domingo, novembro 17, 2024

CAETANO & BETHÂNIA NO ARENA CASTELÃO – FORTALEZA, 16 DE NOVEMBRO DE 2024



O show de Caetano & Bethânia em 2024 estaria para o show de reunião dos Titãs em 2023, em grau de importância e de escala. Mas a comparação talvez não seja muito justa, levando em consideração que Caetano Veloso e Maria Bethânia estão muito mais tempo entre nós. Estava comentando ontem com a Giselle, depois que saímos do show e sentíamos aquela dificuldade de encontrar um Uber para voltar para casa, o quanto é incrível estarmos em pleno 2024 e vendo um show de dois artistas que já começaram gigantes em meados dos anos 1960. Por isso me emocionou tanto quando os dois cantaram “Oração ao Tempo”, a quarta canção do show, estando eles ali, saudáveis, na faixa dos 70 e 80 anos de idade, como que se tivessem conseguido um acordo com o “tambor de todos os ritmos” e o “compositor de destinos”.

E foi este o momento que meus olhos marejaram, eu me lembrei do meu grande amigo Santiago, que me fez conhecer mais o Caetano. E Giselle também lembrava de um amigo querido, Weliton, fã de Bethânia, falecido neste ano. Ela dedicou o show a ele algumas vezes. Acho bonito e tocante essa relação da Giselle com as pessoas queridas que se foram. Faz-me lembrar François Truffaut, cineasta estimado. No caso dela, especificamente, o que é ainda mais bonito é que isso não passa a ser uma virada de chave para a tristeza, não chega a diminuir a alegria em seus olhos ou o sorriso em seus lábios, nem muito menos a alegria de estar viva e celebrando a vida.

A expectativa para o show era grande. Compramos o ingresso logo no primeiro dia de abertura, com medo que acabasse logo, como aconteceu em algumas cidades. Não esgotou, mas o Arena Castelão é um lugar enorme, de todo modo, e fazia tempo que não via tanta gente reunida. As minhas expectativas quanto ao repertório já haviam sido diminuídas, pois gosto de acompanhar o setlist antecipadamente dos shows nas cidades. Então, já percebia que havia canções que não conhecia ou não gostava tanto e que gostaria que fossem substituídas. Mas não sou eu quem faz o show, são eles. E a Caetano e Bethânia, a gente não reclama; a gente agradece.

O show começa com “Alegria, alegria”, canção da fase inicial de Caetano, de 1967, e que hoje é comumente associada aos movimentos de resistência do Brasil da época da ditadura. É também uma canção do movimento tropicalista e outras três desse período seriam tocadas ao longo do show, “Tropicália”, “Baby” e “Não identificado” Aliás, “Não identificado” foi outra que me emocionou muito. Acho que não havia percebido o quão romântica era; acho que a percebia mais como uma canção inovadora do ponto de vista formal, olhava mais para sua modernidade exuberante. Dessa vez, a ideia de uma canção “dizendo tudo a ela” que brilharia na noite no céu de uma cidade do interior, como um objeto não identificado, isso é lindo demais. E o trabalho de direção de arte do show, nesse momento, mostrou o espaço sideral. De cair o queixo.

A segunda canção da noite foi muito especial, “Os mais doces bárbaros”, da antológica reunião do quarteto fantástico da Bahia – Caetano, Bethânia, Gal e Gil. Ela tem algo de chegar-chegando, e de chegar com amor e com felicidade, mas também como uma invasão, fazendo a união do doce bárbaro Jesus com símbolos do candomblé, como a espada de Ogum, a bênção de Olorum e o raio de Iansã. Seria uma ótima canção para abrir o show, inclusive. Mas entendo a opção por “Alegria, alegria”, justamente por ser mais famosa.

Dessa primeira parte do show, com Caetano e Bethânia no palco, destacaria também, além das já citadas “Oração ao Tempo” e “Não identificado”, duas que considero essenciais: “A tua presença morena” e “Cajuína”, que ganhou um arranjo muito diferente, com bastante percussão, o que me trouxe sentimentos mistos, já que trata-se de uma canção de origem triste, a lembrança de Torquato Neto, a visita de Caetano ao pai do poeta falecido. Algumas canções não me pegaram neste primeiro bloco, tipo “Eu e água” e “Motriz”, mas faz parte.

Eis que Caetano fica sozinho no palco e, de posse unicamente de seu violão, faz todo mundo cantar “Sozinho”, de Peninha, que fez um sucesso estrondoso quando ele regravou a canção em 1998. Acho que foi o momento de maior participação do grande público, em que o cantor podia facilmente deixar as pessoas cantando sozinhas, mas a voz dele é tão boa, ele é um artista tão completo, que é gostoso demais ouvi-lo. Depois vem outro sucesso, “O leãozinho”, que podia muito bem ter ficado de fora. Entrou naquele tipo de música que todo mundo já ouviu tanto que cansou.

A próxima, a cover de Fernando Mendes “Você não me ensinou a te esquecer”, era uma das mais aguardadas por mim. Acho linda a versão original de Mendes e a versão de Caetano é magistral. Senti falta dos violinos e violoncelos da versão de estúdio, mas ficou muito bonita com banda e metais. Acho que é uma canção que já me fez chorar tantas vezes que esperava entrar em prato no momento do show, o que não necessariamente aconteceu. Já havia comentado com a Giselle sobre o quanto fico particularmente tocado com canções em que o eu lírico pede perdão (como “A vida é doce”, do Lobão; “The heart of the matter”, na voz de Renato Russo; “Espumas ao vento”, nas vozes de Fagner e de Ney Matogrosso, “Jealous guy”, de John Lennon etc.).

Depois teve “Você é linda”, que cantei com alegria para a Giselle, feliz de estar do lado dela, e é uma canção incrível na construção poética e na sofisticação da voz do mestre. Caetano batia no peito nas passagens em que cantava “Onda do mar do amor que bateu em mim”, com aquele quê de poesia simbolista que valoriza a repetição de consoantes. 

Em seguida, para encerrar esta fase de Caetano sozinho no palco, ele agradece a Peninha, a Fernando Mendes e fala do aumento do número de evangélicos no país e do quanto achou importante trazer “Deus cuida de mim”, de Kleber Lucas. Nem todos os fãs mais raiz do Caetano devem ter gostado, mas percebi uma boa aceitação de várias pessoas. Lembrei de minha mãe, que cantou com alegria e devoção essa canção no dia que coloquei essa música para tocar no carro. 

