O show de Caetano & Bethânia em 2024 estaria para o show de reunião dos Titãs em 2023, em grau de importância e de escala. Mas a comparação talvez não seja muito justa, levando em consideração que Caetano Veloso e Maria Bethânia estão muito mais tempo entre nós. Estava comentando ontem com a Giselle, depois que saímos do show e sentíamos aquela dificuldade de encontrar um Uber para voltar para casa, o quanto é incrível estarmos em pleno 2024 e vendo um show de dois artistas que já começaram gigantes em meados dos anos 1960. Por isso me emocionou tanto quando os dois cantaram “Oração ao Tempo”, a quarta canção do show, estando eles ali, saudáveis, na faixa dos 70 e 80 anos de idade, como que se tivessem conseguido um acordo com o “tambor de todos os ritmos” e o “compositor de destinos”.
E foi este o momento que meus olhos marejaram, eu me lembrei do meu grande amigo Santiago, que me fez conhecer mais o Caetano. E Giselle também lembrava de um amigo querido, Weliton, fã de Bethânia, falecido neste ano. Ela dedicou o show a ele algumas vezes. Acho bonito e tocante essa relação da Giselle com as pessoas queridas que se foram. Faz-me lembrar François Truffaut, cineasta estimado. No caso dela, especificamente, o que é ainda mais bonito é que isso não passa a ser uma virada de chave para a tristeza, não chega a diminuir a alegria em seus olhos ou o sorriso em seus lábios, nem muito menos a alegria de estar viva e celebrando a vida.
A expectativa para o show era grande. Compramos o ingresso logo no primeiro dia de abertura, com medo que acabasse logo, como aconteceu em algumas cidades. Não esgotou, mas o Arena Castelão é um lugar enorme, de todo modo, e fazia tempo que não via tanta gente reunida. As minhas expectativas quanto ao repertório já haviam sido diminuídas, pois gosto de acompanhar o setlist antecipadamente dos shows nas cidades. Então, já percebia que havia canções que não conhecia ou não gostava tanto e que gostaria que fossem substituídas. Mas não sou eu quem faz o show, são eles. E a Caetano e Bethânia, a gente não reclama; a gente agradece.
O show começa com “Alegria, alegria”, canção da fase inicial de Caetano, de 1967, e que hoje é comumente associada aos movimentos de resistência do Brasil da época da ditadura. É também uma canção do movimento tropicalista e outras três desse período seriam tocadas ao longo do show, “Tropicália”, “Baby” e “Não identificado” Aliás, “Não identificado” foi outra que me emocionou muito. Acho que não havia percebido o quão romântica era; acho que a percebia mais como uma canção inovadora do ponto de vista formal, olhava mais para sua modernidade exuberante. Dessa vez, a ideia de uma canção “dizendo tudo a ela” que brilharia na noite no céu de uma cidade do interior, como um objeto não identificado, isso é lindo demais. E o trabalho de direção de arte do show, nesse momento, mostrou o espaço sideral. De cair o queixo.
A segunda canção da noite foi muito especial, “Os mais doces bárbaros”, da antológica reunião do quarteto fantástico da Bahia – Caetano, Bethânia, Gal e Gil. Ela tem algo de chegar-chegando, e de chegar com amor e com felicidade, mas também como uma invasão, fazendo a união do doce bárbaro Jesus com símbolos do candomblé, como a espada de Ogum, a bênção de Olorum e o raio de Iansã. Seria uma ótima canção para abrir o show, inclusive. Mas entendo a opção por “Alegria, alegria”, justamente por ser mais famosa.
Dessa primeira parte do show, com Caetano e Bethânia no palco, destacaria também, além das já citadas “Oração ao Tempo” e “Não identificado”, duas que considero essenciais: “A tua presença morena” e “Cajuína”, que ganhou um arranjo muito diferente, com bastante percussão, o que me trouxe sentimentos mistos, já que trata-se de uma canção de origem triste, a lembrança de Torquato Neto, a visita de Caetano ao pai do poeta falecido. Algumas canções não me pegaram neste primeiro bloco, tipo “Eu e água” e “Motriz”, mas faz parte.
Eis que Caetano fica sozinho no palco e, de posse unicamente de seu violão, faz todo mundo cantar “Sozinho”, de Peninha, que fez um sucesso estrondoso quando ele regravou a canção em 1998. Acho que foi o momento de maior participação do grande público, em que o cantor podia facilmente deixar as pessoas cantando sozinhas, mas a voz dele é tão boa, ele é um artista tão completo, que é gostoso demais ouvi-lo. Depois vem outro sucesso, “O leãozinho”, que podia muito bem ter ficado de fora. Entrou naquele tipo de música que todo mundo já ouviu tanto que cansou.
