domingo, novembro 16, 2025

MORTOS QUE CAMINHAM (Merryl’s Marauders)



Estou tentando, nesta fase de adaptação da nova morada, enquanto também preciso comparecer para revezamento com minhas irmãs na casa de minha mãe, dar seguimento à peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller, que comecei em 2023 e sei que é praticamente impossível eu terminar em 2025, uma vez que Fuller fez filmes até 1990. Até seria possível, se eu não quisesse ver mais nada que não fossem seus filmes. O importante é que o cineasta segue me surpreendendo. Embora muitos de seus elementos e obsessões passem a se tornar familiares, há sempre algo de novo no filme seguinte do realizador.

Dos filmes de guerra de Fuller, MORTOS QUE CAMINHAM (1962) foi o que mais me comoveu. Pode não ser tão plasticamente belo quanto NO UMBRAL DA CHINA (1957) e PROIBIDO! (1959), sendo que este é mais um pós-guerra, mas é impressionante a condução do diretor tanto nas cenas de batalha, envolvendo muitos soldados/atores/figurantes, quanto (e principalmente) nas cenas mais calmas, por assim dizer. Aliás, é justamente nessas cenas que Fuller demonstra seu imenso coração e sua capacidade de criticar a guerra de dentro do sistema ao usar recursos do próprio exército dos Estados Unidos para nos apresentar ao horror e ao absurdo do conflito, em especial da trajetória/tragédia de centenas de homens que atravessam longos quilômetros para chegar a determinada cidade invadida pelos japoneses, em Burma, sem que esses homens soubessem que chegariam até tal cidade – o general aceita a missão e, sabendo que seus homens estão extremamente exaustos, os engana, lhes omite essa informação.

Há uma cena em especial que Fuller trabalha tão bem o melodrama, que chega a se equiparar a momentos intensos de sua filmografia, como a morte de Moe em ANJO DO MAL (1953) e a cena de Stanwyck e Sullivan se beijando ao som do ruído dos pés do homem que havia acabado de se enforcar em DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957). Essencial para quem quer um exemplo claro do absurdo da guerra, e que fica ainda mais explícito quando vemos o trailer com ares de filme institucional e de exaltação do heroísmo e sacrifício do exército. Ou seja, a Warner e o próprio Fuller estavam fazendo um jogo bastante interessante com o exército, uma vez que estavam supostamente exaltando a coragem e o sacrifício desses 3.000 homens que foram nessa missão, quando no final é contado o pequeno número de sobreviventes desse projeto assassino.

Os homens do general Merryll enfrentam tiroteio de japoneses nas florestas de Burma, sobem por montanhas íngremes, por rios perigosos, pântanos, num período de vários meses. Como o filme já nos apresenta a esses homens em estado de cansaço, mas já dando graças a Deus que fechariam seu serviço com a chegada dos britânicos, vê-los tendo que seguir lutando por longos quilômetros, é de dar dó. Entre as cenas de batalha, é incrível o momento em que Fuller vai fazendo sua câmera se distanciar da ação, de modo que vejamos mais, e em scope, o quanto de japoneses aqueles soldados americanos ainda enfrentam, muitos deles com ferimentos graves, malária e tifo. Em comparação com outros filmes de Fuller que parecem mais virtuosos nos movimentos de câmera, este parece ser mais sutil, mas ainda assim não deixa de ser incrível. A cada dia tiro mais meu chapéu para Fuller.

+ TRÊS FILMES

CÃO DANADO (Chien de la Casse)

Jean-Baptiste Durand tem um rosto conhecido no cinema francês em sua carreira de ator. Mais recentemente, por exemplo. pôde ser visto em MISERICÓRDIA, de Alain Guiraudie. Na direção, depois de alguns curtas, ela estreia em longa-metragem com CÃO DANADO (2023), uma história sobre a relação entre dois jovens amigos de infância. Um tipo de relação que mistura tanto afeto quanto um frequente bullying por parte de um deles ao outro. O personagem de Raphäel Quenard, Antoine, é falastrão e gosta de pegar no pé do amigo calado, Dog, vivido por Anthony Bajon. E por vezes essa maneira de chamar a atenção do amigo se manifesta de forma bastante violenta, como quando chama a atenção dele pelo ruído que faz ao comer, ou quando Dog deixa claro que não sabe onde fica Quebec. A relação dos dois toma um novo rumo quando Dog passa a namorar uma jovem que passa uma temporada pela cidadezinha. Isso revela tanto a inexperiência de Antoine no trato com as mulheres (até por nunca ter namorado) quanto a passividade de Dog ao não rebater à altura as agressões verbais do amigo. O andamento narrativo da história segue o aspecto modorrento de uma cidade tão pequena quanto carente de empolgação, ao mesmo tempo que os becos da cidade servem de palco para uma de suas sequências mais decisivas. Tanto para a história quanto para o destino dos personagens.

CORAÇÃO DE LUTADOR – THE SMASHING MACHINE (The Smashing Machine)

Eis um filme em que saímos do cinema com a dúvida quanto a ter ou não gostado. Talvez aquele epílogo tenha me surpreendido demais e eu depois fui procurar sinais ao longo do filme, coisas que não havia notado, até porque tanto o Mark Kerr de Dwayne Johnson quanto o Mark Coleman de Ryan Bader são personagens apresentados com um forte laço de amizade, mas também com muita disciplina e seriedade em seus trabalhos de lutadores de MMA. Além do mais, há muito foco na relação tensa entre Kerr e sua esposa, vivida por Emily Blunt. O que gosto muito em CORAÇÃO DE LUTADOR – THE SMASHING MACHINE (2025) é do quanto ele parece encapsular seus personagens em espaços em que só existem eles, quase como se eles estivessem presos numa espécie de limbo. As cenas na casa de Kerr com a esposa parecem saídas de uma produção televisiva dos anos 80, sendo que todas as vezes em que ele quebra as portas em acesso de raiva se percebe claramente que aquelas portas são feitas de algum material leve, e isso é deliberado, faz parte de uma intenção de mostrar um ar falso, de (des)ilusão. No começo, achei que o vício de Kerr em analgésicos seria algo ainda mais essencial para sua história, no sentido de que seria o seu fim. Ao trazer Dwayne Johnson para um papel mais desafiador e complexo, Benny Safdie repete o que fizera com Adam Sandler em JOIAS BRUTAS (2019), que aliás é um filme que também não me conquistou plenamente. Ou seja, ou eu preciso aprender a gostar dos filmes do diretor ou sempre me faltará afinidade com eles.

HOMEM COM H

Para uma cinebio que tem a ambição de cobrir uma parte considerável da vida de seu biografado – no caso, da infância até os anos 2000 – HOMEM COM H (2025), de Esmir Filho, é brilhante em tudo que se arrisca a fazer. Já começa em ter um Jesuíta Barbosa em estado de graça, mas a força maior está no próprio Ney Matogrosso e sua história de vida, no quanto o tratamento duro recebido pelo pai acabou forçando os rumos de sua vida, assim como sua própria capacidade de ser dono de seu destino. Na parte que trata dos Secos & Molhados, já se percebe isso e depois ainda mais. Há uma série de cenas engraçadas, como a visita da censura, mas há também as que destacam a erotização do corpo e a vida louca que o artista levou durante um bom tempo. O curioso é que, como Ney Matogrosso é um artista muito reservado, eu pouco sabia de muitos detalhes que o filme apresenta, inclusive coisas dos anos 1990. E como acabei me tornando uma pessoa que chora em filmes sobre relacionamentos entre pai e filho, há uma cena que me desidratou, ao som de um grande clássico da música brasileira. Que coisa linda! Aliás, ver HOMEM COM H é também passear por esse cancioneiro incrível ao longo de mais de três décadas e por uma voz singular de um artista que também sabia usar o corpo como um ator. Termina a sessão e as palmas da sala lotada são inevitáveis. Para o filme, mas principalmente para Ney Matogrosso.

segunda-feira, novembro 10, 2025

O AGENTE SECRETO



Acho difícil falar sobre O AGENTE SECRETO (2025). Não por não ter o que dizer, mas justamente o contrário: sobre ter tanto a se observar, tanta coisa que o filme traz, carrega, mostra e muitas vezes não mostra. Aliás, trata-se de um filme em que o não-dito tem uma força quase tão grande quanto aquilo que é dito. E isso tem absolutamente tudo a ver com aquele Brasil da ditadura militar, em que as verdades eram escondidas, ou deveriam ser lidas de outra maneira na imprensa, em que a perna cabeluda, lenda urbana absurda nascida no Recife, entrava no jornal na mesma seção policial de outras notícias, como se o choque entre o real e o surreal fosse algo que a elite e os poderosos assim preferissem. Não à toa, foi na América do Sul de regimes ditatoriais que o realismo mágico criou asas.