O momento Bethânia sozinha começou com “Brincar de viver” (Guilherme Arantes), que achei bem bonita de ouvir, especialmente com o arranjo de metais, mas difícil mesmo é ficar sem se empolgar quando ela canta “Explode coração” (Gonzaguinha), que é uma canção tão curta e lírica quanto explosiva. Emocionei-me, logo em seguida, com “As canções que você fez pra mim” (Roberto e Erasmo), que ficou incrível demais. O que é aquele solo de metais, que muito lembra a própria versão de Roberto? Uma canção avassaladora que só tem a ganhar com a voz e a performance de Bethânia. Depois veio “Negue”, outra tijolada, do repertório de Nelson Gonçalves, mas que hoje em dia todo mundo só lembra da versão de Bethânia, do clássico Álibi (1978). Aliás, bem que os novos artistas podiam resgatar mais essas canções da velha guarda. A canção que fechou este bloco de  Bethânia foi “Vida” (Chico Buarque), que eu desconhecia.

As emoções da noite ainda seguiriam com os dois juntos retornando com uma homenagem à escola de samba Mangueira, seguida de uma homenagem a Gal Costa com “Baby”, que não funcionou muito bem nas vozes nem de Caetano nem de Bethânia, e com “Vaca profana”, esta sim funcionou, principalmente pelo arranjo mais rock’n’roll e pelo barulho que a banda fez, antecipando outro clássico do rock brasileiro dos anos 1970, “Gita”, de Raul Seixas. Acho que fazer cover de Raul é sempre uma tarefa ingrata, especialmente dessas canções mais icônicas, mas ficou no mínimo interessante o novo arranjo. Depois veio “O quereres”, com sua poesia incrível, uma cover de IZA, chamada “Fé”, que mostra o quanto Caetano gosta de se aproximar das novas gerações de cantores e cantoras, e depois “Reconvexo” e “Tudo de novo”.

No encore, a canção especial e exclusiva para o show de Fortaleza foi a lindíssima “Mucuripe” (Fagner/Belchior), que só reclamo por ter sido cantada muito rapidamente. É uma canção que me faz lembrar de meus tempos no Coral do IBEU. E terminaram com a canção-mantra “Odara”, que foi finalizada só com a banda e os backing vocals, enquanto as duas entidades já haviam se despedido discretamente. 

Uma oportunidade dessas, um show como esses, acontece praticamente uma vez na vida. Que bom que tivemos a chance de estar lá. Vi que vários amigos estavam por lá, pela repercussão nas redes. E acredito que todo mundo voltou pra casa odara.

sábado, novembro 09, 2024

AINDA ESTOU AQUI



“A ignorância é vizinha da maldade”
Provérbio arábe com frequência citado por Renato Russo


Uma das coisas mais lamentáveis no cenário atual, em que vemos cada vez mais pessoas aderindo aos valores da extrema direita, é o quanto elas ficam tão cegas diante dos fatos, que até preferem deixar de apreciar o melhor que os intelectuais e os artistas produzem, preferindo a ignorância e a estupidez. E sendo artistas pessoas geralmente sensíveis e humanistas, eles tendem a lamentar tudo que é destrutivo ao ser humano, tudo que pode causar dor e morte em larga escala, como uma ditadura autoritária que faz desaparecer (isso significando torturar, matar e sumir com o corpo) milhares de pessoas, sem assumir o crime, o que soma também outra característica a esses criminosos: a covardia. (Escrevo isso, aliás, com a nova edição caprichada do clássico quadrinho O Eternauta, de Héctor G. Oesterheld e Francisco Solano López. Oesterheld foi um “desaparecido” pela ditadura argentina.)

Não gosto de dizer isso sobre filmes, mas de vez em quando surge algum que meio que nos força a dizer: AINDA ESTOU AQUI (2024), de Walter Salles, é um filme necessário. O Brasil tem um sério problema de memória e é importante que tenhamos um filme que dê rostos a pessoas que foram vítimas de assassinatos cometidos pelo regime militar. O rosto de Rubens Paiva, vivido por Selton Mello, o rosto de sua esposa Eunice, vivida por Fernanda Torres, e o de seus filhos, tão jovens e cheios de vida e depois tendo que lidar com essa tragédia capaz de nos deixar muito indignados, muito putos. E esse foi o sentimento que mais tive ao longo do filme, embora o prazer de ver uma obra tão bem dirigida, encenada, atuada, fotografada, esse prazer também não tem preço.

A primeira parte do filme, que nos leva à casa de Rubens e Eunice, à alegria daquele lar, daquela casa de frente para o mar (a mesma casa onde eles viveram, inclusive), é essencial para que experimentemos um pouco do que foi a vida daquela família antes de três homens armados aparecerem e levarem o pai de família. As meninas dançando ao som de “Je t'aime... moi non plus”, de Serge Gainsbourg, canções de Erasmo Carlos (“É preciso dar um jeito, meu amigo) e de Tom Zé (“Jimmy, Renda-se”), entre outras como que para enfatizar a riqueza musical daquele período e nos trazer orgulho de nossa cultura, o brincar na praia e o cachorrinho que é acolhido pelo pequeno Marcelo, o carinho de Rubens com os filhos e a atenção da mãe Eunice, o entusiasmo da filha mais velha Vera (Valentina Herszage, de MATE-ME POR FAVOR) com a ida para a Europa.

Nesse primeiro momento, também sentimos o gosto da repressão da polícia na cena em que Vera, junto com uns amigos num carro, é parada e revistada agressivamente numa blitz. E também na notícia do sequestro do embaixador suíço pelo grupo de Carlos Lamarca, em dezembro de 1970, anunciado pela voz de Cid Moreira no Jornal Nacional. Uma das filhas de Rubens, Eliana, vivida por Luiza Kosovski (SEM SEU SANGUE) se mostra a mais atenta à tensão política existente no Brasil e presente nos noticiários, que precisam ser sempre lidos nas entrelinhas.

O diretor de fotografia Adrian Teijido é o mesmo de MARIGHELLA, de Wagner Moura, um filme de tons mais escuros. Aqui esses tons escuros se equilibram com o céu azul e solar do Rio de Janeiro, como que escondendo o que acontecia no Brasil. E Walter Salles opta pela película 35 mm, deixando as imagens muito mais próximas de uma ambientação da década de 1970.

