quinta-feira, março 11, 2021

AS LIBERTINAS



"Quando nós três, eu, Callegaro e Lima, resolvemos que iríamos fazer um filme ruim, decidimos filmar tudo da maneira como não se deve filmar habitualmente. Tivemos que desaprender cinema."
Carlos Reichenbach
(retirado do livro Carlos Reichenbach - O Cinema como Razão de Viver, de Marcelo Lyra)

Alguns filmes de Carlos Reichenbach seguem inacessíveis. Um dos que mais tenho vontade de ver é O PARAÍSO PROIBIDO (1981). Quem sabe um dia surge uma oportunidade. Assim como surgiu agora, com a exibição de dois filmes raros do início da carreira de Carlão, em exibição durante a Mostra de Cinema de Gostoso, que este ano está acontecendo online e gratuito, no período de 10 a 14 de março. Portanto, caso vocês queiram ver os filmes em segmentos AS LIBERTINAS (1968) e AUDÁCIA (1970), eis uma chance de ouro.

Falemos de AS LIBERTINAS, que foi o que eu pude ver até o momento. Trata-se de um filme feito graças aos esforços iniciais de Carlão e João Callegaro, que eram colegas na Faculdade de Cinema São Luís. Callegaro estava insatisfeito com o fato de eles serem proibidos de filmar durante o primeiro ano de curso. Assim, AS LIBERTINAS foi todo feito com recursos próprios e de forma amadora, e inspirado em filmes de praia com um pouco de nudez, em especial um que estava indo bem de bilheteria chamado SEXY GANG, de Henry Jacques.

Como era proibido falar de política naquele momento, o caminho parecia fazer filme sobre sexo. O cartaz de AS LIBERTINAS é até engraçado, pois mostra como o filme é vendido como um produto intensamente relacionado ao sexo, mas isso é algo que pode desapontar ao espectador de hoje que for com muita sede ao pote, esperando por cenas picantes. Na verdade, é mais um filme de histórias de infidelidade, todas se passando no litoral paulista, e um retrato muito interessante do Brasil do final dos anos 1960, que equilibra tanto o clima de revolução sexual com o conservadorismo do país. Isso é usado com humor na cena que mostra o casal no quarto com duas camas separadas, falando do quanto isso foi influenciado pela Hollywood pós-codigo Hays.

O primeiro episódio (que foi o último a ser rodado) é "Alice", dirigido por Carlão, que mostra um homem que se divide entre a esposa (a Alice do título) e a amante. Mas há também outros personagens na trama, mas nem sempre entendemos muito bem seus propósitos. Na verdade, a bagunça deste episódio tem sua razão de ser, além de um posicionamento ideológico, com essa coisa de fazer um filme ruim - em certo momento, o próprio Carlão chutou o tripé da câmera de seu diretor de fotografia, que ficou “p” da vida com ele por isso.

O que ocorreu é que os episódios já filmados de Antônio Lima ("Angélica") e de João Callegaro ("Ana") não davam 40 minutos de duração. Assim, Carlão teve que espichar seu segmento, para que pudesse os três pudessem dar um longa-metragem comercializável. Assim, logo que a personagem Ana sai de cena, o filme continua com outros personagens, meio que à deriva e sem muito sentido. Em certo momento, até achei que já se tratava do episódio seguinte, mas não: era mesmo fruto da imposição dos produtores e uma batata quente que caiu justo nas mãos de quem filmou o seu segmento por último.

A segunda história, "Angélica", dirigida por Antônio Lima, é bem menor e me fez lembrar algumas obras de Éric Rohmer, por causa do ar litorâneo e do interesse na juventude, mas talvez a influência maior tenha sido mesmo de Jean-Luc Godard (neste e também no filme do Carlão). Esse filme destaca uma mulher apaixonada por um homem e sente muito ciúme dele. O sujeito, por sua vez, está se envolvendo com uma garota na praia.

A terceira história, "Ana", dirigida por Callegaro, é a mais bem-resolvida e conta a história de um casal que, passando férias numa casa de praia, conhece uma jovem moça. O homem acaba se envolvendo com a moça e acontece uma reviravolta bem interessante. Aliás, é curioso como esse é o único dos três segmentos que parece ter um plot bem estabelecido. E é o único que faz valer a intenção do filme de ser graficamente erótico, graças a uma cena de três minutos de um strip-tease. Depois desse, fiquei curioso para ver O PORNÓGRAFO (1970), o único longa-metragem solo de Callegaro.

O fato é que, mesmo com todas as dificuldades de produção, AS LIBERTINAS foi um sucesso de bilheteria, conseguiu se pagar e render o suficiente para que a produtora Xanadu Produções Cinematográficas fizesse um segundo filme em segmentos, AUDÁCIA, dirigido apenas por Carlão e Antônio Lima. 

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