A reflexão sobre o machismo e a condição opressora vivida pelas mulheres de gerações passadas - nossas mães, nossas avós etc - já era um tema caro a Karim Aïnouz desde seu primeiro filme, o curta-metragem SEAMS (1993), realizado quando o cineasta morava nos Estados Unidos, e que poderia muito bem servir como extra de alguma edição especial em DVD ou BluRay de A VIDA INVISÍVEL (2019), o novo e premiado filme do diretor cearense.
Em SEAMS, Aïnouz entrevista sua mãe, suas tias e sua avó, a fim de saber como era o casamento, como era o relacionamento com os homens no passado. E a presença masculina, na grande maioria dos relatos, se mostrava, para usar um termo atual, tóxica. Em A VIDA INVISÍVEL, o diretor adapta o romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da jornalista pernambucana Martha Batalha, que conta a história de duas irmãs vivendo no Rio de Janeiro dos anos 1950, e que são separadas pelo destino, que aqui recebe o impulso de pessoas masculinas capazes de oprimir, mentir e maltratar essas mulheres. No caso, o patriarca da família de Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) é essa principal mão poderosa e opressora.
Mas, como um filme que abraça o melodrama com todas as forças, A VIDA INVISÍVEL brinca bastante com as ironias perversas da vida, com a forma como tudo parece conspirar para que aquelas duas irmãs não se vejam. A separação das duas ocorre pela primeira vez quando Guida foge com um marinheiro grego e volta para casa grávida e frustrada - o jovem que parecia ser o seu príncipe encantado era na verdade um canalha.
Guida vê como opção voltar para a casa dos pais, mas é expulsa pelo pai, que ainda conta que a irmã Eurídice está na Europa. Mal sabia Guida que sua irmã havia se casado com um homem patético, vivido por Gregório Duvivier, e que morava ali mesmo, no Rio de Janeiro. A cena do casamento e a noite de núpcias do novo casal passa toda a sensação de desconforto extremo da mulher. Na verdade, ela é praticamente estuprada na primeira noite. A imagem dos dois se olhando no espelho, após o sexo nada bom para a jovem, é memorável.
Enquanto Guida se esforça para viver uma vida de mãe solteira, Eurídice tenta não engravidar, a fim de conseguir sua tão sonhada vaga em um conservatório. Ela é pianista e gostaria muito de estudar piano, se aprofundar naquilo que mais ama. As duas, porém, vão vivendo uma vida de frustrações - Guida não consegue novos relacionamentos estáveis com os homens e Eurídice acaba engravidando sem sua vontade. O filme também afasta uma visão romântica da maternidade.
É importante destacar que nossas duas protagonistas não são mulheres conformadas com suas condições no mundo do patriarcado. Guida é independente e tenta ser alegre, ir a festas e ter aventuras passageiras com alguns homens; Eurídice, por sua vez, tenta, à sua maneira, mesmo grávida, a vaga no conservatório. Enquanto isso, o filme vai entrecortando a narrativa com as cartas que Guida envia para a irmã, com o endereço de seus pais, sonhando que um dia elas seja respondidas. Infelizmente, passam-se anos e as cartas não chegam a Eurídice.
É uma situação bastante triste, mas A VIDA INVISÍVEL, se abraça o melodrama, está mais perto de um tipo de melodrama mais duro, como o do alemão Rainer Werner Fassbinder, do que de algum exemplar hollywoodiano, como os filmes de Leo McCarey, que provocam o choro com mais facilidade. Aqui o choro fica preso na garganta, pelo menos em boa parte da metragem. Há uma busca pelas cores saturadas na fotografia de Hélène Louvart, responsável pela direção de fotografia de HAPPY AS LAZZARO, de Alice Rohrwacher, e o uso do vermelho com certa constância, além da umidade do verde das árvores. O filme foi gravado em película com uma câmera intacta de 1960, o que passa uma impressão de obra saída de tempos atrás, embora haja um diálogo direto com o momento atual.
E, há, claro, a presença maravilhosa de Fernanda Montenegro como a versão idosa de Eurídice, para fechar com chave de ouro este trabalho, vencedor da mostra Um Certo Olhar em Cannes, e um dos favoritos ao Oscar de filme internacional. Karim Aïnouz e toda a equipe, incluindo o produtor Rodrigo Teixeira, merecem todo o sucesso que a obra anda conquistando mundo afora. E isso em um momento necessário para o cinema brasileiro, que ao mesmo tempo que chegou a um ponto de excelência e de visibilidade mundial em festivais, segue sendo atacado por um governo estúpido. Estúpido, burro e perverso, como o pai de Eurídice e Guida.
+ TRÊS FILMES
CARCEREIROS - O FILME
Acredito que qualquer episódio da série televisiva seja melhor do que este longa para cinema, que se propõe centrar mais na ação e menos nos dramas dos personagens. Se fosse um bom filme de ação, os problemas de roteiro e de construção de personagens seriam perdoados. Mas infelizmente o que vemos é uma edição picotada para disfarçar a incompetência na construção de cenas de ação, muito tiro no escuro para deixar o espectador desnorteado, mas que, no fim, acaba deixando-nos desinteressados do produto. Uma pena que tanta gente boa tenha sido chamada para algo que não vingou. E é melhor o José Eduardo Belmonte voltar a fazer filmes pequenos. Para provar que ele ainda é relevante. Ano: 2019.
DIZ A ELA QUE ME VIU CHORAR
O filme de Maíra Bühler lembra CORPO DELITO e BARONESA, tanto por traçar histórias de pessoas com uma câmera quase sempre parada e que parece tentar não se intrometer no drama dos personagens. Aqui vemos um grupo de pessoas, a maioria delas usuárias de crack, que moram em uma espécie de hotel, feito na época do governo do Haddad. Vemos as paixões dessas pessoas (seja por alguém, seja por causa da violência), o quanto estão deficientes de ter um pensamento mais lúcido devido ao vício na droga, mas também muito sentimento de amor entre as pessoas. O fato de a câmera não mostrar direito o ambiente do quarto em que vivem e mais enquadramentos nos rostos faz com que fiquemos um tanto desconfortáveis. Mas isso imagina-se ser a proposta do filme. Ah, a canção do repertório de Tim Maia que dá título ao filme ("Pede a ela") é cantada por um dos morados e é de arrepiar. Direção: Maíra Bühler. Ano: 2019.
O JUÍZO
Importante lembrar que o primeiro longa de Andrucha Waddington foi um filme de gênero: o bom GÊMEAS (1999). Passadas algumas décadas, o diretor aproveita a onda do terror nacional para contar esta história de uma família atormentada pelo pecado de um patriarca, na época da escravidão. É um filme bem estranho (o que é o lado positivo) e com uma aparência feia (a única coisa bonita é a Carol Castro, quase um contraponto a tudo), fotografia sem a menor preocupação em parecer bela e uma câmera na mão que lembra alguns exemplares do terror contemporâneo vindos dos Estados Unidos. O garoto que faz o filho do casal é interpretado pelo filho de Fernanda Torres (aqui como roteirista) com o diretor. No mais, como história, vale pensar sobre possíveis aproximações de espíritos em momentos ébrios. Ano: 2019.
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