O novo filme de Kleber Mendonça Filho é talvez seu melhor trabalho, seu filme mais maduro, em que cada cena tem sua própria força, que tem um rigor formal aliado a um tipo de humor muito próprio, a certa suavidade na condução narrativa. Afinal, o Brasil é o país do carnaval. E nesse mesmo Brasil um deputado de polícia anticomunista e corrupto comemora a morte de quase 100 pessoas no Carnaval, momento em que se passa boa parte da história. Nesse mesmo Brasil, um policial rodoviário busca minuciosamente algum problema no carro do protagonista para extorqui-lo.

Wagner Moura vive outro grande papel da sua vida. Marcelo/Armando, dentre os personagens vividos pelo ator no cinema e na televisão, é tão (ou mais) importante quanto o Capitão Nascimento de TROPA DE ELITE e o Pablo Escobar de NARCOS. Aqui ele não é nem polícial (apesar de ter “uma pinta de policial”, como diz o delegado vivido por Robério Diógenes) nem traficante. E não é nem mesmo um agente secreto. Marcelo/Armando são duas faces da mesma moeda, como o gato de dois rostos que vive na pensão da Dona Sebastiana (Tânia Maria, uma simpatia de senhora). E o herói só se sente bem em determinado momento quando assume seu nome de batismo: o mesmo nome que poderia significar sua morte nas mãos de um matador barato de aluguel, na tensa cena no instituto de identificação.

Falando em tensão, é lindo como essa tensão é criada de maneira tão singular, tão longe do estilo hollywoodiano, e talvez um pouco mais próxima do adotado no cinema policial europeu (o italiano, o francês), com poucas mas brutais sequências de ação.

KMF também não consegue simplesmente contar uma história sem colocar muito de si naquele trabalho. Sua cinefilia aparece na citação a filmes populares da época, como TUBARÃO e A PROFECIA, e uma homenagem ao próprio cinema São Luiz do Recife, e nas citações menos óbvias, como a música de Ennio Morricone que já aparecia nos trailers, “Guerra e pace, pollo e brace”, do filme OBRIGADO, TIA, ou citações a O MAGNÍFICO, com Jean-Paul Belmondo.

Há também o desejo de Kleber de ser uma espécie de curador musical do cancioneiro popular brasileiro e internacional – até em RETRATOS FANTASMAS (2023) isso se vê. Algo que é muito digno de nota é que em O AGENTE SECRETO o cineasta consegue superar BACURAU (2019) na condução de um número considerável de personagens, sendo que cada um deles traz uma contribuição memorável, a ponto de não querermos nos despedir daquele universo, daquelas pessoas saídas da mente de Kleber.

Augusto (Roney Villela) e Bobbi (Gabriel Leone), a dupla de matadores contratados, são personagens incríveis. Inclusive, deixo registrada minha admiração por Villela, que em A MORTE HABITA À NOITE já havia me conquistado como um Bukowski dos trópicos num filme tão lindo quanto triste. O ator tem um quê de Paulo César Pereio no tipo físico, mas que bom que está sendo valorizado e em filmes imensos como esses dois.

Destaco também Alice Carvalho como Fátima, esposa de Armando, e que aparece apenas em flashbacks. Ela simboliza um tipo de força e indignação tipicamente nordestina, frente à canalhice de um empresário macomunado com a ditadura, que é não apenas anticiência, mas também entreguista. Qualquer semelhança com certos tipos da contemporaneidade brasileira não são mera coincidência, principalmente sabendo a militância política de Kleber desde pelo menos sua participação no Festival de Cannes com AQUARIUS (2016), quando denunciou para o mundo inteiro o golpe sofrido por Dilma Rousseff. E há Carlos Francisco. Que ator incrível. Ele é uma espécie de coração do filme. Ver seus olhos lacrimejando ao ouvir de Armando o que a filha dissera a seu respeito só não é tão emotiva quanto a cena da cadeira em MARTE UM pois Kleber prefere um registro menos sentimental.

O que deixa muitos espectadores surpresos, e às vezes pouco entusiasmados com o filme, são as escolhas narrativas do diretor e roteirista. Não apenas pelo embaralhamento dos fatos, mas principalmente pelo que não é contado, pelas peças que precisamos juntar sozinhos no quebra-cabeças da trama, que fica incompleta. Mas nada mais justo. Afinal, o período da ditadura no Brasil foi o período dos desaparecidos políticos, e lá fora quem viu AINDA ESTOU AQUI, de Walter Salles, terá outro filme sobre o assunto pra chamar de seu. Só que um filme menos clássico e mais moderno (ou pós-moderno), mais sujo e mais complexo em sua estrutura e aspecto visual, mais desconstruído como trama policial, mais borrado quando se pensa em gêneros cinematográficos – desde O SOM AO REDOR (2012), para citar só os longas de ficção, Kleber sempre gostou de trazer um pouco do cinema de gênero para seus dramas, como pesadelos que invadem a vida real, por assim dizer.

Aqui o terror está presente menos na perna cabeluda ou nos tubarões do Recife e mais no próprio Brasil, no estado-violência. Como diz a personagem de Maria Fernanda Cândido noutro momento memorável do filme sobre as intenções do grupo que apoia os perseguidos pela ditadura: é “pra te proteger do Brasil”.

+ TRÊS FILMES

A BATALHA DA RUA MARIA ANTÔNIA

Eis mais um desses filmes imprescindíveis, especialmente por fazer uma intersecção entre um momento histórico particular do Brasil, mas também pelas ousadias formais de Vera Egito, aqui mais uma vez trazendo o plano-sequência como recurso eficiente para colocar o espectador no olho do furacão. A BATALHA DA RUA MARIA ANTÔNIA (2023) retrata uma situação ocorrida entre alunos esquerdistas da Faculdade de Filosofia da USP e alunos fascistas do Mackenzie, pertencentes ao CCC, Comando de Caça aos Comunistas. A situação é representativa daquele momento em que o Brasil havia sofrido o Golpe, em 1968, ainda sem a assinatura do AI-5, mas é difícil não fazer paralelos com a situação social e político do Brasil de hoje. Assim como é difícil não ficar empolgado e preocupado com o drama desses alunos e professores que se armam e se defendem como podem num país que não se pode contar com a polícia - ao contrário: a polícia estava ali para aproveitar qualquer gesto desses militantes para agir com violência. Há dois atores de AINDA ESTOU AQUI no elenco, o que só reforça a ideia de que uma dobradinha com os dois filmes seria uma boa para retratar dois momentos tensos da ditadura no Brasil. O filme foi rodado em 16mm e com 21 planos-sequência, emulando um tom documental e urgente à história apresentada, uma história vista sob múltiplos pontos de vista, já que há vários personagens e alguns deles encontram, inclusive, espaço para o amor e o sexo no meio daquelas horas tensas. Filmaço.

O ÚLTIMO AZUL

Junto com BOI NEON (2015), este premiado O ÚLTIMO AZUL (2025) está entre os grandes filmes de Gabriel Mascaro. Desta vez o cineasta se aventura pela Amazônia e cria uma realidade distópica em que a pessoa que completar 75 anos de idade já deverá ser obrigatoriamente encaminhada a uma colônia, para que os filhos possam produzir sem prejuízo para o governo. E somos apresentados a Tereza, a ótima personagem de Denise Weinberg (A METADE DE NÓS), uma mulher que se recusa a aceitar as imposições desse governo e assim tenta escapar a todo custo desse destino, em busca de realizar coisas que ainda pretende fazer na vida, como andar de avião, por exemplo. Com isso, ela entra clandestinamente no barco do personagem de Rodrigo Santoro e depois na vida de outros personagens, sendo que o barco é o meio de transporte mais usado. Aqui, Mascaro transforma um road movie num boat movie, o que é outro diferencial muito bem-vindo. Sem falar que é muito fácil se solidarizar e torcer por Tereza, que vai conhecendo novas pessoas nessa sua trajetória e experienciando coisas que jamais imaginaria. Adoro a cena em que Tereza toma umas com uma mulher idosa que vende bíblias e sente uma alegria imensa de viver. Em certo momento, lembrei-me de HISTÓRIA REAL, de David Lynch, também sobre um idoso andando por um vasto trecho com um objetivo, só que num carrinho de cortar grama. É uma beleza ver o cinema brasileiro ganhando tanta força e ainda tendo uma ótima repercussão internacional: O ÚLTIMO AZUL ganhou o Urso de Prata em Berlim. Que sua trajetória pelo mundo seja igualmente gloriosa. Sem falar que Mascaro nos apresenta a lugares de beleza inimaginável. Dá vontade de comprar uma passagem para conhecer a Amazônia.

