo sendo inferior aos outros quatro títulos, é um claro exemplo de um mestre trabalhando com poucos recursos, construindo toda uma atmosfera de suspense numa casa de campo com apenas três atrizes e um ator que faz o personagem-título, não sem antes deixar bem claro o zeitgeist de 1968, na cena inicial de uma festa. Na trama, uma mulher que espera alguém na casa traz sem querer em seu carro uma outra que estava dormindo bêbada no banco de trás. E há a figura pouco confiável de um homem que aparece com um sino amarrado na perna (o aspecto mais interessante do personagem). Achei que faltou mais intensidade, de modo que compartilhássemos o medo daquelas mulheres desse homem e talvez esse seja o principal problema do filme. Mesmo assim, são pouco mais de 80 minutos que passam voando e que até poderia ser uma peça de teatro, de tão caprichado que está o texto. Se tiver mais Taboada disponível, Versátil, pode mandar.
A HORA DA ESTRELA
Jurava que havia visto A HORA DA ESTRELA (1985), de Suzana Amaral, nos anos 1990 ou 2000, mas, pelas minhas anotações no blog, tive a certeza (?) de que o vi pela primeira vez só em 2011. A reestreia nos cinemas está sendo um sucesso, com as salas lotadas para ver as desventuras de Macabéa, uma jovem mulher semianalfabeta que veio do Nordeste para ganhar a vida em São Paulo e acaba sofrendo humilhações de vários tipos. E nem sempre ela percebe que está sendo humilhada, de tão ingênua que é. Primeiro dos três (belos) filmes de Suzana Amaral, A HORA DA ESTRELA é sua obra mais popular. Faz rir ao longo da sessão, tem cenas e falas memoráveis, e esse riso de nós, o público, vejo como de certa forma problemático, já que é como se estivéssemos também rindo dela, como se fôssemos tão cruéis quanto os demais personagens que passam por sua vida. Não sei o quanto isso "trai" a obra de Clarice Lispector, no sentido de ser mais ou menos empático com Macabéa, mas certamente oferece uma experiência própria. Sem falar que não é porque somos espectadores de cinema que somos isentos da crueldade.
ISTO É PELÉ
Lançado quatro anos após a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970, ISTO É PELÉ (1974), de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto, parece mais um filme institucional. A narração de Sérgio Chapelin torna essa impressão ainda mais evidente (a produção é da Rede Globo). Mas não há como negar a força das imagens de Pelé em campo. Seus passes, seus gols, o culto criado em torno dele, algo que as pessoas que não viveram a época ou não se interessam por documentários sobre futebol e sobre o jogador não têm ideia. A boa montagem de Eduardo Escorel une imagens do presente, com Pelé ensinando futebol para adolescentes, e imagens das copas vencidas por ele (embora a de 1962 tenha sido basicamente sem ele, que saiu mais cedo, machucado). Até o fato de as imagens não serem tão boas contribui para o predomínio da construção da mitologia em torno do jogador. E o curioso é que, em nenhum momento, o filme busca o homem Pelé, com detalhes sobre sua intimidade: há apenas o jogador. E para o personagem basta. Já para o filme, não sei se é suficiente.
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