Quanto ao registro mais clássico, gosto muito da decisão de Salles de evitar o choro fácil, até como uma maneira de ser fiel à personagem de Fernanda Torres. A cena já conhecida de Eunice querendo que todos sorriam na foto para a revista Manchete é representativa disso. Afinal, é assim que os inimigos os queriam: chorando, tristes, destruídos. E não foi assim que Eunice os ensinou a viver, como mãe e como ativista dos direitos dos povos indígenas.

Fernanda Torres tem aqui o papel da vida dela. E olha que ela já começou muito bem, com INOCÊNCIA, de Walter Lima Jr. e ganhou prêmio de melhor atriz em Cannes por EU SEI QUE VOU TE AMAR, de Arnaldo Jabor, prêmio, aliás, que as pessoas tendem a esquecer. Ou seja, em Veneza 2024 ela concorria a um segundo prêmio de atuação em festival internacional de grande porte. Além disso, recentemente ganhou um prêmio internacional do Critics Choice, por sua atuação em AINDA ESTOU AQUI. Sua interpretação no filme de Salles é incrível, no quanto se destaca especialmente quando precisa esconder os sentimentos de tristeza para os filhos, de modo a não os deixar ainda mais tristes, com o desaparecimento do pai. Como sou muito ruim em analisar interpretações não sei muito o que dizer, mas sei o quanto Fernanda foi/é gigante.

Quanto à simpatia de Walter Salles pelas causas de esquerda, elas já podiam ser percebidas no início da carreira com a adaptação de um autor censurado durante o regime militar, Rubem Fonseca, no subestimado A GRANDE ARTE (1991), feito num momento em que Collor de Mello havia destruído a Embrafilme. Depois os próprios anos Collor seriam contados no ótimo TERRA ESTRANGEIRA (1995), protagonizado por Fernanda Torres, mas talvez o exemplo mais explícito de seu apoio à esquerda, mesmo sendo um dos homens mais ricos do mundo, tenha sido ao mostrar a juventude de Che Guevara em DIÁRIOS DE MOTOCICLETA (2004).

Torço para que AINDA ESTOU AQUI seja bem visto no mundo todo, mas que seja muito visto principalmente no Brasil. É a nossa memória. Sem falar que é também a chance de vermos uma das maiores interpretações da história do cinema brasileiro. Enfim, é tanta coisa junta que o hype é totalmente justificado.

+ TRÊS FILMES

CONTINENTE

Tem dias que a gente vai ao cinema de teimoso, mesmo não estando com a saúde lá muito boa. E se eu ouvi de pessoas da sessão que saíram da experiência de CONTINENTE (2024) com certo mal-estar, ou náusea, há de se imaginar que eu também saí, estando eu um tanto febril. O terceiro longa-metragem de Davi Pretto no início guarda semelhanças com outras obras que abordam a nossa herança escravocrata, como PROPRIEDADE, de Daniel Bandeira, ou O SOM AO REDOR, de Kleber Mendonça Filho. Mas Pretto opta por seguir por um outro caminho, inclusive fazendo referências explícitas a clássicos do cinema de horror mais sangrento, como DESEJO E OBSESSÃO ou POSSESSÃO, ou até mesmo O VÍCIO, do Ferrara. É então que o filme ganha uma aura um pouco mais difícil de penetrar. Sem falar que sua opção não é pelo horror como elemento de conforto pela familiaridade, mas como elemento de mal-estar, pois mais próximo do realismo. É filme para ficar ainda pensando nos dias seguintes.

NINGUÉM SAI VIVO DAQUI

Filme de mal-estar esse NINGUÉM SAI VIVO DAQUI (2023). Apesar de gostar do final, não é fácil acompanhar o desenvolvimento da trama, que foca numa garota de 23 anos que é internada contra sua vontade num hospital psiquiátrico que funciona como uma sucursal do inferno, com direito a trabalho forçado, pessoas morrendo de frio ou enlouquecendo com métodos de eletrochoque. Um hospital que existiu de verdade no interior de São Paulo. O diretor André Ristum opta por uma fotografia em preto e branco estilizada, que não combinaria nem se sua obra fosse de realismo social nem muito menos se se assumisse como um exploitation de prisão, como se fazia antigamente, ou mesmo terror. De todo modo, gosto da atriz principal, Fernanda Marques, que defende bem sua personagem. Augusto Madeira também está odiosamente bem como um dos funcionários mais sádicos do lugar.

SEM CORAÇÃO

Uma alegria perceber o quanto o cinema brasileiro está vivendo um dos melhores momentos de sua história. SEM CORAÇÃO (2023), de Nara Normande e Tião, é um dos títulos que certamente será lembrado no futuro quando pensarmos nesta era de ouro. O filme começa e já ficamos encantados com as imagens em janela scope daqueles jovens desfrutando de uma praia paradisíaca do litoral do nordeste (as locações foram em Alagoas). O longa nasceu do sucesso do curta-metragem de mesmo nome (2014) e tem a habilidade natural de nos afeiçoar a seus personagens. A alguns mais do que a outros, mas o suficiente para que cada cena apresentada seja degustada com muito prazer e alegria. Maya de Vicq (estreando lindamente como a protagonista Tamara) conversando com Maeve Jinkins enquanto ouvem uma canção de Maria Bethânia. As cenas no forró. A conversa final entre Maya e Eduarda Samara (a "Sem Coração" do título). A invasão à casa dos vizinhos. A piscina vazia como local de iniciação sexual dos meninos. O jovem e querido delinquente, triste com sua condição, e o encontro com o pai. Há todo um contexto social que o filme conduz de maneira às vezes rápida o suficiente para que queiramos vê-lo uma segunda ou terceira vez para captar melhor. E há as cenas de sonho que só não são mais lindas que as que apresentam a natureza real, pois essa natureza é representativa de uma quase utopia, até pelo fato de os jovens mais ricos serem amigos dos filhos de pescadores, como se a sociedade ainda não os tivesse corrompido. Exceto pelo perigo que os ronda, especialmente para o rapaz gay que insiste em ser feliz, ou para os mais desfavorecidos. E que luxo poder ver um filme como este numa sala tão bem equipada.

quarta-feira, novembro 06, 2024

CASA DE BAMBU (House of Bamboo)



Acordei hoje sentindo um silêncio incômodo dos amigos nas redes. Ninguém comentando sobre a vitória de Donald Trump nas urnas, seu segundo mandato. É algo tão inacreditável que o calar-se parece ser o melhor a fazer. Pelo menos por enquanto, já que a história nos contou o que aconteceu com o mundo nos anos 1930, com a ascensão dos nazistas e dos fascistas. Ver isso ocorrendo de novo e agora num país extremamente poderoso como os Estados Unidos é de dar medo, até porque as falas xenófobas desse Trump 2.0 parecem ainda mais agressivas.