MALÊS

Certos filmes são necessários. Não por sua importância na forma, no que se refere à linguagem cinematográfica, mas no que tange à nossa história brasileira, mais especificamente à história do povo negro brasileiro. E é muito bom que este projeto tenha partido de um dos maiores atores negros brasileiros, Antônio Pitanga, aqui em seu segundo filme na direção, sendo que o primeiro foi em 1978, o quase invisível NA BOCA DO MUNDO. Sendo um filme de ator, MALÊS (2024) tem toda uma preocupação com as performances de seu elenco, que traz dois filhos de Pitanga, Camila e Rocco em papéis importantes. O filme trata de um levante citado de maneira tímida nos livros de história, a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador, Bahia, em 1835, ainda primeiro reinado. O filme nos apresenta a homens letrados e sofisticados da religião islamita que foram capturados e levados para o Brasil e viverem como pessoas que não têm mais nação – “negro não tem nação”, diz em tom duro e perverso a personagem de Patricia Pillar a um de seus escravos. Falar de escravidão no cinema parece ter diminuído consideravelmente, e é compreensível que isso tenha acontecido, mas é importante que esse período seja trazido com a força que este filme de Pitanga impõe, fazendo com que não apenas nos solidarizemos com esse grupo de pessoas, mas como tomemos como nossas também a sua luta contra os brancos escravocratas. Além do mais, o retrato de um Brasil com três religiões distintas, islamismo, catolicismo e candomblé, apresenta um caldeirão cultural riquíssimo e complexo. E aqui há pouco espaço para os brancos na história, o que ajuda a enriquecer o ponto de vista dos negros em seus dramas cotidianos, em seus momentos de alegria na vida doméstica, na construção de seus sonhos de alcançarem a liberdade de professar suas fés. No fim das contas vemos um Brasil com um potencial de beleza incrível, mas que ainda demoraria a se tornar minimamente justo com quem tanto contribuiu e contribui para nossa riqueza cultural e nossa alegria.

sábado, novembro 08, 2025

FRANKENSTEIN – A SÉRIE DE FILMES DA HAMMER



Finalmente, depois de anos de quando comecei a (re)ver estes filmes da Hammer – talvez a mais bem-sucedida das franquias do estúdio inglês, maior que Drácula –, vi o título que faltava para fechar as sete produções. Entre altos e baixos, há muitos trabalhos bastante inventivos, especialmente os dirigidos por Terence Fisher, mas não só esses. Tive algumas boas surpresas com os filmes que Fisher não trabalhou. 

Uma das coisas mais legais dessa série de filmes é o quanto as histórias se desvencilham bastante do romance de Mary Shelley, o quanto os roteiristas pensam situações diferentes para o Barão Victor Frankenstein. Além do mais, deixo registrados meus agradecimentos à Versátil Home Video por ter trazido todos os filmes em dois boxes que ainda contêm outras produções sobre Frankenstein. São dois boxes imperdíveis e caprichados.

A MALDIÇÃO DE FRANKENSTEIN (The Curse of Frankenstein)

Depois de vinte anos, retorno a este clássico gigante da Hammer Films, graças ao destaque dado pela Versátil aos monstros clássicos do cinema de horror no livro Monstros no Cinema - Filmes Essenciais. E ao lançamento do box Frankenstein no Cinema, que contém este divisor de águas que trouxe o gótico de novo ao gosto do público, desta vez com fotografia em cores vivas e um aspecto mais sangrento até então inédito. Um dos grandes méritos de A MALDIÇÃO DE FRANKENSTEIN (1957) é a ênfase a Victor Frankenstein e não à criatura (vivida por Christopher Lee), que aparece pouco, ainda que de maneira marcante. O que mais interessa aqui é apresentar a monstruosidade do cientista, capaz de tudo, até de matar pessoas, para conseguir o seu intento final, que é criar um homem a partir de pedaços de outros cadáveres, como se saísse quase do zero, de modo a se aproximar de Deus e se tornar essa figura herética, que, mesmo assim, é vista com aquela elegância característica de Peter Cushing. As ideias do Barão nem parecem tão absurdas assim quando ditas pela própria boca. Outro grande mérito do filme está em fugir completamente das semelhanças com o FRANKENSTEIN da Universal, de 1931, por imposição do próprio estúdio americano. Assim, Fisher e o roteirista Jimmy Sangster acabaram trazendo uma originalidade e um frescor muito bem-vindos ao filme. Eis uma obra que representa um dos momentos mais marcantes da história do cinema de horror.

A VINGANÇA DE FRANKENSTEIN (The Revenge of Frankenstein)

Esta continuação de A MALDIÇÃO DE FRANKENSTEIN é tão boa ou até melhor que o primeiro filme, com Fisher e seu trio de roteiristas usando muita criatividade e elegância para levar para muito longe a história do romance de Mary Shelley as aventuras do Barão Victor Frankenstein, uma vez que ele consegue fugir da guilhotina e se instalar como médico noutra cidade. É interessante como Peter Cushing dá tanta nobreza ao personagem, que é muito difícil não torcer por ele, muito difícil não querer ver os resultados de seus experimentos científicos abomináveis. Em A VINGANÇA DE FRANKENSTEIN (1958), seu próprio ajudante corcunda se oferece como cobaia da mudança de corpo. Outra coisa que acho muito interessante nessa série de filmes é o quanto cada diálogo é vital e importante a ponto de não sentirmos falta de cenas de terror propriamente ditas. Tanto que a classificação como terror para o filme se dá mais pela amplitude e pelo tema. Filme visto no box Frankenstein no Cinema.

O MONSTRO DE FRANKENSTEIN (The Evil of Frankenstein)

Não achei que Terence Fisher iria fazer tanta falta assim (ele teve que ficar de fora das filmagens por causa de um acidente de automóvel). O terceiro filme da série Frankenstein sofre com sua ausência e o ótimo diretor de fotografia Freddie Francis assume a direção deste, que funciona como uma espécie de reinício para a história, praticamente ignorando a trama do ótimo segundo filme, A VINGANÇA DE FRANKENSTEIN, que mexia com a fascinante brincadeira de troca de corpos. Neste O MONSTRO DE FRANKENSTEIN (1964), a Universal permite que a maquiagem clássica de Boris Karloff nos filmes dos anos 1930 seja emulada. O problema é que essa tal maquiagem parece de papel (e deve ser mesmo) e o monstro desagradou a todo mundo. Ainda assim, gosto quando entra em cena o hipnólogo, levando a trama para algum lugar, mesmo que esse lugar se mostre meio perdido e pouco interessante. Salva-se Peter Cushing, mais uma vez incrível como o Barão Frankenstein. Faltou um pouco mais de maldade por parte dele, que parece mais aqui como vítima, mas isso é culpa também do roteiro, e não do ator, que dá sempre aquele ar de seriedade e respeito ao personagem clássico. Visto no box Frankenstein no Cinema Vol.2.

