quarta-feira, janeiro 04, 2012

CINZAS QUE QUEIMAM (On Dangerous Ground)



E continuando a peregrinação pela obra de Nicholas Ray, chego a um de seus melhores filmes: CINZAS QUE QUEIMAM (1952). E devo começar dizendo que tudo que falei sobre a falta de força na interpretação de Robert Ryan em HORIZONTE DE GLÓRIAS (1951) pode ter sido uma bobagem de minha parte. Vi depois uma interpretação muito boa dele em A ESTRADA DOS HOMENS SEM LEI (1951), mas neste autêntico filme de Ray ele está soberbo. Além do mais, nunca Ray havia se cercado de tanta gente de talento para auxiliá-lo. Além de Ryan, há Ida Lupino, como a moça cega da segunda parte do filme; há Ward Bond, como o pai de família que quer vingar o assassinato da filha; há a excelente trilha sonora de Bernard Herrmann, poucos anos antes de se tornar famoso por sua parceria com Alfred Hitchcock; e há a ótima fotografia de George E. Diskant, que já havia trabalhado com Ray em AMARGA ESPERANÇA (1948) e em A VIDA ÍNTIMA DE UMA MULHER (1949), mas é aqui que ele atinge o seu máximo.

Além do mais, o filme tem uma importância crucial para a definição do gênero policial em Hollywood. Embora haja ainda muitos clichês do film noir, nota-se que CINZAS QUE QUEIMAM dá um passo adiante na construção de uma dramaturgia diferente, mais moderna. Toda a produção do filme parece conspirar a seu favor. Desde o início, mostrando uma mulher segurando um revólver e dando-o com carinho ao marido, um policial, aprontando-se para sair e cumprir o dever, representando tanto o fálico, o violento, quanto a importância da família. A família que é tão valorizada nos filmes de Ray, mas que é também desestruturada.

E se o cineasta hoje é conhecido como o "poeta da noite", em CINZAS QUE QUEIMAM ele faz jus ao título. Só depois de uns quarenta minutos, quando o filme muda de local, é que vemos uma cena diurna. Até então, a escuridão da noite perigosa e cheia de bandidos da cidade predomina. Depois desses quarenta minutos, o filme também nos mostra que a trama não trata da busca do assassino de um sargento da polícia, tão enfatizada no início, mas da busca de um homem (Ryan) por sua própria redenção, pelo seu destino. Há em Jim Wilson, o personagem de Ryan, uma similaridade com o escritor vivido por Humphrey Bogart em NO SILÊNCIO DA NOITE (1950). Ambos são facilmente irascíveis. E é por causa disso, por quase matar bandidos na porrada, que Jim é enviado como castigo para uma região gelada do interior dos Estados Unidos, para investigar o assassinato de uma garotinha.

E é só lá que a personagem de Ida Lupino nos é apresentada. Ela, cujo nome aparece em destaque junto com o de Ryan na mesma "página" dos créditos de abertura. Como a cega Mary, Lupino não vai ser apenas importante para a resolução do crime e ser o interesse amoroso do solitário policial, mas também fundamental para enfatizar o contraste, tão presente nessa obra de Ray. Em certo momento do filme, quando Jim diz a ela que é policial e que aprendeu a não confiar em ninguém, Mary diz que é cega, e se sente obrigada a confiar em todo mundo. Os dois são como opostos complementares. Ironicamente, Mary, vivendo na escuridão, é como uma luz para a vida sombria de Jim. Um dos momentos mais belos do filme é quando vemos Mary orando, em tom bem próximo de Jesus na cruz, para que Deus perdoe os pecados do irmão, pois ele não sabia o que fazia.

Há também a tendência de Ray a resistir ao melodrama, de fazer um cinema de contenção e tensão. Só achei a sequência final do filme tão deslocada que parece até um sonho, um delírio do protagonista. Depois, soube que ela foi incluída por causa dos produtores e não por vontade de Ray. Ainda assim, ela ficou bem bonita.

P.S.: O Pipoca Moderna publicou dessa vez o resultado final dos votos dos críticos e colaboradores para eleger os melhores filmes de 2011. Confiram AQUI!

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