Lembro com saudade da excitação que foi sair do trabalho sozinho à noite para ir a um cinema da Aldeota (o saudoso Cine Center Um) para ver ASAS DO DESEJO (1987). Acho que foi em 1989, e justamente por isso já posso imaginar o quanto aquele meu primeiro ano como cinéfilo estava mexendo com minha cabeça e me deixando tão entusiasmado para conhecer o trabalho de cineastas aclamados pela crítica. É bom lembrar que naquela época Wim Wenders estava no seu auge, vinha da obra-prima PARIS, TEXAS (1984) e de outros filmes feitos nos Estados Unidos, e por isso sua reputação estava intacta.
Uma das coisas que mais me impressionou em ASAS DO DESEJO foi minha identificação com o anjo Damiel (Bruno Ganz). Principalmente sua solidão, sua invisibilidade e seu amor platônico pela trapezista Marion (Solveig Dommartin, deslumbrante). Também me identifiquei com a ânsia (e a inveja) dele pela vida terrena, pelo cansaço do etéreo e da pureza divinal. Vindo de família evangélica e de uma educação austera e de proibições, demorei a me permitir viver a vida com mais intensidade. Ainda nem tinha 18 anos de idade, mas era como se sentisse o peso do tempo passando rapidamente, como se sentisse uma urgência imensa. E é curioso como esse filme trouxe toda essa carga de sentimentos de maneira tão forte em mim.
Muito do meu entusiasmo por este filme e por outros de destaque que chegavam ao circuito local vinha das críticas e ensaios que lia na revista SET, a primeira e praticamente a única publicação de cinema que me servia de farol. O auge da revista foi justamente em fins dos anos 1980 e início dos 90. Antonio Querino Neto escreveu um texto grande sobre o filme na edição de maio de 1989 em que destacou a sensibilidade de Wenders para falar sobre a solidão, o tédio e a incomunicabilidade. Na verdade, sobre o filme em si ele escreveu pouco: traçou um longo painel sobre a carreira e as obsessões de Wenders para confirmá-lo como um dos grandes autores de seu tempo.
ASAS DO DESEJO foi feito sem roteiro. Wim Wenders tinha essa ideia sobre dois anjos vagando por Berlim em um filme com fotografia em preto e branco, mas não tinha muito mais em mente. Teve sorte de ter um currículo excepcional e assim receber financiamento para a produção de um filme sem um script de apresentação. E até mesmo o amigo com quem ele contava para fazer o roteiro não topou, apenas ajudou a criar alguns diálogos poéticos e existencialistas. Esse amigo era Peter Handke, grande escritor austríaco que ganharia em 2019 o prêmio Nobel de literatura, e que havia colaborado com dois filmes dos anos 1970 do diretor.
Então, Wenders foi fazendo o filme como se tateando, como se esperasse mensagens de rádio ou dos anjos a cada novo dia de filmagens. Quando convidou Peter Falk, o eterno Columbo, para interpretar a si mesmo em passagem pela Alemanha (ainda dividida), o ator topou, mesmo sabendo que não havia roteiro pronto. Ele já tinha experiência em trabalhar com John Cassavetes, que fazia algo parecido. Há uma cena em que Falk experimenta chapéus para o figurino que Wenders filmou sem compromisso e acabou entrando no corte final.
Das cenas mais marcantes, a que mais ficou em minha memória foi a da performance de Nick Cave. Nunca tinha visto nada parecido e a música se amplifica e muito numa sala de cinema. Era uma época em que o rock começava a me deixar apaixonado. E paixão tem tudo a ver com essa cena, já que é o momento em que, durante um sombrio e belo show de rock, duas almas se encontram: o homem que já foi um anjo e abdicou de sua imortalidade por amor e a mulher que, de certa forma, já sentia a sua presença invisível. Então, toda a expectativa que o filme criara até então no sentido de uni-los se manifesta naquela cena especial. E são estranhas as palavras que o escritor Peter Handke põe na boca de Marion, beirando o artificial, no momento que ela encontra Daniel, mas é uma estranheza que me agrada.
Além do mais, é difícil não se apaixonar por Marion/Solveig Dommartin desde sua primeira aparição no circo. É como se ela tivesse mais leveza do que os próprios anjos. A atriz aprendera o ofício de trapezista para o papel. E fez aquelas cenas sem a rede de proteção e sem dublês. Wenders conta que ela chegou a cair no chão uma vez e a melhor coisa a fazer, segundo o pessoal do circo, era agir como se não tivesse sido um grande problema e fazê-la retornar rapidamente ao trapézio, para que não gerasse um trauma ou algo parecido. Como revi o filme no BluRay lançado pela Versátil, e com comentários em áudio de Wenders, fiquei impressionado com o fato de ele não citar em nenhum momento a beleza da atriz, ou sua morte, ocorrida em 2005, ainda muito jovem, aos 45 anos.