FRANKENSTEIN CRIOU A MULHER (Frankenstein Created Woman)

Terence Fisher volta à franquia Frankenstein e mostra o quanto um grande realizador faz a diferença. Este novo filme da série é um dos mais singulares, até porque não há a figura de um monstro gigante masculino. E por isso mesmo é o que mais imagino que tenha inspirado a criação de POBRES CRIATURAS, de Yorgos Lanthimos. A primeira cena de FRANKENSTEIN CRIOU A MULHER (1967) é de um impacto impressionante, com um homem sendo levado para a guilhotina e muito triste com o fato de seu filho pequeno estar próximo da execução para presenciar seu terrível fim. Em seguida, vemos o Barão Victor Frankenstein surgindo de uma experiência em que seu próprio corpo sai de uma morte de uma hora de duração. O roteiro é inteligente e as ações desembocam na criação da tal mulher do título. A sensualidade é apenas sugerida, mas já se percebe o que os anos 1960 traziam mais tempero para os ainda muito sólidos projetos da Hammer. Quanto a Susan Denberg, a moça foi modelo da Playboy em 1966, mas sua presença no filme vai além da sensualização necessária para sua personagem. Visto no box Frankenstein no Cinema Vol. 2.

FRANKENSTEIN TEM QUE SER DESTRUÍDO (Frankenstein Must Be Destroyed)

Sempre quando é Fisher no comando a série de filmes de Frankenstein da Hammer ganha uma força incrível. Este FRANKENSTEIN TEM QUE SER DESTRUÍDO (1969) é candidato a melhor da franquia, e não por estar cada vez mais distante do romance de Mary Shelley, enfatizando com originalidade novos caminhos trilhados pelo Barão obcecado por experimentos com corpos mortos e mudança de cérebros, mas também por ser o filme que começa a beber do zeitgeist. Acho que todo filme feito em 1968 ou 69 deve ter sido influenciado por uma nova energia, um novo espírito que passou a habitar o mundo. Neste quinto título, o Barão já começa o filme mais sangrento, já que ele próprio mata uma pessoa para levar a cabeça para seu experimento. Mas a trama começa mesmo quando ele chantageia um jovem casal para ficar na pensão e construir um novo laboratório para si lá. Adoro o final, um dos mais impactantes da Hammer Films. Visto no box Frankenstein no Cinema Vol. 2.

O HORROR DE FRANKENSTEIN (Horror of Frankenstein)

Este aqui é o único dos sete filmes que não traz Peter Cushing como o Barão Victor Frankenstein. E talvez O HORROR DE FRANKENSTEIN (1970) seja o que mais se parece com um produto típico de sua época, com direito a decotes bem generosos das atrizes e a um visual que remete mais à swinging London do que ao gótico, mais característico nos filmes dirigidos por Terence Fisher, principalmente. O resultado é interessante e divertido e é uma nova releitura da história clássica de Mary Shelley, com um tom mais satírico e imoderado, o que acaba sendo um atrativo a mais, um diferencial. E também uma compensação pela falta que faz um diretor como Fisher. Quem assume a direção desta produção que parece ser mais modesta que as anteriores do ciclo é Jimmy Sangster, roteirista do primeiro filme e da franquia, A MALDIÇÃO DE FRANKENSTEIN e de outros também. A falta de alguém como Peter Cushing, que faz um Victor Frankenstein com um requinte tal que chegamos a torcer por ele, é de certa forma compensada pelo ar debochado desse barão mais novo, vivido por Ralph Bates, que faria posteriormente o divertido O MÉDICO E A IRMÃ MONSTRO. Filme visto no box Frankenstein no Cinema Vol. 2.

FRANKENSTEIN E O MONSTRO DO INFERNO (Frankenstein and the Monster from Hell)

Este FRANKENSTEIN E O MONSTRO DO INFERNO (1974), se não é tão bom quanto FRANKENSTEIN TEM QUE SER DESTRUÍDO, talvez o ponto alto da franquia, tem uma dignidade toda própria, talvez por ser o último filme da série e também o último trabalho do melhor diretor da Hammer, Terence Fisher, que estava fisicamente doente, depois de acidentes seguidos que tivera nas pernas e que o manteve afastado dos filmes por alguns anos. Por isso, há certa melancolia no ar, e uma certeza de que o que havia de frescor no que o estúdio inglês estava trazendo naquele fim dos anos 1950, nos anos 70, o cinema de horror estava passando por um novo momento, o que fez com que a Hammer buscasse mais violência e até um pouco de nudez para suas produções – o próprio O HORROR DE FRANKENSTEIN já se encaminhava para essa tendência, talvez para compensar a falta de Fisher e de Peter Cushing. Neste último filme da cinessérie, um jovem cientista entusiasta dos trabalhos de Victor Frankenstein é preso por bruxaria (ele usava experimentos com cadáveres roubados) e enviado justamente para o hospício onde Frankenstein trabalha disfarçado em mais um experimento secreto. O monstro da vez é um ancestral do ser humano e Peter Cushing está particularmente magro. Conta-se que ele mal comia, pois estava de luto, fragilizado pela morte da esposa. Visto no box Frankenstein no Cinema

segunda-feira, novembro 03, 2025

OS MALDITOS (The Damned)



Acho que já posso fazer uma postagem só com filmes recentes de que perdi boa parte da metragem e da própria compreensão – e obviamente da apreciação por causa do sono que me acomete(u). Atualmente isso tem se tornado cada vez mais constante e talvez eu esteja forçando demais a barra, uma vez que sei o quanto meu corpo costuma ficar sonolento à medida que chega o crepúsculo. Mas não só: há algum problema que atribuo a uma espécie de alergia, embora não pareça bem com uma alergia típica. O que sei é que me incomoda demais. Ir ao cinema e não conseguir ver o filme que tanto se quer ver é muito mais frustrante do que não ir ao cinema. Certo dia, fui ver um filme chamado DORMIR DE OLHOS ABERTOS no Cinema do Dragão e minha experiência com o filme que (não) vi foi tão ruim que preferi nem sequer registrar que havia visto, pois só sobraram memórias vagas.

Então, de certa forma, é até possível pensar esse tipo de experiência, por mais frustrante que seja, como uma experiência muito particular, em que o filme se torna algo ainda mais próxima do sonho, pois suas imagens se tornam ainda mais etéreas em nossa memória. Se até a minha memória de filmes que vi bem consciente não é lá essas coisas, imagina com esses.

No caso de OS MALDITOS, talvez eu estivesse esperando um filme que em determinado momento me acordaria com uma espécie de choque. Afinal, é um drama de guerra. Ao sair da sessão, algumas pessoas o compararam a ALÉM DA LINHA VERMELHA, de Terrence Malick, o que me deixou ainda mais triste, já que gosto demais desse filme de guerra contemplativo e bem intimista do Malick.

Roberto Minervini é um diretor que não é tão novato assim. Esse já é seu sexto longa-metragem. Mas, talvez, só por causa do prêmio de direção em Cannes, na Mostra Un Certain Regard, ele tenha ganhado mais atenção dos distribuidores mundo afora. Aqui no Brasil foi lançado pela Zeta, uma distribuidora por que simpatizo bastante, pelas escolhas corajosas e inusitadas e por ter em seu currículo obras notáveis, sendo que algumas delas estiveram entre meus favoritos dos anos de seus lançamentos, como HERE, de Bas Devos; MUSIC, de Angela Schanelec; MAL VIVER, de João Canijo; IL BUCO, de Michelangelo Frammartino; e principalmente APESAR DA NOITE, de Philippe Grandrieux, e LONGA JORNADA NOITE ADENTRO, de Bi Gan, que encabeçaram meus rankings de lançamentos dos anos de 2017 e 2019, respectivamente. Ou seja, todos esses filmes são obras bem desafiadoras, mais dirigidos a um público disposto a novas experiências e a um andamento mais lento do que o usual.

Dito isso, é possível que em breve eu pegue para rever OS MALDITOS, talvez em casa mesmo, já que o ar condicionado forte da sala de cinema é também um dos elementos que prejudicam o estar acordado, alerta nas sessões. Em determinado momento, quando o grupo de homens diminui consideravelmente na tela, fiquei achando que havia perdido alguma cena muito importante, mas, pelo que soube de meu amigo Walker, houve de fato um hiato para aquele momento.

Chama a atenção as imagens, a aridez, ainda que fria, os rostos cheios de cicatrizes e de cansaço daqueles soldados da União, com a angústia da espera pelo ataque dos inimigos. Passa-se na Guerra da Secessão, mas poderia ser em qualquer outra guerra, imagino eu, embora uma guerra civil também represente uma divisão muito maior de alguém que se identifica com seu país. E, portanto, é mais do que um nós contra eles.