A próxima, a cover de Fernando Mendes “Você não me ensinou a te esquecer”, era uma das mais aguardadas por mim. Acho linda a versão original de Mendes e a versão de Caetano é magistral. Senti falta dos violinos e violoncelos da versão de estúdio, mas ficou muito bonita com banda e metais. Acho que é uma canção que já me fez chorar tantas vezes que esperava entrar em prato no momento do show, o que não necessariamente aconteceu. Já havia comentado com a Giselle sobre o quanto fico particularmente tocado com canções em que o eu lírico pede perdão (como “A vida é doce”, do Lobão; “The heart of the matter”, na voz de Renato Russo; “Espumas ao vento”, nas vozes de Fagner e de Ney Matogrosso, “Jealous guy”, de John Lennon etc.).
Depois teve “Você é linda”, que cantei com alegria para a Giselle, feliz de estar do lado dela, e é uma canção incrível na construção poética e na sofisticação da voz do mestre. Caetano batia no peito nas passagens em que cantava “Onda do mar do amor que bateu em mim”, com aquele quê de poesia simbolista que valoriza a repetição de consoantes.
Em seguida, para encerrar esta fase de Caetano sozinho no palco, ele agradece a Peninha, a Fernando Mendes e fala do aumento do número de evangélicos no país e do quanto achou importante trazer “Deus cuida de mim”, de Kleber Lucas. Nem todos os fãs mais raiz do Caetano devem ter gostado, mas percebi uma boa aceitação de várias pessoas. Lembrei de minha mãe, que cantou com alegria e devoção essa canção no dia que coloquei essa música para tocar no carro.
O momento Bethânia sozinha começou com “Brincar de viver” (Guilherme Arantes), que achei bem bonita de ouvir, especialmente com o arranjo de metais, mas difícil mesmo é ficar sem se empolgar quando ela canta “Explode coração” (Gonzaguinha), que é uma canção tão curta e lírica quanto explosiva. Emocionei-me, logo em seguida, com “As canções que você fez pra mim” (Roberto e Erasmo), que ficou incrível demais. O que é aquele solo de metais, que muito lembra a própria versão de Roberto? Uma canção avassaladora que só tem a ganhar com a voz e a performance de Bethânia. Depois veio “Negue”, outra tijolada, do repertório de Nelson Gonçalves, mas que hoje em dia todo mundo só lembra da versão de Bethânia, do clássico Álibi (1978). Aliás, bem que os novos artistas podiam resgatar mais essas canções da velha guarda. A canção que fechou este bloco de Bethânia foi “Vida” (Chico Buarque), que eu desconhecia.
As emoções da noite ainda seguiriam com os dois juntos retornando com uma homenagem à escola de samba Mangueira, seguida de uma homenagem a Gal Costa com “Baby”, que não funcionou muito bem nas vozes nem de Caetano nem de Bethânia, e com “Vaca profana”, esta sim funcionou, principalmente pelo arranjo mais rock’n’roll e pelo barulho que a banda fez, antecipando outro clássico do rock brasileiro dos anos 1970, “Gita”, de Raul Seixas. Acho que fazer cover de Raul é sempre uma tarefa ingrata, especialmente dessas canções mais icônicas, mas ficou no mínimo interessante o novo arranjo. Depois veio “O quereres”, com sua poesia incrível, uma cover de IZA, chamada “Fé”, que mostra o quanto Caetano gosta de se aproximar das novas gerações de cantores e cantoras, e depois “Reconvexo” e “Tudo de novo”.
No encore, a canção especial e exclusiva para o show de Fortaleza foi a lindíssima “Mucuripe” (Fagner/Belchior), que só reclamo por ter sido cantada muito rapidamente. É uma canção que me faz lembrar de meus tempos no Coral do IBEU. E terminaram com a canção-mantra “Odara”, que foi finalizada só com a banda e os backing vocals, enquanto as duas entidades já haviam se despedido discretamente.
Uma oportunidade dessas, um show como esses, acontece praticamente uma vez na vida. Que bom que tivemos a chance de estar lá. Vi que vários amigos estavam por lá, pela repercussão nas redes. E acredito que todo mundo voltou pra casa odara.