Coincidência ou não, em casa, de atestado médico, com uma gripe incômoda e que causa cansaço mental, tento escrever algumas linhas, mesmo assim, sobre um diretor que buscou refletir sobre a relação dos americanos com os estrangeiros. Samuel Fuller foi se tornando cada vez mais interessado na Ásia. Lutou na Segunda Guerra e foi também um entusiasta do exército americano e um apaixonado pelo tema da guerra, como podemos perceber em seus filmes, sempre poéticos. Mesmo um filme como A DAMA DE PRETO (1952), que exalta o jornalismo, uma forma de linguagem supostamente mais objetiva, é cheio de paixão. CAPACETE DE AÇO (1951), seu primeiro filme cuja história se passa na Ásia (Coreia), possui um tom humanista encantador.

Mas não estava preparado para CASA DE BAMBU (1955), que se tornou um dos meus favoritos do realizador até o momento, junto com o noir ANJO DO MAL (1953). Uma das graças de CASA DE BAMBU está no quanto o filme vai nos surpreendendo a cada momento. Seja na identidade e nas intenções dos personagens de Robert Stack e Robert Ryan, seja na evolução da trama, de como o líder de quadrilha (Ryan) vai se aproximando e gostando mais daquele homem com suposto histórico de crimes (Stack).

A aproximação dos dois até ganha certa conotação homoerótica, ainda que muito sutil. Li uma crítica que fala da relação dos dois como uma espécie de traição homossexual, e de como isso acaba por enfatizar a relação dos dois homens. E há a mulher japonesa, viúva, Mariko (Shirley Yamaguchi) que se encanta com o personagem de Stack, que esconde uma identidade diferente para se aproximar dela e saber mais de seu marido. Gosto muito de como o relacionamento dos dois vai se tornando mais íntimo, a cada encontro, e de como eles usam a atração que sentem um pelo outro como subterfúgio para se vingar dos assassinos do marido de Mariko.

O filme mistura os gêneros de western, espionagem e aventura com pitadas de romance e suspense e é impressionante como Fuller parece dar conta de todos esses gêneros e ainda trazer profundidade para seus personagens. Talvez seja seu trabalho que melhor explora planos gerais, talvez por ser filmado em scope – o anterior, TORMENTA SOB OS MARES, também era, mas se passava a maior parte do tempo dentro de um submarino, o que não deixa de ser igualmente notável, mas nada como poder apreciar aquele Japão do pós-guerra, como num documentário. Inclusive, esse uso bastante generoso dos planos gerais me fez parar o filme depois de 15 minutos para poder retomá-lo com mais atenção, coisa que recomendo sempre que certo filme exige um pouco mais da gente.

CASA DE BAMBU foi a primeira produção americana a ser rodada no Japão, na época sob controle dos Estados Unidos, num complicado momento do pós-guerra, com os japoneses tendo ódio do povo que os humilhou e que passou a dar as ordens, embora essa relação também vá se tornando mais ambígua e a influência cultural americana se torne muito forte. Fuller sabe muito bem apresentar a figura do americano em território estrangeiro como uma figura muito pouco bem-vinda.

Visto no box A Arte de Samuel Fuller.

+ TRÊS FILMES

PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (Dirty Harry)

Don Siegel foi um diretor que começou sua carreira com filmes noir B nos anos 1940 e fazia milagre com aquelas produções de baixo orçamento. Fez uma transição linda para a Nova Hollywood nos anos 1970, em especial com os filmes estrelados por seu parceiro Clint Eastwood, um discípulo prestes a se tornar maior que o mestre, mas também um ator que esbanja carisma e dá munição para os filmes masculinos e um tanto fascistas do período. É o caso deste PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (1971), que já começa com uma homenagem respeitosa aos policiais de São Francisco, mortos em serviço. Fez-me lembrar os primeiros filmes de guerra de Samuel Fuller. A estrutura deste primeiro título estrelado pelo inspetor Harry Callahan é simples, apresentando de cara o principal vilão, um psicopata chamado scorpio, que vem matando as pessoas usando um rifle de longo alcance. E pessoas do signo de escorpião, embora essa informação me pareça pouco importante. Eu tinha poucas lembranças de PERSEGUIDOR ..., mas a memória veio forte na cena do estádio de futebol, com aquela cena da câmera se afastando do local. Achei interessante o quanto é uma obra que não se importa em ser pouco sutil. Lá pelo final do filme, o vilão já fica passeando todo serelepe para chamar a atenção de seu inimigo. Um dos motivos que me chamou a atenção para revê-lo foi o comentário entusiasmado de Quentin Tarantino em seu livro Especulações Cinematográficas. Segundo Tarantino, Siegel customizou seu filme para as plateias mais velhas, em especial homens rancorosos e muito incomodados com as mudanças que a contracultura trouxe para a sociedade. Hoje certamente encontraria seu público, noutro contexto, embora o personagem de Clint não seja tão simples assim de ler. 

ACERTO FINAL (The Crossing Guard)

Dos três filmes muito masculinos do início da carreira de Sean Penn como diretor, talvez ACERTO FINAL (1995) seja o que menos me agradou, embora tenha um monte de cenas memoráveis e um carinho imenso que sentimos por esses dois personagens atormentados por dores distintas, mas totalmente conectadas. David Morse é o sujeito que dirigiu embriagado, matou uma garotinha de sete anos e passou alguns anos na prisão. Jack Nicholson é o pai da menina, que sonha em matar o sujeito assim que ele sair da prisão, enquanto leva uma vida totalmente errática, depois que seu casamento afundou e sua vida passou a ser sinônimo de beber e sair com prostitutas. Talvez a minha única ressalva com o filme esteja no sentimentalismo da conclusão, logo eu, que sou sentimental. Nicholson abraça um papel difícil, que o leva a situações que fogem um pouco do que estamos acostumados a ver de sua persona, como quando ele liga chorando para a ex-esposa (Anjelica Huston). Gosto muito de como Penn trata essas duas pessoas como dignas de perdão, compreensão, afeto, além de serem homens carismáticos, mesmo quando estão no fundo do poço (em especial, Nicholson, um gigante). Mas uma vez é um filme centrado nos homens, com as personagens femininas (Robin Wright, Huston, Piper Laurie) mais como representativas de um tipo de harmonia e de talvez de compreensão maior da vida que os homens não têm, ocupados tendo que lidar com o enfrentamento de seus próprios demônios.