Os diálogos do filme foram criados pelos próprios atores, enquanto imaginavam ser soldados naquela guerra. Será que esse tipo de improviso me deixou desprendido do filme? Não, provavelmente não foi isso, embora eu prefira, sim, textos e imagens com um rigor maior.

+ TRÊS FILMES

ENTERRE SEUS MORTOS

Marco Dutra já provou que é tão bom solo quanto em parceria com Juliana Rojas – casos de O SILÊNCIO DO CÉU (2016) e AS BOAS MANEIRAS (2017), respectivamente. No entanto, esse seu filme mais lovecraftiano é uma bola fora em sua filmografia e muito do problema está na performance sonolenta de Selton Mello, o herói da história. Tanto que, quando ENTERRE SEUS MORTOS (2024) termina com certa palavra de ordem sendo repetida, isso acaba deixando espaço para uma piada pronta. Na minha sessão, estavam apenas eu e um outro senhor, que, já próximo das duas horas de exibição, ficou impaciente e verbalizou que ia embora. O horário que vi o filme não foi dos melhores, é verdade, mas eu não ter guardado comigo nada de que tenha gostado já explícita um problema meu em relação à obra. Até achei interessante o uso de cores e imagens que denunciam finalmente a inspiração/homenagem quando o filme se aproxima do fim, mas chegar até ali e não se importar muito por quem está na tela já não é lá um bom sinal. Inclusive, diria que o outro ator/personagem (Danilo Grangheia) teria sido uma melhor escolha para protagonista/narrador da história do que o Selton. De todo o modo, sempre bom poder ver um grande diretor criando.

SEU CAVALCANTI

Dez anos depois de PERMANÊNCIA (2014), um filme com um rigor formal aparentemente mais visível, Leonardo Lacca volta à direção para homenagear o avô, o Seu Cavalcanti do título, um senhor de mais de 90 anos que não abre mão de dirigir o seu carro, ou mesmo de buscar uma mulher mais jovem para ser sua namorada, o que gera um dos momentos mais divertidos de “perseguição de carros” do filme. SEU CAVALCANTI (2024) mistura documentário com ficção de maneira muito criativa e afetuosa. Afinal, a relação do cineasta com seu avô é muito próxima da relação com um pai. É fácil se pegar rindo das interpretações do Seu Cavalcanti em determinados momentos, quando ele topa interpretar um personagem de si mesmo para o filme do neto, como quando ele festeja ao receber a notícia de que haviam encontrado seu carro ou quando ele conta para a namorada de seus planos para o dia seguinte. Acho engraçado como costumo gostar de filmes protagonizados por pessoas idosas e me aborrecer com filmes sobre crianças. Claro que cada caso é um caso, mas talvez eu seja um espírito velho mesmo.

TOQUE FAMILIAR (Familiar Touch)

Talvez TOQUE FAMILIAR (2024) seja um dos filmes mais sensíveis a tratar do Alzheimer. Lembrando de outros recentes sobre o tema, como MEU PAI, que é quase um terror psicológico, e PARA SEMPRE ALICE, que concentra-se na angústia de quem em breve perderá sua memória e sua própria identidade, a estreia na direção de longas de Sarah Friedland, a veterana atriz Kathleen Shalfant já nos apresenta a uma personagem que está desconhecendo o próprio filho, mas que deixa transparecer em gestos e atitudes sua personalidade, como cenas do passado d aquilo que lhe dava prazer (como flertar um homem), além de se mostrar dócil com os enfermeiros da casa de repouso luxuosa onde se instala. Uma das curiosidades do filme está na história se passar num spa de luxo para idosos de verdade. Senti falta de uma conexão com a personagem, principalmente quando o filme vai ganhando mais silêncio por parte da heroína desmemoriada. Mas achei o final ótimo.

domingo, novembro 02, 2025

TUBARÃO (Jaws)



Que maravilha poder ver TUBARÃO (1975) na sala IMAX nesta cópia restaurada em celebração aos 50 anos da produção. Vi o filme pela primeira vez em 2004. Tardiamente, é verdade. E ainda foi por causa de um empurrãozinho de uns amigos, que achavam um absurdo que um autoproclamado cinéfilo como eu não tivesse visto ainda um dos filmes mais importantes da história do cinema. Para o cinema americano, foi definidor do início do fim de uma fase muito rica, a tal Nova Hollywood. A tampa do caixão foi fechada definitivamente com outros dois filmes, GUERRA NAS ESTRELAS, de George Lucas, em 1977, por motivos parecidos com o filme de Steven Spielberg, e PORTAL DO PARAÍSO, de Michael Cimino, em 1980, por ser uma megaprodução que afundou feio nas bilheterias. Mas claro que essa é uma história simplista, redutora e o espírito da Nova Hollywood resistiria ainda por alguns anos da década de 1980.

Na época que fez TUBARÃO, Spielberg ainda não tinha 30 anos e já havia feito um thriller maravilhoso para a televisão, ENCURRALADO (1971), que passaria em alguns cinemas, inclusive no Brasil. Sua estreia no cinema propriamente dito, no entanto, foi com LOUCA ESCAPADA (1974), uma comédia de crime que eu lembro de não ter gostado muito. Mas o que Spielberg queria fazer mesmo era seu filme sobre discos voadores, que ele só conseguiria fazer após o sucesso de TUBARÃO, a ficção científica CONTATOS IMEDIATOS DO TERCEIRO GRAU (1977).

O roteiro de TUBARÃO foi parar em sua mão, depois de os produtores cogitarem gente mais veterana, como Alfred Hitchcock, Stanley Kramer, John Sturges e um tal Dick Richards, um jovem de 30 e poucos anos, que não sabia diferenciar um tubarão de uma baleia, e por esse motivo foi logo descartado num almoço entre os executivos da Universal. O jovem Spielberg aceitou fazer, mas se viu com uma batata quente nas mãos, já que havia o principal problema: a criação do tubarão. Houve quem quisesse usar tubarão de verdade, mas esses animais não são domesticados e a solução foi fazer um tubarão mecânico, que hoje em dia é facilmente identificado como mecânico, mas há um respeito muito grande pelo resultado final, até pelo quanto o filme constrói de tensão até mostrar o tubarão mecânico integralmente, já perto do final.

Eu confesso que gosto mais da primeira parte do filme do que da segunda, quando os três homens vão ao mar caçar a fera e o filme se transforma numa aventura. Há um quê de Howard Hawks na relação de quase amizade que se estabelece entre aquelas pessoas tão diferentes, inclusive com a cena deles cantando, que não tive como não simpatizar. Ainda assim, gosto bem mais do início: o prólogo, com a garota indo nadar nua à noite e é atacada pelo tubarão, é magistral. Já dá o tom, inclusive do uso da trilha sonora antológica de John Williams, que se tornaria o grande parceiro de Spielberg nas décadas seguintes, especialmente quando deixou registrado para sempre em status de clássicos temas de filmes como OS CAÇADORES DA ARCA PERDIDA (1981), E.T. – O ESTRATERRESTRE (1982) e JURASSIC PARK – O PARQUE DOS DINOSSAUROS (1993).

Na primeira parte do filme, um xerife, vivido por Roy Scheider, fica sabendo da morte da garota do prólogo e logo quer fechar a praia para banho, naquela pequena cidade litorânea que vive de turismo. O prefeito, claro, não tem interesse e impede essa ação. Logo em seguida, acompanhamos uma das cenas de suspense mais bem filmadas do cinema, com dezenas (ou centenas?) de pessoas na praia, incluindo crianças e idosos, e o xerife com os nervos à flor da pele, e a câmera de Spielberg, unindo movimentos nervos com montagem nervosa, impressiona, que culmina com o ataque do tubarão a uma criança, o que causa terror e revolta para todos da cidade.

Logo em seguida, no meio daquela confusão, surge a solução de contratar um oceanógrafo (Richard Dreyfuss) e acontece a oferta de um velho pescador (Robert Shaw), que diz que consegue matar o tubarão assassino por 10 mil dólares. A presença de cena de Shaw é ótima e sua personalidade, assustadora para muitos, faz a diferença, embora ele só se torne um dos protagonistas na segunda parte do filme, ou seja, no momento da ida dos três homens ao mar. Mas antes disso há outras cenas bem tensas que acontecem na praia, já que um tubarão bem menor do que o grande tubarão branco que matou a garota e a criança é capturado por pescadores, o que leva a praia a ser novamente aberta para banho.

