Costumo ver a década de 1940 como o período mais sombrio da história do cinema. Ou da história da humanidade no mundo moderno, talvez. Isso por causa da Segunda Guerra Mundial e seus anos posteriores, de luto e tristeza. Saber que o mundo era um lugar terrível, uma espécie de purgatório, não deve ser fácil. E isso o cinema soube explorar bastante, com seu ciclo de filmes noir cínicos e desesperançados. Outros gêneros, como o horror, o melodrama, o filme de guerra e o western foram contaminados com esse espírito sombrio. E talvez o maior exemplar de faroeste sombrio dessa década seja CONSCIÊNCIAS MORTAS (1943), de William A. Wellman.
Lembro que na época que vi este filme pela primeira vez, em um Corujão, fiquei absolutamente impressionado, comovido, tenso e muito intoxicado com a situação de iminente linchamento/enforcamento de três homens inocentes por uma turba ensandecida que queria “fazer justiça”. Os três homens eram vistos como os responsáveis por terem matado um rancheiro local e roubado seu gado. Como o xerife estava fora da cidade, os demais habitantes resolvem punir os supostos criminosos.
Apenas três homens são contrários ao enforcamento cruel daqueles homens. Um deles é o personagem de Henry Fonda e um outro é um pastor negro (Leigh Whipper), que já havia sofrido com o linchamento de seu próprio irmão no passado. Ou seja, é também admirável como o cinema de Hollywood daquele período já fazia esse tipo de ataque aos linchamentos que eram feitos com frequência a pessoas negras, especialmente no sul dos Estados Unidos.
Aliás, um dos homens linchados é um mexicano, um homem de pele mais escura, vivido por Anthony Quinn. É admirável como um filme como este, tão cru, tenha sido realizado na Hollywood daquela época. CONSCIÊNCIAS MORTAS teve a coragem de escancarar, mesmo que de maneira pouco explícita, o que vinha acontecendo nas ruas das cidades americanas, já que os latinos também eram um povo que estava sofrendo violência da população branca dos Estados Unidos. E o mais assustador é que hoje essa realidade ainda está presente em nossa sociedade. No Brasil, inclusive. Bem mais do que nos Estados Unidos, hoje em dia, já que temos uma sociedade com uma disparidade social muito maior.
Há um texto arrepiante publicado na SET, na saudosa sessão "Filmoteca", que convidava pessoas que geralmente não faziam parte da equipe da revista para escrever um texto sobre um filme-chave de sua vida. Acabei de reler, então, o texto de Perseu Abramo sobre esse filme de Wellman. E o início, tão bom quanto grande literatura, me deixou impressionado. Abramo começa assim:
“O laço na ponta da corda, a corda pendurada na árvore, a árvore solitária no canto escuro, o escuro do pavor no olho do homem aterrorizado. Ele vai ser linchado. Os outros dizem que ele não roubou os bois. Ele sabe que não tem como provar sua inocência. Porque o crime que ele realmente cometeu é imensamente mais grave: ele é diferente, ele é estrangeiro, ele é escuro.”
Que baita soco no estômago. CONSCIÊNCIAS MORTAS é um dos títulos que melhor representa os limites de civilização e barbárie dentro daquele país em formação, do ponto de vista da aplicação das leis, mas também do senso de humanidade. Acho que o início do filme já apresenta algum tipo de animalização do homem. O filme inicia com os personagens de Henry Fonda e Harry Morgan conversando com o dono do saloon, que nos deixa claro que naquela cidade não havia nada para fazer, a não ser beber, jogar e brigar. Nem mulheres solteiras mais havia. Não que isso seja um motivo mínimo para fazer o que fizeram. Mas talvez seja um detalhe importante a ser evidenciado no sentido de que sem as mulheres a civilização tende a se tornar ainda mais bárbara.
O tipo de atuação no filme é bem menos melodramática do que a maioria das produções daquele período. Não sei se havia uma intenção maior de que o filme fosse visto como uma obra “superior” aos demais westerns que se faziam, mas há um texto muito interessante de André Bazin em que ele usa o termo “metawestern”, como o conjunto das formas adotadas pelo gênero depois da guerra. O tal subgênero, por assim dizer, seria “um western com vergonha de ser ele próprio e que procuraria justificar sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica..., em suma, por algum valor extrínseco ao gênero e que supostamente o enriqueceria.” E Bazin conta que sua origem remonta a 1943, com CONSCIÊNCIAS MORTAS.
De todo modo, tendo sua criação de forma pensada ou não para ser uma obra mais sofisticada dentro do gênero, o que importa é o quanto o filme permanece vivo e lembrado. Aliás, como esquecer a leitura em voz alta da carta de um dos homens mortos (Dana Andrews) para sua esposa, após a verdade ser revelada? Só resta aos demais amargar a culpa, tentar conviver com ela ou simplesmente esquecer que aquilo aconteceu.
Mais uma observação: vendo o trailer do filme presente no box Cinema Faroeste Vol. 8, percebi o quão diferente Hollywood quis vender a obra para os espectadores. No trailer, Henry Fonda aparece falando do romance de Walter Van Tilburg Clark, sobre o quanto se trata de uma obra-prima e do quão orgulhoso ele se sente em fazer parte de uma adaptação para o cinema. Ou seja, o caráter de prestígio de fato era uma intenção do estúdio na hora de vender o filme. Confesso que nunca havia visto um trailer assim no cinema da Velha Hollywood, exaltando a literatura como forma de valorizar o produto audiovisual. Nem com ...E O VENTO LEVOU fizeram assim.
+ DOIS FILMES
PARIS 1900 (Paris Mil Neuf Cent)
Um trabalho de resgate muito interessante sobre os 15 primeiros anos do século XX em Paris, passando pela alegria e pela vanguarda dos anos iniciais, que contavam com a presença de intelectuais e artistas de todo o mundo na capital e as mulheres procurando se libertar de muitas amarras (espartilho, vestidos). A coisa começa a ficar mais pesada a partir da década seguinte, quando a movimentação para a primeira guerra se apresenta. PARIS 1900 (1943), de Nicole Védrès, também mostra a maior enchente da história de Paris, ocorrida em 1910, além de primeiras tentativas (frustradas) de homens de voar. Ainda assim, confesso que não foi um documentário que me deixou muito entusiasmado.
O BECO DAS ALMAS PERDIDAS (Nightmare Alley)
Com a estreia nos próximos dias da versão de Guillermo del Toro para o romance de William Lindsay Gresham, tive vontade de entrar em contato com esta primeira versão, dirigida por Edmund Goulding (GRANDE HOTEL, 1932). O BECO DAS ALMAS PERDIDAS (1947) tem aquela linha amarga que imperava nos noirs da década de 1940, com personagens sem muito escrúpulos tentando enganar os outros. Tyrone Power está muito bem como um artista novato em um circo que vai galgando posições cada vez maiores graças a sua inteligência para aprender e malandragem para desenvolver suas habilidades. Quando ele aprende a enganar as pessoas no truque da adivinhação do pensamento, ele logo parte para melhores lugares além-circo. Achei o filme um pouco prejudicado pelo ritmo e tem uma parte que parece ter sido cortada, lá pelo terceiro ato. Por isso, acredito que del Toro deve ter conseguido fazer uma obra melhor. Vamos ver.
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