A PROMESSA (The Pledge)

Não lembrava que A PROMESSA (2001) era tão bom. Talvez na época que o vi (há mais de 20 anos) tenha achado o filme muito arrastado, pois há de fato um andamento menos apressado que faz lembrar o cinema da Nova Hollywood, sensação percebida também em UNIDOS PELO SANGUE, a estreia na direção de Sean Penn. Este seu terceiro filme também conta com um personagem policial e conta com um plot mais delineado, ainda que também seja muito centrado na construção do personagem de Nicholson, o velho policial aposentado que promete pela sua alma que pegará o assassino de uma garotinha. Com o principal suspeito tendo cometido suicídio, o caso é encerrado pelos policiais, mas o nosso velho herói sente que há algo errado ali, que aquele homem não era de fato o assassino. E assim segue, mesmo aposentado, numa busca obsessiva e diária pelo assassino de garotinhas, a partir de pequenas, mas importantes, pistas. Penn consegue um elenco incrível: além de Nicholson (um ícone da Nova Hollywood), há a presença de Aaron Eckhart, Helen Mirren, Robin Wright, Vanessa Redgrave, Sam Shepard, Patricia Clarkson, Benicio Del Toro e Harry Dean Stanton. Trata-se também de um filme sobre a solidão, mais especialmente sobre a solidão na velhice, um tema de certa forma comum em filmes policiais que abordam detetives de polícia que se aposentam. Assim como UNIDOS PELO SANGUE, A PROMESSA termina com um fechamento para o espectador, mas com um não-fechamento para o protagonista, o que provoca sentimentos no mínimo melancólicos. No caso de A PROMESSA, há algo de fabular na narrativa, o que tem tudo a ver com as pistas e as histórias infantis contadas pelo ex-policial para a garotinha. Como um "Chapeuzinho Vermelho" para adultos.

sábado, novembro 02, 2024

O QUARTO AO LADO (The Room Next Door)



Senti falta em O QUARTO AO LADO (2024) daquele momento que comumente acontece nos filmes de Pedro Almodóvar em que ele nos ataca direto no nervo, com um tipo de emoção às vezes inesperada, como o encontro dos ex-amantes em DOR E GLÓRIA (2019), o reencontro do filho com a mãe no final de A PELE QUE HABITO (2011), as palavras duras ao marido traído em CARNE TRÊMULA (1997), a dor da mãe ao perder o filho num acidente no início de TUDO SOBRE MINHA MÃE (1999), ou um estado de sensibilidade à flor da pele tal que uma canção na voz de Caetano Veloso faz aflorar muita emoção em FALE COM ELA (2002).

No entanto, imagino que essa falta de um momento mais aproximado de um melodrama seja necessária para dar uma voz mais sóbria e respeitosa à decisão da personagem de Tilda Swinton – até mais que em MAR ADENTRO, de Alejandro Amenábar. Em O QUARTO AO LADO, Swinton é Martha, uma mulher que está com câncer estágio 3, se submetendo a testes experimentais quando encontra a amiga que há tempos não via, Ingrid, vivida por Julianne Moore. A amizade das duas, um tanto afastada talvez por motivos profissionais, passa a ganhar força novamente. Ingrid é romancista; Martha é jornalista especializada em guerras. São duas mulheres que veem a vida de maneira diferente e isso é simbolizado por seus próprios ofícios.

Ingrid é pega de surpresa quando Martha pede a ela que lhe faça um grande favor. Martha havia comprado uma pílula para a eutanásia na deep web e só precisava de alguém que estivesse no quarto ao lado, no momento em que ela resolvesse partir. Nem seria preciso alguém que segurasse sua mão, algo que geralmente se imagina que alguém que está prestes a morrer deseje. Inclusive, é difícil não lembrar de caso recente, da notícia que recebemos da morte de Antonio Cicero, poeta, filósofo, letrista, crítico literário, que decidiu se submeter a um suicídio assistido na Suíça, depois um tempo convivendo com o Alzheimer. Para Cicero, isso seria uma forma digna de deixar a vida, pois já se sabe o que acontece com o corpo e a mente com a progressão da doença.

Esse tipo de decisão é muito polêmico e já vimos outros filmes que tratam da interrupção da vida e que nos pegaram até com mais força, com bem menos misericórdia, como MENINA DE OURO, de Clint Eastwood, e AMOR, de Michael Haneke. Poderíamos citar outros filmes com a temática do suicídio, como O VENTO DA NOITE e A FRONTEIRA DA ALVORADA, ambos de Philippe Garrel, mas sabemos que Garrel é um homem assombrado pela depressão. Já Almodóvar é um homem apaixonado pela vida e deixa bastante claro isso em cada uma de suas obras. Por isso a partida deste mundo é até relativamente postergada por Martha, que, na casa onde fica com Ingrid, aproveita alguns dias para apreciar a beleza e o cheiro da natureza ao redor.

Em DOR E GLÓRIA (2019), talvez o seu trabalho mais pessoal, o cineasta já falava sobre o quanto as dores no corpo interferem no prazer estético e no processo criativo. E desta vez esse assunto aparece de maneira muito mais forte ao tratar da mente drenada pelo câncer e dos tratamentos de quimioterapia. Mas o que eu mais temia quanto ao filme era perder a essência almodovariana por causa da língua inglesa, até por não ter gostado muito dos curtas A VOZ HUMANA (2020) e ESTRANHA FORMA DE VIDA (2023), e felizmente isso não acontece em O QUARTO AO LADO. Além do mais, de que outra maneira Almodóvar poderia realizar um sonho que é trabalhar com duas gigantes como Tilda Swinton e Julianne Moore?