TUBARÃO fez tanto sucesso que gerou continuações do feitas pelo próprio estúdio, com aquela vontade natural de ganhar dinheiro (TUBARÃO 2; TUBARÃO 3 e TUBARÃO 4: A VINGANÇA). Além disso, como não poderia deixar de ser, os italianos também capitalizaram, com filmes como O ÚLTIMO TUBARÃO, de Enzo G. Castellari, que dizem ser uma cópia descarada do filme do Spielberg; TUBARÃO VERMELHO, de Lamberto Bava; A NOITE DOS TUBARÕES, de Tonino Ricci, entre outros. Isso para citar apenas os anos 1970 e 80. Mas talvez o melhor de todos desses italianos seja o que aparece em ZOMBI - A VOLTA DOS MORTOS, do Lucio Fulci, junto com um zumbi debaixo d’água. Depois desse período, a partir do fim dos anos 1990, iniciou-se uma nova leva de produções com o peixe feroz, e dentre eles destaco o ótimo ÁGUAS RASAS, de Jaume Collet-Serra.

+ TRÊS FILMES

HOLLYWOOD 90028

Se os Estados Unidos da década de 1970 visto nos filmes de primeiro escalão já denunciavam um sentimento de tristeza e ressaca daquela sociedade, é de se imaginar que os filmes feitos com dinheiro escasso, pensados para drive-ins e cinemas empoeirados também fossem impregnados dessa melancolia. O protagonista de HOLLYWOOD 90028 (1978), um fotógrafo de filmes pornôs ou marginais, é um homem que carrega uma maldição consigo: sempre que se sente atraído por uma mulher, ele a mata estrangulada. E isso é visto logo no início do filme, e numa sequência até suave para os padrões do cinema de gênero da época, em especial as produções mais baratas. Mas talvez a “culpa” desse corpo estranho no cinema esteja no fato de a direção ser de uma mulher, Christina Hornisher, em seu único longa-metragem. O filme traz uma espécie de lirismo bastante inesperado, em especial quando entra em cena uma personagem feminina que passa a conviver diariamente com esse fotógrafo, e, como uma Sherazade, ela, sem querer, passa a viver um dia a mais, pois o que ela deseja do fotógrafo é conversar, passear, falar de certas inquietações que lhe incomodam. E assim as cenas com os dois parece a invasão de um filme dentro de outro, e é justamente por isso que temos algo interessante. Tanto que o final parece até forçado, como se o destino dos personagens não fosse o pensado pela diretora. Belo resgate.

ARMADILHA PARA TURISTAS (Tourist Trap)

Sempre que vejo nos boxes de slashers que há um filme da década de 1970 arrisco a acreditar que é mais intenso e mais perturbador do que os da fase áurea do subgênero, os anos 1980, que, pareciam pegar mais leve no terror, na violência e no grau de perturbação e apostavam muito mais no humor. ARMADILHA PARA TURISTAS (1979), de de David Schmoeller, funciona que é uma beleza nesse quesito (o diretor de arte é o mesmo de O MASSACRE DA SERRA ELÉTRICA e o visual sujo predomina), nos deixando muitas vezes com o coração na mão. O que é aquela cena do plástico no rosto da moça, meu Deus!? Acredito que muita gente que viu este filme na época deve ter tido pesadelos. Primeiro trabalho profissional do diretor e um filme de produção barata, foi um acerto e tanto. Desde a primeira cena o filme nos ganha, com uma edição acertada e o que há de mais bonito: a trilha sonora de Pino Donaggio, colaborador de Brian De Palma. Ele vinha de filmes como PIRANHA e CARRIE, A ESTRANHA para essa produção menor, e não por isso fez um trabalho menos brilhante. Na trama, grupo de jovens que passeia de carro, graças a um pneu furado vai parar nas mãos de um psicopata que tem o diferencial de usar manequins e bonecos em seu museu. E há um toque sobrenatural, por assim dizer, que faz com que este filme se diferencie dos slashers mais comuns, com um pé maior na realidade. Mas isso não interfere de forma alguma no medo: ao contrário, intensifica bastante. Uma das melhores surpresas que eu vi neste ano. Presente no box Slashers XVI.

ASSASSINATOS NA FRATERNIDADE SECRETA (The House on Sorority Row)

1982 ainda foi um ano cheio de slashers sendo lançados nos cinemas dos Estados Unidos e do mundo. O que mais me chama a atenção nesses filmes é o caráter mais artesanal: a maioria deles sai de produtoras bem independentes e de orçamentos bem modestos. Infelizmente não havia no box (Slashers, o primeiro volume) nenhum extra que comentasse o processo de criação de ASSASSINATOS NA FRATERNIDADE SECRETA (1982), de Mark Rosman, algo que muitas vezes ajuda a aumentar o valor do trabalho. Aqui temos um exemplar mais ou menos tradicional, com um assassino misterioso e pessoas sendo mortas uma a uma. Há também a figura da final girl (Kate McNel), que tem seu ar de maior pureza, em comparação com suas colegas. Na trama, com uma brincadeira para se vingar da dona da casa que hospeda a fraternidade, a velha morre e as meninas procuram esconder o corpo o mais rápido possível, pois a festa está prestes a começar. Gosto de algumas cenas internas, com o diretor mostrando elegância, em especial quando filma corredores. Quanto aos efeitos gore, são fracos, mas eficientes para uma produção barata.

segunda-feira, outubro 27, 2025

CÉU E INFERNO (Tengoku to Jigoku)



“Mas aqui, lenta e inexoravelmente, Kurosawa nos mostra algo completamente diferente. Ele sugere que, a despeito de tudo, o bem e o mal são o mesmo, e que todos os homens são iguais.”
Donald Richie (em Os Filmes de Akira Kurosawa)

Curiosamente, no início de minha cinefilia, eu custei a me encantar pelo cinema japonês. Claro que os primeiros filmes que vi foram de Akira Kurosawa, mas mesmo assim o cineasta não me encantava. E aí eu passei a generalizar, achando que não gostava de cinema japonês. Mas aí comecei a ver uns animes incríveis e pensei: acho que só gosto mesmo dos animes e não dos live-actions. Eis que conheço Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi e as coisas mudam e muito. Passo a vê-los como monstros sagrados do cinema e meu interesse pelo cinema japonês vai crescendo (inclusive na época que os filmes de terror japoneses passaram a se tornar muito populares), mas ainda faltava eu me encantar por Kurosawa. E por mais que eu tenha adorado OS SETE SAMURAIS (1954), só visto recentemente, nada me deixaria preparado para CÉU E INFERNO (1963), um dos melhores filmes que vi na vida. Ou seja, como fui estúpido. Que os deuses do cinema me perdoem.

E tem mais: cheguei a CÉU E INFERNO por causa da existência do remake de Spike Lee, LUTA DE CLASSES, lançado neste ano. Ou seja, precisei ainda de um empurrãozinho de um filme americano para perceber que não tinha visto uma das maiores obras-primas do cinema, que por sua vez foi derivada/inspirada num romance americano de Edward McBain, também conhecido como Evan Hunter, que é como está creditado no filme de Spike Lee. A relação de Kurosawa com o cinema e a literatura americanas sempre foi forte, e por isso havia muitos críticos dele no Japão: o achavam ocidentalizado demais.

Falando em cineasta atraído pelos Estados Unidos, não acredito que tenha sido uma coincidência eu ter visto CÉU E INFERNO num espaço de tempo tão próximo da revisão de PARIS, TEXAS, de Wim Wenders, no cinema. Digo isso, pois a cena de encontro cara a cara dos personagens de Toshiro Mifune e Tsutomo Yamazaki guarda muitas semelhanças com a cena do reencontro de Travis com sua ex-mulher, em especial nos momentos em que, separados por um vidro, o rosto dos dois personagens se une, como duas faces da mesma moeda. (Sobre seus pontos em comum, mesmo antes da prisão do sequestrador, tanto o sequestrador quanto o empresário agora arruinado se veem obrigados a perambular sozinhos pelas ruas. O homem mau por não poder gastar o dinheiro do resgate sob o risco de ser pego pela polícia; o homem bom por não ter mais como trabalhar.)

