sexta-feira, abril 04, 2014

NOÉ (Noah)























Surpreendente. É um dos adjetivos que mais se aplicam a NOÉ (2014), épico bíblico de Darren Aronofsky, que oferece tantas nuances e liberdades poéticas que pode até ser considerado um filme maldito pelos cristãos fundamentalistas, bem como também por judeus e, obviamente, pelos mulçumanos. A atitude transgressora do diretor e de seu corroteirista foge totalmente do que se esperaria de um filme sobre a Arca de Noé.

Em NOÉ, o mau não é totalmente mau, possui uma espécie de dignidade. O filme passa uma ideia de que a descendência de Caim foi largada por Deus. Nem é preciso muito esforço para encarar o vilão da história, Tubal-cain (Ray Winstone), como um homem que sofre com a ausência de Deus, com o seu abandono. Esses tons de cinza nos personagens, mesmo esses que foram inventados, ajudam a enriquecer o filme.

Outro elemento louvável na obra é a ampliação do papel da mulher. No texto bíblico original, fruto de uma sociedade patriarcal extremamente machista, nem mesmo a mulher de Noé tem nome. No filme temos Jennifer Connelly encarnando Naamé, a esposa dedicada, mas que também toma uma iniciativa importante quando discorda do posicionamento do marido. Na Bíblia, principalmente no Antigo Testamento, a mulher exerce uma posição de quase apagamento. As que mais se destacam são sedutoras ou traidoras, como Eva ou Dalila.

Mas o que mais impressiona mesmo é o modo como o filme mostra a personalidade e as motivações de Noé (Russell Crowe), que beira à loucura. Esse Noé tão cheio de falhas é também um Noé católico, no sentido de que é carregado por um intenso sentimento de culpa. Para ele, toda a humanidade deve perecer, pois todos são maus. Inclusive ele e sua família. Isso é um ponto de vista muito interessante. A herança do pecado de Adão e Eva e também o de Caim são apresentados desde o começo e reforçados ao final, mas o filme não bate o martelo, deixando muitos espaços abertos para que os espectadores tirem suas próprias conclusões.

Ainda no campo dos personagens, uma das coisas que mais impacta o espectador no filme é a solidão forçada de Cam (Logan Lerman), o filho do meio de Noé. Talvez mais até do que a situação dramática da personagem de Emma Watson, Ila, a jovem que se tornaria a companheira de Sem. Ela se encontra em maus lençóis em determinado momento da narrativa.

E, falando em solidão, impressionante o quanto se sente a ausência de Deus no filme. Ele está lá, a mensagem é enviada para Noé, mas Ele não fala, não se ouve a Sua voz, como nos antigos épicos bíblicos. É como se finalmente o cinema tivesse alcançado a maturidade que a literatura alcançou séculos atrás, com o surgimento do romance, que passou a apresentar heróis sem Deus (ou deuses) intervindo ou ajudando.

Inclusive, a própria crueldade divina é questionada, mas isso não chega a ser novidade para os cristãos, já que na própria Bíblia ele se mostra um deus de se arrepender pelo que faz. Um deus muito próximo da imagem do homem. Além do próprio dilúvio, que é uma chacina de inocentes (e também de culpados, que seja), sentimos estes atos cruéis de Deus quando somos apresentados aos Guardiões, um grupo de gigantes de pedra inventados pelos roteiristas e que funcionam muito bem dentro do enredo, além de ter uma participação decisiva na construção da Arca.

Cineasta de apenas seis filmes em seu currículo, Aronofsky prova cada vez mais o seu valor a cada novo trabalho. Uma pena ter perdido tanto tempo se dedicando a um filme torto como FONTE DA VIDA (2006), mas ainda assim é um trabalho a ser reavaliado diante da grandeza e do que ele apresenta em NOÉ e levando em consideração o fato de terem pontos em comum.

O que notamos nestes filmes bíblicos modernos é o quanto eles são feitos à imagem e semelhança de seus autores (Aronofsky, Scorsese, Gibson e, voltando um pouco mais no tempo, Nicholas Ray). Não são mais meros trabalhos de encomenda para passar em igrejas ou ser exibidos na Sexta-feira da Paixão, embora ainda existam produções desse tipo, mas que acabam se tornando esquecidas, genéricas. Definitivamente, não é o caso de NOÉ. E olha que nem mencionei o espetáculo visual oferecido pelos efeitos especiais, pela qualidade do IMAX 3D, pelo cuidado com a fotografia e a direção de arte e a ousadia nos figurinos.

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