sábado, maio 13, 2023

A MORTE DE UM BOOKMAKER CHINÊS (The Killing of a Chinese Bookie)



Em 2013/14, comecei a ver os filmes de John Cassavetes em ordem cronológica, enquanto lia o livro John Cassavetes – The Adventures of Insecurity, de Ray Carney. E estava muito gostoso fazer esse trabalho. Mas sinceramente não sei o motivo de eu ter interrompido essa peregrinação após ter visto UMA MULHER SOB INFLUÊNCIA (1974), um de seus melhores (e mais incômodos) filmes. Será que foi por causa desse aspecto incômodo? Não creio. Enfim. Meu retorno (por ora, pelo menos) à filmografia do pai do cinema independente americano se deu por vias indiretas, já que recebi como encomenda a escrita de um ensaio sobre CANASTRA SUJA, o ótimo filme de Caio Sóh, e, enquanto lia alguns textos a respeito sobre o estilo do filme e do diretor brasileiro, muitas vezes via comparações com o estilo de Cassavetes. Ora, naturalmente, precisaria entrar em contato, nem que fosse por algumas horas com o cinema do diretor nova-iorquino.

E chego ao A MORTE DE UM BOOKMAKER CHINÊS (1976), seu filme supostamente policial ou noir, embora percebamos que Cassavetes faz o possível para fugir das amarras do gênero, mui respeitosamente. Algo totalmente esperado, levando em consideração seu espírito livre e seu olhar inquietante. Não foi um filme que eu vi com prazer, talvez por ter me esquecido do estilo muito particular do diretor, mas certamente foi um filme que foi crescendo na memória afetiva à medida que pensava nele, após passar pela experiência tortuosa de Cosmo Vitelli (Ben Gazzara), o dono de um clube de strip-tease que procura não perder a pose nem nas piores circunstâncias.

O filme se demora muito no universo de Cosmo, primeiro ao vermos o protagonista num café, negociando com outros homens, a câmera trabalhando com o extracampo e a tremida denunciando a falta de um tripé como opção estética. Depois disso somos convidados a conhecer seu clube, cujas apresentações parecem brincadeiras sem ensaio em que um homem velho, vestido de forma estúpida, procura fazer graça para um público que quer mesmo é ver as moças que logo exibirão seus seios em trajes mínimos enquanto dançam como se pertencessem a um bar de décadas passadas. O bar de Cosmo, que sobrevive ao lado de cinemas que exibem filmes pornôs, parece uma espécie de resistência ao caráter explícito, parece querer trazer até um pouco de inocência, apesar de tudo. Outra característica que pode incomodar um pouco a plateia é a iluminação escura do lugar. O interesse de Cassavetes é emular um lugar daqueles.

Nessa brincadeira com o filme noir, vemos, depois de muito tempo de cenas na boate e da relação de Cosmo com suas dançarinas (uma delas, uma espécie de namorada, ou algo parecido), algo próximo a um plot, quando o herói é “convidado” a matar um homem para quitar sua dívida de jogo. Engraçado que isso é geralmente tido como a sinopse do filme, mas acontece lá pela metade da duração relativamente longa desse corte inicial, de 1976 – o corte de 1978, que não vi, procurou se recuperar do fracasso comercial do filme, cortando várias cenas.

A MORTE DE UM BOOKMAKER CHINÊS é uma obra que parece construída de forma diferente de filmes com roteiro de ferro, e essa cara de improvisação nos chama para ver o filme e não a trama. E nos convida a acompanhar a trajetória desse homem que parece querer viver apenas o presente. A fotografia, quase sempre escura, deixa no ar essa sensação de que algo muito sombrio e desconfortável está no ar desde os instantes iniciais. Impressão confirmada especialmente próximo a sua conclusão. Grande momento de Cassavetes, grande momento de Gazzara.

Enfim, espero que a continuação de minha jornada pelo cinema do diretor não demore tanto assim. Afinal, sua filmografia contém poucos títulos.

+ TRÊS FILMES

O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS (Pierrot le Fou)

Terceira vez que vejo O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS (1965), de Jean-Luc Godard, e esta terceira é a que vale. A primeira foi em 2002, num telão horroroso, com projetor ruim, depois em 2006, numa cópia relativamente boa em divx, e agora sim: no glorioso cinema, DCP 2K. Toda a beleza da fotografia em cores vivas de Raoul Coutard fica evidenciada, assim como a exuberância de Anna Karina em sua sexta parceria com Godard neste filme que brinca com o gênero criminal, mas enfatizando a diferença evidente do casal de amantes vividos por Karina e Jean-Paul Belmondo. Ele, muito ligado às artes, em especial a literatura e os quadrinhos, e ela muito mais ligada ao mundo, aos sentidos, às emoções. Ela mais musical, ele mais cerebral, como se arquétipos do masculino e do feminino. Godard homenageia Samuel Fuller, quebra a quarta parede, deixa-nos perceber que os atores estão se divertindo com as cenas de ação, mostra o assassinato como algo leve dentro da perspectiva de alguém que está loucamente apaixonado e sai pelo mundo (e dentro de um filme e não na realidade), fugindo de tudo para construir uma nova vida. Diálogos afiados, imagens lindas, espirituosidade singular em um Godard muito bem-humorado e feliz.

CÂMERA DA ÁFRICA (Caméra d'Afrique)

Achei estranho o documentário CÂMERA DA ÁFRICA (1983), de Férid Boughedir, não incluir MANDABI, de Osmane Sembene, neste interessante e necessário estudo e reflexão sobre os primeiros anos de cinema africano. O filme me fez lembrar um pouco, em estrutura, os documentários do Scorsese sobre os cinemas americano e italiano, mas com menos paixão e mais indignação e vontade, levando em consideração toda a história de exploração, violência e morte sofrida pelos países africanos por parte dos colonizadores. Ainda assim, o que temos é a apresentação de alguns filmes muito interessantes, com destaque para o hoje canonizado TOUKI BOUKI – A VIAGEM DA HIENA, de Djibril Diop Mambéty. Há também o caso muito particular da Nigéria, que optou por fazer filmes populares de modo a enfrentar com mais eficiência o cinema americano e europeu nas salas. Como se trata de um documentário de 1983, fiquei muito curioso para saber a continuação, o que aconteceu nos anos seguintes na África. Infelizmente, já sei de antemão que o progresso popular não foi tão visível assim no Brasil.

A CASA DA ESCURIDÃO (Madhouse / There Was a Little Girl)

Um dos pontos positivos deste A CASA DA ESCURIDÃO (1981) é fugir um pouco dos tradicionais slashers produzidos nos Estados Unidos na época. Trazer um diretor italiano para filmar com atores americanos sem saber falar inglês e sem explicar o que está acontecendo para os atores acaba trazendo um resultado curioso. Ovidio G. Assonitis (ESPÍRITO MALIGNO, 1974) parece rodar este filme sem roteiro e sem saber direito o que fazer. O clima de improviso fica bastante acentuado. Na trama, uma jovem mulher fica ainda mais atormentada ao saber que sua irmã louca fugiu do hospício. Enquanto isso, a figura dessa irmã, desfigurada, e com um cachorro como principal arma para atacar os amigos da protagonista, começa a ser o principal elemento do mal, pelo menos até a reviravolta perto de uma hora de projeção. Em alguns momentos, o filme respira de maneira diferente, dando mais tempo para o espectador se apegar à atmosfera. Não funcionou comigo, mas é possível que funcione com outros tantos entusiastas do filme. Visto no box Slashers XIII.

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