Senti algumas travas nos diálogos, mas tudo bem. E as atrizes extraordinárias brilham muito num dueto que nos remete a PERSONA, de Ingmar Bergman. Mas eu até diria que o cineasta que ele mais faz referência desta vez é Alfred Hitchcock, tanto o de DISQUE M PARA MATAR (pela preparação da situação) quanto o de UM CORPO QUE CAI (em certas cenas finais). Além do mais, Almodóvar exercita muito bem o suspense nas cenas em que Ingrid acorda e olha para a porta (vermelha) para ver se está aberta ou fechada. 

E mais uma vez aqui Almodóvar deixa claras suas posições políticas, alfinetando através do personagem de John Turturro a extrema direita e o liberalismo como males imensos de nossa sociedade. E isso parece ser uma tendência do cinema recente do realizador: em MÃES PARALELAS (2021) ele havia tratado das pessoas desaparecidas durante o franquismo. Que bom ver que estamos do lado das melhores pessoas deste mundo.

+ TRÊS FILMES

TUESDAY – O ÚLTIMO ABRAÇO (Tuesday)

Achei curioso este filme ter ganhado espaço no circuito exibidor, ainda mais em cinemas de shopping. Não sei o quanto a presença de Julia Louis-Dreyfus pode ser um chamariz ou se a produtora A24 já está com essa popularidade toda. TUESDAY – O ÚLTIMO ABRAÇO (2023), o longa-metragem de estreia da croata Daina O. Pusić, é bem estranho, já que entre os três personagens principais está um pássaro, uma espécie de anjo da morte, que fala e muda de tamanho, de quase invisível para gigante. Ele chega para dar o fim definitivo à jovem filha da personagem de Louis-Dreyfus, vivendo sob os cuidados de uma enfermeira diariamente, e com a saúde muito delicada. Curiosamente, eu gosto mais da interpretação da ex-Elaine de SEINFELD mais perto do final. Gosto muito da última conversa que ela tem com o pássaro, talvez a minha favorita. Eu costumo gostar de filmes sobre luto e nem sei se é possível dizer que este é exatamente sobre luto; seria mais sobre o adiamento da morte e do posterior luto.

AQUELA SENSAÇÃO QUE O TEMPO DE FAZER ALGO PASSOU (The Feeling That the Time for Doing Something Has Passed)

Enquanto via este filme de Joanna Arnow me lembrava de Lena Dunham e sua maravilhosa série GIRLS. Isso porque a criadora da série também não se importava em aparecer nua em sua criação, além de se mostrar num relacionamento um tanto estranho com o personagem de Adam Driver. Joanna Arnow estreia no longa-metragem – se não contarmos com o filme de 56 min I HATE MYSELF (2013) – fazendo algo novo: aborda uma vida próxima do tédio de uma garota que tem por hábito ser a submissa em relações BDSM. AQUELA SENSAÇÃO QUE O TEMPO DE FAZER ALGO PASSOU (2023) não chega a ser exploratório na violência consentida desse tipo de relação (até pega bem leve), mas também não há a intenção de esconder detalhes das situações. Além do mais, a diretora faz questão de mostrar a vida profissional de sua personagem como algo bem pouco atraente, para não dizer ridículo, e de certa forma faz lembrar um pouco o recente ÀS VEZES QUERO SUMIR, de Rachel Lambert, que é mais romântico, enquanto o filme de Arnow é mais amargo e cheio de desencanto. Até a fotografia carece de mais cor, o que tem tudo a ver com o mundo da protagonista.

ÀS VEZES QUERO SUMIR (Sometimes I Think about Dying)

Saída do cinema bem indie americano, Rachel Lambert já está em seu quarto longa-metragem, demonstrando rigor formal e sensibilidade. Aparentemente o filme começa dentro de um ambiente que faz lembrar a série THE OFFICE, e temos ali uma personagem muito tímida e cheia de medos e desejos, vivida por Daisy Ridley, que fica ali no cantinho dela, mal falando qualquer palavra. Ela tem pensamentos sobre diferentes maneiras de morrer, e isso é ao mesmo tempo uma obsessão e um desejo. Seu campo de desejo muda quando surge em cena um novo funcionário na empresa. É quando a personagem também nos apresenta um pouquinho mais de si, daquilo que é capaz de fazer e de (se) surpreender. Um filme claramente pequeno, no melhor sentido do termo, ÀS VEZES QUERO SUMIR (2023) não é exatamente um filme sobre a rotina, mas sobre aquilo que acontece de especial, de diferente, na vida da personagem feminina, como ir ao cinema ou compartilhar um doce com o sujeito por quem se sente atraída. Dá para notar que a diretora é fã de David Lynch, pois quem conhece TWIN PEAKS vai perceber uma das canções mais lindas cantadas por Julee Cruise em determinado momento. E que final bonito, mostrando que é possível usar a simplicidade para criar algo brilhante.

sábado, outubro 26, 2024

SUPER/MAN – A HISTÓRIA DE CHRISTOPHER REEVE (Super/Man – The Christopher Reeve Story)



“You’re still you, and I love you”, disse Dana Morosini, a esposa de Christopher Reeve, quando o ator acordou do coma, tetraplégico, após o acidente que quase tirou sua vida. Os momentos mais emocionantes, para mim, de SUPER/MAN – A HISTÓRIA DE CHRISTOPHER REEVE (2024) são os que apresentam também o drama dessa mulher, e de seu amor por aquele homem que fora esportista e mais conhecido por seu papel em SUPERMAN – O FILME (1978) e suas continuações. A história de Reeve passaria a ser dividida entre antes e depois do acidente, já que os nove anos seguintes, até sua morte em 2004, foram de frustração, luta, militância e talvez até de aceitação da condição em que se encontrava, já que pelo menos ele podia ver os filhos crescendo e lutar por condições melhores para pessoas paralisadas como ele e invisibilizadas na sociedade.

O documentário sobre a vida de Christopher Reeve pode até ter um formato bastante tradicional, mas tem momentos que pegam tanto a gente pelas emoções, que é difícil não vê-lo como muito especial. E o filme não chega a ser apelativo, focando por demais na tragédia do ator, uma vez que aquilo que é relatado é parte do que aconteceu de fato. Tanto que a gente até percebe que as idas e vindas no tempo ajudam a tornar o filme menos pesado. Ora estamos vendo Reeve lutando na sua nova condição de homem tetraplégico, ora o foco continua a ser sua história como ator de cinema nos anos 70/80/90, que não chegou a engrenar muito, a não ser quando ele encarnava o mais icônico super-herói da DC, o que não deixa de ser algo de certa forma dramático na vida de um ator.