Antes da antológica cena do show (e do encontro do casal), os anjos passeiam pela cidade e se solidarizem com as aflições humanas, em sequências lentas e contemplativas, abrindo espaço para reflexões, seja da própria vida, do estar vivo como um mortal comum, seja de questões como guerra e paz, algo ainda presente nas feridas da própria Berlim, que, ainda por cima, possuía aquele muro horrível em sua geografia. Ou seja, ASAS DO DESEJO é um filme que transcende a história de amor de Damiel e Marion.
Do ponto de vista formal, a exuberante fotografia de Henri Alekan, seja em lindíssimo preto e branco ou em technicolor destacado, além dos travellings de Wenders em lugares como a biblioteca ou as ruas da cidade, tudo isso contribui para que uma atmosfera que mistura angústia e encantamento se apresente coerente com esse pensar e sentir de maneira intensa e urgente.
Agradecimentos a Paula, pela companhia durante a sessão.
+ DOIS FILMES
MEU FIM. SEU COMEÇO. (Mein Ende. Dein Anfang.)
O filme é vendido como algo que traz uma história que enfatiza o deja vu. No fim das contas, esse elemento é muito pouco usado em MEU FIM. SEU COMEÇO. (2019), de Mariko Minoguchi, embora haja um jogo temporal interessante, traçando um paralelo entre a vida da protagonista feminina e a do homem cuja filha precisa fazer um transplante de medula. E há também os flashbacks da personagem com o namorado, que nos apresentam à relação dos dois, à intimidade, à gênese. Acredito que o filme funcionaria melhor se fosse uma história de luto pura e simples do que o jogo temporal que intenciona tecer. Também senti falta de mais calor (sentimentalmente falando) nas cenas de intimidade entre os casais. E não creio que seja culpa da cultura alemã, supostamente mais fria.
FIM DE CASO (The End of the Affair)
Mais uma experiência de retirar do arquivo quase morto da memória uma lembrança adormecida. Só o que me lembrava de FIM DE CASO (1999), de Neil Jordan, era de ter saído do Cine São Luiz sob o impacto de algo especial. Foi bom rever até para tê-lo agora em mente sob um outro prisma. Agora a questão da fé me pareceu mais forte do que a própria ênfase no relacionamento amoroso que o casal Ralph Fiennes e Julianne Moore tem e que é finalizado após uma situação específica. Neil Jordan nos coloca como se estivéssemos vendo um filme dos anos 1950, como aqueles melodramas da época, seja pela voice over, seja pela intensidade dramática e pela música que vai nos levando a um território de provável dor. Não foi a única adaptação do romance de Graham Greene. Em 1955, Edward Dmytryk também o adaptou, estrelado por Deborah Kerr. Aqui no Brasil esse filme se chamou PELO AMOR DE MEU AMOR. Faz todo o sentido pela história.
+ DOIS FILMES
MEU FIM. SEU COMEÇO. (Mein Ende. Dein Anfang.)
O filme é vendido como algo que traz uma história que enfatiza o deja vu. No fim das contas, esse elemento é muito pouco usado em MEU FIM. SEU COMEÇO. (2019), de Mariko Minoguchi, embora haja um jogo temporal interessante, traçando um paralelo entre a vida da protagonista feminina e a do homem cuja filha precisa fazer um transplante de medula. E há também os flashbacks da personagem com o namorado, que nos apresentam à relação dos dois, à intimidade, à gênese. Acredito que o filme funcionaria melhor se fosse uma história de luto pura e simples do que o jogo temporal que intenciona tecer. Também senti falta de mais calor (sentimentalmente falando) nas cenas de intimidade entre os casais. E não creio que seja culpa da cultura alemã, supostamente mais fria.
FIM DE CASO (The End of the Affair)
Mais uma experiência de retirar do arquivo quase morto da memória uma lembrança adormecida. Só o que me lembrava de FIM DE CASO (1999), de Neil Jordan, era de ter saído do Cine São Luiz sob o impacto de algo especial. Foi bom rever até para tê-lo agora em mente sob um outro prisma. Agora a questão da fé me pareceu mais forte do que a própria ênfase no relacionamento amoroso que o casal Ralph Fiennes e Julianne Moore tem e que é finalizado após uma situação específica. Neil Jordan nos coloca como se estivéssemos vendo um filme dos anos 1950, como aqueles melodramas da época, seja pela voice over, seja pela intensidade dramática e pela música que vai nos levando a um território de provável dor. Não foi a única adaptação do romance de Graham Greene. Em 1955, Edward Dmytryk também o adaptou, estrelado por Deborah Kerr. Aqui no Brasil esse filme se chamou PELO AMOR DE MEU AMOR. Faz todo o sentido pela história.
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