No caso do filme de Kurosawa, há uma acentuação do aspecto humanista, e do quanto também o diretor estava disposto a frisar aspectos econômico-sociais, a destacar a barreira social gritante da sociedade japonesa do pós-guerra: por mais que Gondo (Mifune) seja um homem rico e que faz uma boa ação que sacrifique todo seu patrimônio e Takeuchi (Yamazaki) seja o pobre que comete o crime e paga com a pena capital, há algo de muito trágico e muito triste na história de Takeuchi, e Kurosawa apresenta isso sem se aprofundar no personagem e em seus dramas. Falando de maneira simplista, um é o herói, ainda que de início seja alguém prestes a cometer um golpe, e o outro é um vilão, o sujeito que não apenas sequestra uma criança, mas também mata pessoas viciadas em drogas para atingir suas metas. Seu ponto de partida para o sequestro: o ódio nascido da diferença de classes. 

A primeira hora do filme se passa quase que completamente na sala da imponente casa de Gondo. E tudo até ali é perfeito e a encenação naquele espaço é excencialmente cinematográfica (apesar de podermos lembrar do teatro), com uma janela scope que mais nos aflige e aprisiona do que amplia os espaços. É uma primeira parte tão boa que até lamentamos um pouco quando ela acaba. Se bem que por primeira parte, diria que ela de fato acaba quando toda a cena do trem, com a negociação com o lugar da entrega do dinheiro ao sequestrador, tem fim.

A partir daí Kurosawa nos apresenta a um novo filme, por assim dizer, ao “inferno”, aos bairros chineses e ao submundo dos traficantes e viciados em heroína. Antes disso, havíamos sido apresentados ao “céu”, ou seja, à casa de Gondo, que depois de ter perdido tudo para o sequestrador, agora se esforça para permanecer na casa. Nesta segunda parte do filme, somos convidados a acompanhar os esforços da polícia, como um ente coletivo, para conseguir de volta o dinheiro do sequestro e prender o sequestrador. A certa altura, o espectador é apresentado ao personagem do criminoso, assim como somos apresentados ao oposto da opulência da casa de Gondo: o que vemos ali é um ambiente habitado por viciados em drogas vivendo em condições sub-humanas.

Também somos brindados com uma cena que acontece numa espécie de danceteria que denuncia os vários anos de dominação americana no pós-guerra, o quanto o Japão ficou ocidentalizado, inclusive no comportamento. A mão de Kurosawa na condução deste thriller é tão acertada que por vezes nos pegamos segurando alguma coisa, como se estivéssemos num carro em movimento. E para chegar até esse resultado, houve ações pensadas de maneira milimétrica, com o uso de muitas câmeras para a cena do trem, com o posicionamento de câmeras que enfatizam o alto e o baixo em diferentes momentos, com a escolha de lugares diferentes para filmar a cena na casa de Gondo. Sinto que o ideal é ver e rever este filme várias e várias vezes.   

Visto no box em BluRay Kurosawa Essencial (a imagem tá tinindo de linda!) e ainda contém diversos extras incríveis, como entrevistas com Kurosawa e um making of que nos faz gostar ainda mais do filme. Se é que isso é possível.

+ TRÊS FILMES

BEATING HEARTS (L’Amour Ouf)

Gilles Lelouch é um cineasta com uma experiência maior na comédia. E talvez isso tenha sido positivo para que BEATING HEARTS (2024), possivelmente seu maior e melhor filme, seja algo menos pesado do que se poderia esperar de uma história de violência e paixão. O filme começa com o personagem de François Civil e seus parceiros de crime enfrentando a morte numa briga de gangues. Esse desfecho do prólogo antecipa a tragédia que veremos nas próximas 2h30, quando voltaremos no tempo e conheceremos os adolescentes Clotaire e Jackie. Ele, um rapaz violento e desinteressado nos estudos; ela, uma garota fã de The Cure e mais centrada. Quando está com ela, o rapaz violento fica doce e passa a ver sentido na vida. Uma pena que depois ele acaba aceitando o convite para entrar na máfia. Os atores mais jovens (Malik Frikah e Mallory Wanecque) funcionam melhor que a versão adulta (Civil e Adèle Exarchopoulos), mas é na versão adulta que eu me peguei mais emocionado, especialmente em duas cenas finais. E principalmente pelo fato de a narrativa lutar contra o fatalismo, ou apresentar uma realidade alternativa e feliz para aqueles personagens, como se um deus que se enamora e tem misericórdia desse casal de amantes. O filme é pulsante, tem muita música e é uma história de amor das mais bonitas do cinema recente.

THE MASTERMIND

Não é o primeiro filme de Kelly Reichardt sobre foras-da-lei. Desde seu primeiro longa, RIVER OF GRASS (1994), que ela já mostrava seu fascínio por histórias de crimes. Mas sua visão do ponto de vista dos criminosos é mais sutil, além de muito humana. Lembro que quando saiu FIRST COW (2019) alguém chegou a dizer que se tratava do mais delicado heist movie já feito. Até porque, ainda que haja um suspense nas cenas do roubo do leite, o foco maior é a relação de amizade e colaboração entre dois homens. No caso de THE MASTERMIND (2025), a diretora opta por focar na decadência do personagem de Josh O’Connor, um homem casado e com dois filhos pequenos, filho de um juiz, que tem a ideia de roubar quatro quadros de um museu de arte. Para tal, contrata três colegas com pouca experiência no ramo e o resultado já deixa claro o amadorismo do grupo. A narrativa tem um andamento que faz lembrar tanto o cinema da Nova Hollywood (destaque para a fotografia que remete à época) quanto o filme noir francês, tão envolvente quanto lento, para os padrões do cinema de gênero de Hollywood, ainda que atraente o suficiente para agradar plateias maiores do que o filme possivelmente alcançará. Sorte de quem o vir. Saindo longe da vulgaridade, Reichardt nos apresenta a novos heróis fracassados.

O BRILHO DO DIAMANTE SECRETO (Reflect dans un Diamant Mort)

Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada, a de ver O BRILHO DO DIAMANTE SECRETO (2025), quarto longa-metragem do casal Hélène Catet e Bruno Forzani, na telona. Eles têm se especializado em fazer um trabalho de homenagem aos filmes de gênero europeus das décadas de 1960/70, mas com pouco interesse na trama e muito interesse na construção de imagens incríveis. Logo, é embarcar na viagem sem precisar entender muito e ser feliz, com tanto diamante/vidro estilhaçado, ângulos de câmera inusitados, violência gráfica exacerbada e por isso mesmo pouco agressiva, e temos Fabio Testi encabeçando o elenco. Ele que fez vários westerns spaghetti e protagonizou um dos meus gialli favoritos, O QUE VOCÊS FIZERAM COM SOLANGE?, de Massimo Dellamano. Mas a maior homenagem aqui é a PERIGO: DIABOLIK, de Mario Bava, que por sua vez é adaptação do quadrinho Diabolik. Aqui o que seria o personagem Diabolik é uma mulher e se chama Serpentik, adversária misteriosa de um espião, que agora vive aposentado, mas relembrando seu passado. Mas isso é ficção ou é um filme? Ficção e realidade se confundem deliciosamente na nossa cabeça. Cena favorita: Serpentik entra num bar e enfrenta um grupo de homens. Trata-se de uma cena que até poderia se comparar com as de KILL BILL, mas é ainda mais inventiva em seus detalhes. O que falta no casal belga em construir cenas de ação perfeitamente coreografadas, sobra em saber usar a montagem a seu favor.

domingo, outubro 12, 2025

A LEI DOS MARGINAIS (Underworld U.S.A.)



A minha peregrinação pela obra de Samuel Fuller está em ritmo muito mais lento do que gostaria. Poderia até dizer que é que sua obra não me traz o mesmo impacto de outras peregrinações recentes, como foi o caso de Abel Ferrara, Fritz Lang e Brian De Palma, para citar aprofundamentos nas obras de diretores iniciadas de 2020 para cá, ma a verdade é que hoje entendo por que Fuller é tão querido pelos críticos: porque ele se torna mais fascinante à medida que pensamos nele, em seus filmes, em seus personagens trágicos. Mas sei também que os tempos são outros e que também tem me faltado tempo para escrever. E sei também que estou vivendo um dos melhores momentos de minha vida, e por isso não posso reclamar. Vamos seguindo, agora iniciando os filmes dos anos 1960 de Fuller, com A LEI DOS MARGINAIS (1961), um filme que, confesso, não foi dos que mais me envolveram.