Há quem lembre de seu papel em ARMADILHA MORTAL (1982), por ter um grande cineasta atrás das câmeras, Sidney Lumet, e também do drama romântico EM ALGUM LUGAR DO PASSADO (1980), de Jeannot Szwarc. Também costumam lembrar de um filme que foi lançado seis dias antes do acidente de Reeve, em que ele, coincidentemente, interpreta um policial que fica paralisado depois de um tiro. O filme se chama SEM SUSPEITA (1995), de Steven Schachter, e é hoje pouco lembrado, a não ser por essa curiosidade sinistra. E é algo lamentável, já que Reeve, já em SUPERMAN, se mostrava um excelente ator, uma vez que interpretava praticamente duas pessoas de personalidades distintas, saindo de uma e entrando na outra em segundos, apenas tirando ou colocando os óculos.

Vendo o documentário, percebi que havia quase me esquecido do momento que ele foi aplaudido de pé na festa do Oscar, em 1996, doze meses após o acidente. Foi de fato um momento de arrepiar. E vendo no filme, sabendo dos bastidores, e sabendo de sua amizade com Robin Williams e toda a logística para possibilitar sua aparição na festa, esse momento passa a ganhar ainda mais significado. Aliás, as aparições de Robin Williams no filme sempre me trazem um misto de alegria e tristeza. Ele, um homem que escondia sua condição de depressivo com a figura de uma pessoa sempre brincalhona e que estava presente para fazer as pessoas rirem, é alguém que ficou completamente devastado com a partida do amigo, como dá para perceber claramente em seu discurso no velório de Reeve.

E o que é o momento em que o filho caçula lê um texto escrito por sua mãe, a esposa de Reeve? É como se o filme, naquele instante, nos convidasse a também olhar para o drama daquela mulher, tirando o foco da ironia de se ter um super-homem quebrado e totalmente dependente da ajuda dos outros. O discurso de Dana no funeral do marido é também de nos deixar desidratados. Depois de Reeve, ela passa a ser a personagem mais importante do filme, representando o grande amor da vida do ator.

Ainda que seja um filme que não se perde tanto se visto na telinha, ter a chance de ver SUPER/MAN – A HISTÓRIA DE CHRISTOPHER REEVE no cinema é uma bênção: a telona intensifica tanto nossa atenção quanto nossas emoções. Além do mais, diante do aprendizado que foi a vida de Reeve em seus últimos nove anos na Terra, podemos dizer que esse momento sofrido valeu a pena. Sua vida passou a ser como uma espécie de Jó do mundo contemporâneo: quando poderia estar amaldiçoando a própria existência, ele fez de sua condição um combustível para um outro tipo de luta, uma luta que faria a diferença na vida de outras pessoas tetraplégicas nos Estados Unidos e em outros países. Além da criação da Fundação Christopher Reeve, ele cofundou o Centro de Pesquisa Reeve-Irvine, com foco no estudo do reparo neural, regeneração e recuperação da função após lesão da medula espinhal. No fim, o documentário dirigido por Ian Bonhôte e Peter Ettedgui é sobre a restauração da fé de um homem, e do quanto essa fé pode ser materializada em atos. No fim, Superman partiu deste mundo quase como um santo, quase como o Jesus Cristo pop que caracterizou no uniforme azul e vermelho.

+ TRÊS FILMES

ORLANDO, MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA (Orlando, Ma Biographie Politique)

Não tinha lido ou sequer ouvido falar em Paul B. Preciado antes do lançamento deste filme nos cinemas. Trata-se de um escritor transgênero que se destaca como um dos grandes pensadores da teoria queer e da pornografia dos dias de hoje. Fiquei até interessado nos escritos dele. ORLANDO, MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA (2023), seu filme de estreia, utiliza sua leitura e seu interesse pelo livro de Virginia Woolf para apresentar a si e a dezenas de pessoas trans no mundo que participam deste documentário bem diferente, já que tanto enfatiza os dramas e as alegrias dos atores, quanto também aproveita para costurar seus pensamentos, indo desde a questão do uso dos hormônios sintéticos até chegar à mudança de nome nos documentos de identidade. Gosto da inclusão de imagens de arquivo das primeiras pessoas trans do século XX, embora tenha me parecido a princípio pouco coerente com o estilo adotado pelo filme, sempre com uma pessoa convidada se apresentando como Orlando e falando de si. Ter essas imagens de arquivo ajuda a quebrar essa repetição da forma, que começa muito interessante, mas depois a repetição vai cansando um pouco.

TODA NOITE ESTAREI LÁ

E se um filme contasse a história de uma mulher transexual que é impedida de professar sua fé e essa fé fosse numa igreja evangélica? Essa é a história de TODA NOITE ESTAREI LÁ (2023), de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin. Gosto de como a própria Mel Rosário dá uma ideia que faz com que sua história ganhe ainda mais força. Afinal, ficar focado apenas na história dela com os cartazes em frente à igreja e em seus protestos podia correr o risco de se repetir e se esvaziar. Temos um contato maior com a família da personagem, sabemos de suas dificuldades financeiras e testemunhamos sua força para enfrentar os obstáculos num país governado por Bolsonaro. Esse entorno faz com que a linha principal do filme se torne mais rica. Muita coisa que acontece não acontece na frente das câmeras, até pela impossibilidade de filmar as discussões entre os advogados do pastor e os advogados de Mel ou de se entrar com câmeras dentro da igreja. De certa forma, isso é um ponto a favor de Mel Rosário, que se torna ainda mais protagonista dessa história.