Curioso como Fuller seguia seu próprio caminho nas décadas em que mais trabalhou: as de 1950 e 60. Nos anos 1950, ele poderia estar fazendo filmes semelhantes aos noir produzidos em grande escala, mas acabou fazendo apenas ANJO DO MAL (1953). Até podemos classificar CASA DE BAMBU (1955) e O QUIMONO ESCARLATE (1959) também nessa categoria, mas eles fazem parte daquele fascínio do diretor pelo mundo asiático.

A LEI DOS MARGINAIS chega num momento em que o film noir já é considerado morto pelos historiadores, e antecipa o filme policial mais sujo que estaria mais presente no cinema da Nova Hollywood. É uma história de vingança que começa de maneira muito simples, mas que vai se tornando mais intrincada quando o personagem de Cliff Robertson sai da prisão para se vingar do pai, assassinado pela máfia. E eu confesso que comecei a perder um pouco o gosto nesses momentos do filme: as intrigas que o personagem cria para fazer com que seus inimigos matem a si mesmos.

O que mais me pegou no filme foi uma cena em que o interesse amoroso do personagem (Dolores Dorn) pede ao protagonista em casamento. Nesse momento, o sangue sobe de raiva no espectador (subiu em mim, ao menos), mas é aí que vemos o quanto essa personagem é herdeira das heroínas do cineasta, lembrando Jean Peters em ANJO DO MAL, Shirley Yamaguchi em CASA DE BAMBU, Barbara Stanwyck em DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957) e principalmente Andie Dickinson em NO UMBRAL DA CHINA (1957), um de seus filmes mais devastadores, especialmente quando pensamos na personagem feminina. Também há uma cena de fazer suar frio em A LEI DOS MARGINAIS: a do atropelamento de uma criança. Nos extras do box O Cinema de Samuel Fuller há um entusiasmado comentário de Martin Scorsese sobre o filme e um pouco sobre o diretor também. Quem tiver de posse dessa mídia física, vale muito conferir.

Um livro que tenho acompanhado ao longo dessa peregrinação pela obra de Fuller é Samuel Fuller, de Phil Hardy, que acredito estar fora de catálogo, mas é possível encontrar em cópias em PDF. É uma dessas cópias que tenho lido. E acho interessante a classificação que o autor fez das obras do cineasta, dividindo por temas: “um sonho americano”, “jornalismo e estilo”, “uma realidade americana”, “Ásia” e “a violência do amor”. Claro que esses temas podem e se interrelacionam entre si e A LEI DOS MARGINAIS é enquadrado no tema “uma realidade americana”, assim como outros vistos, como BAIONETAS CALADAS (1951), TORMENTA SOB OS MARES (1954), PROIBIDO! (1959) e outros dois que pretendo ver e/ou rever: MORTOS QUE CAMINHAM (1962) e PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963).

Na trama de A LEI DOS MARGINAIS, o herói, de modo a se vingar do pai, assassinado pela máfia, faz jogo duplo entre o FBI e a máfia. Ele não tem uma ética de bem e mal, não tem interesse em fazer o bem, porque acha que os mafiosos são um mal para a sociedade, mas por pura vontade de satisfazer o seu ímpeto de vingança, de fazer valer seu ódio acumulado de anos. Ainda assim, ele salva Dolores, a leva para casa, mas não a vê como alguém que seja boa o suficiente para casar com ele. Pelo menos, não a princípio, não quando ele percebe sua própria estupidez, sua própria imbecilidade. Seu interesse em salvar Dolores está mais associado em conseguir alguém para dedurar os mafiosos e conseguir mais informações, e isso fica explícito na cena de sexo entre os dois, quando ele a seduz enquanto a questiona. O fim do herói não é um fim tão heroico assim, no fim das contas, mas ao menos ele havia alcançado algo próximo de uma honradez.

+ TRÊS FILMES

CLOUD – NUVEM DE VINGANÇA (Kuraudo)

Décimo filme de Kiyoshi Kurosawa que vejo e fico feliz que de vez em quando o nosso circuito abre uma brecha para um ou outro filme seu. CLOUD – NUVEM DE VINGANÇA (2024) foi um dos três que ele dirigiu no ano passado. Aos 70 anos de idade, Kurosawa está com uma energia de menino de 20. Este novo filme é bem surpreendente. Não tinha lido nada a respeito, mas esperava um horror sobrenatural. E ele começa mais ou menos assim, com uma das cenas mais assustadoras do cinema de gênero contemporâneo. Mas depois o filme vai se transformando em outra coisa, não parando de nos surpreender. Na trama, Yoshii é um jovem que decide largar o emprego para se dedicar a comprar e revender coisas. Sua maior diversão é olhar a tela do computador e perceber que teve o tino para o negócio, que seu lucro foi imediato. Yoshii não se importa se a bolsa que compra é de grife ou falsificada; se está passando por cima de colecionadores apaixonados de uma boneca para oferecer mais e vender com um preço bem mais caro. Até que as coisas começam a complicar para ele e ele passa a ser perseguido. Uma das graças do filme é nos fazer ficar do lado, ou talvez torcendo, ainda que o verbo não seja bem esse, por alguém que na verdade é o grande vilão. Inclusive, uma das coisas que não me fez amar o filme foi o aspecto pouco sutil com que Kurosawa ataca o capitalismo. Mas é, sim, um belo filme e um herdeiro de PULSE (2001), seu melhor trabalho (entre os que vi), não pelo caráter sobrenatural, mas pelo interesse pelo mundo virtual.

ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS (Ernest Cole: Lost & Found)

Diferente de EU NÃO SOU SEU NEGRO (2016), um filme carregado de muita raiva (e com toda a razão), ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS (2024) é carregado de muita melancolia por parte do diretor Raoul Peck. E de certa forma isso é totalmente coerente com o espírito do personagem, pelo menos em sua trajetória de solidão e despatriação, quando sai de uma África do Sul vivendo seus mais brutais e covardes momentos do Apartheid, para viver nos Estados Unidos. Em seu país, ele criou um rico trabalho fotográfico que denuncia as violências cotidianas sofridas pela população negra – casas destruídas, assassinatos durante protestos, ofensas gratuitas nas ruas, além do que já se sabe sobre o regime, o de separação total de espaços e de humilhação e desamparo de quem não é “europeu”. Um dos momentos mais tristes do filme é quando Cole compara a violência na África do Sul e nos Estados Unidos, especialmente no sul, como o Mississipi: em seu país, ele tinha medo de ser preso; nos Estados Unidos, ele temia levar um tiro. Ou seja, a “terra da liberdade” tão propalada não era bem assim para os negros. O documentário é composto de fotos de Cole e narrado com texto seu, complementado com texto escrito por Peck. Os poucos depoimentos são fundamentais para a conclusão do filme.

O APRENDIZ

Uma pena eu não ter visto O APRENDIZ (2024), de Ali Abbasi, quando foi exibido (rapidamente) nos cinemas no ano passado. Mas poder ver na telinha não perdeu sua força, não. É de fato um filme incrível, um retrato da criação de um monstro. Se o jovem Donald Trump (Sebastian Stan) aprendeu as regras do jogo que ditam seu jeito de viver e de governar e desgovernar até hoje com o advogado inescrupuloso vivido por um assombroso Jeremy Strong, o monstro que esse advogado cria é até difícil de descrever com palavras. A trama do filme se passa principalmente nos anos 1970 e 80, quando Trump ainda era um rapaz fascinado pela vida dos milionários e vivia de cobrar de porta em porta o aluguel dos imóveis do pai. Conhecer Roy Cohn muda sua maneira de pensar e agir e aumenta sua ambição. Com a ajuda das trapaças e do jogo sujo do advogado, ele alcança uma riqueza ainda mais impressionante se pensarmos como era a Nova York nos anos 1970, bastante decadente. Algumas cenas memoráveis: a lição inicial de Cohn, a festa regada a sexo e drogas, a negociação sobre o casamento com Ivana Trump (Maria Bakalova), o encontro com o advogado doente, as duas cenas em paralelo que dizem muito de quem é Trump: um sujeito incapaz de ver a vida além da superficialidade do corpo e da acumulação de dinheiro. Todos os atores envolvidos estão incríveis, mas Strong e Stan estão monstruosos de tão bons.