MARIAS

Não dá para prever o resultado de um filme. Se for um documentário que dependerá da ação de terceiros, a produção está ainda mais nas mãos do acaso. MARIAS (2024), de Ludmila Curi, começa estranho, como uma espécie de road movie em que a diretora sai em busca de Maria Prestes, a viúva de Luís Carlos Prestes. É claramente um filme de entusiastas dos movimentos de esquerda e do partido comunista, da história que foi contada no século XX e prosseguiu com os movimentos trabalhistas no novo século: Mas MARIAS se tornou o filme de uma mulher ausente, de alguém que se negou a aparecer em imagem e som, e com isso vai perdendo seu sentido. O próprio objeto de estudo principal do filme se torna um enigma. Daí se transforma num filme de várias Marias, começando com Maria Bonita, passando por Dilma Roussef e também por Marielle Franco. E, pra mim, é quando o filme passa por Marielle, e são poucos minutos com a vereadora que fez história falando com gravações caseiras num encontro com amigos, que eu fiquei sentindo falta de mais. Percebi o quanto essa mulher tinha uma força e um carisma tão grandes que, até por ser negra, chamou ainda mais a atenção dos criminosos que a executaram. Então, o que temos é uma colcha de retalhos com imagens de arquivo muito boas, inclusive as cenas na Rússia, mas que no todo parece não ter conseguido o sucesso merecido. Mesmo assim, fico feliz que tenha vindo ao mundo e agora possa ser visto.

sábado, outubro 19, 2024

SORRIA 2 (Smile 2)



Os filmes de terror me deixam feliz. Essa frase eu ouvi de um amigo querido, o Chico Fireman. E hoje repito, como minha, pois de fato eu também tenho essa relação de afeto com o horror no cinema. Muito provavelmente já devem existir algumas pesquisas científicas sobre o porquê de isso ocorrer com tantas pessoas, já que é um gênero que tem muitos fãs. Hoje tenho perdido alguns títulos do gênero no cinema pois muitos deles só entram em cartaz em minha cidade em cópias dubladas, e eu não entendo muito bem o raciocínio das distribuidoras que fazem esse tipo de coisa. Aliás, até em filmes mais “adultos”, por assim dizer, como O APRENDIZ, para citar um exemplo de um título que entrou em cartaz na última quinta-feira, o grosso das cópias aqui é dublado. E estamos falando de um filme que fala da juventude de Donald Trump, um filme político. SORRIA 2 (2024), felizmente, contou com mais cópias legendadas e não precisei pegar a última sessão da noite ou buscar numa sala VIP para ter acesso.

Outra coisa que queria deixar registrada, ainda sobre a questão do prazer, é o quanto esse momento de estar desligado do mundo numa sala escura, de poder me desligar dos problemas e do celular por cerca de duas horas, o quanto isso me faz bem. Então, meu sentimento de gratidão com o filme cresce, principalmente quando começo a perceber, desde a primeira cena, que não estamos diante de um filme vulgar, mas de um trabalho de direção sofisticada, ainda que jogando um jogo de familiaridade e de aproveitamento dos clichês do horror, como os jump scares, as cenas com espelhos e o uso do som como auxiliar na promoção do susto.

Ou seja, o diretor Parker Finn não tenta fazer um arthouse ou algo próximo do que chamavam certos filmes de horror da década passada, o tal do pós-terror ou pós-horror, termo que felizmente logo caiu em desuso e foi rejeitado pelos próprios fãs do gênero que já sabiam que a invenção e a originalidade no cinema de horror são tão antigas quanto o próprio cinema em si. Ele adiciona neste novo filme ainda mais sangue, mais gore, mais violência gráfica e mais vigor. A história não é sobre a maldição misteriosa que chega até essa mulher e depois vai passando para outras pessoas, mas se concentra exclusivamente nela. Como se o filme percebesse que o seu maior trunfo estivesse em sua atriz, e em momento algum ele larga a mão dela.

Um dos maiores méritos de SORRIA 2 é conseguir nos envolver numa história que de certa forma já havia sido contada no primeiro filme, que eu considero um exemplar de terror quase genérico e esquecível, mas que até acho que preciso rever para perceber melhor, já que neste segundo fica muito clara a elegância na direção de Parker Finn desde o prólogo, mas principalmente como ele lida com a perda gradual e desesperadora da sanidade da protagonista, vivida por uma ótima Naomi Scott (ALADDIN). Aliás, é até curioso a gente ter em cartaz um filme com personagens tão parecidas (refiro-me a Margaret Qualley em A SUBSTÂNCIA).

Naomi Scott é uma verdadeira scream queen, um deslumbre na aparência e na entrega de sua personagem, com sua tricotilomania (transtorno psiquiátrico que faz com que o paciente sinta um desejo incontrolável e frequente de arrancar fios de cabelo), com seu nervosismo que já começa com a dor que sente no corpo e ausência de um vicodin para não sentir a dor na coluna, ocasionada pelo terrível acidente a que sobreviveu. E isso piora quando ela visita a casa de um amigo traficante de drogas e o vê extremamente alterado, para logo em seguida ter que testemunhar o rapaz tirando a própria vida de maneira brutal e gráfica na sua frente, enquanto sorri um sorriso diabólico. A partir daí é inferno abaixo na vida da personagem.

Destaque para o modo como Finn enquadra e escolhe o que mostrar e o que não mostrar para o espectador. E quando ele quer mostrar, ele é impiedoso. SORRIA 2 é também um filme sobre depressão e solidão, quando nos coloca na vida da protagonista e do quanto esse sentimento de isolamento vai se tornando cada vez mais intenso. Tanto que em certo momento sua esperança passa a estar na morte. Mas atenção: quem for ver o filme esperando uma composição narrativa calcada na história pode não gostar do filme. O interesse maior está na ambientação e nas situações desesperadoras e aterrorizantes por que passa a heroína.

Outro grande mérito está nas cenas musicais de Scott como pop star. São cenas tão caprichadas e exuberantes que deixam as cenas do show da filha do Shyamalan em ARMADILHA comendo poeira, inclusive no que se refere à música. No mais, parece que os anos 80 estão de volta novamente, com esse interesse pelo horror mais gráfico e efeitos (aparentemente?) práticos e muito criativos.

+ TRÊS FILMES

LAURA HASN’T SLEPT

O curta que inspirou e trouxe investimento para que o diretor Parker Finn fizesse o seu primeiro SORRIA (2022) se destaca também pela atenção dada à boa performance da protagonista feminina, aqui vivida por Caitilin Stasey. LAURA HASN’T SLEPT (2020) começa numa sessão de terapia, em que a jovem conta, extremamente perturbada, a seu analista estar tendo pesadelos com uma pessoa que se apresenta a ela com um sorriso assustador. A produção é bem barata, mas há alguma sofisticação no uso da câmera, seja na aproximação, seja na movimentação em 360 graus. Provavelmente ver este curta antes de ver SORRIA 2 (2024) pode ser uma experiência qualquer nota, mas, vendo do futuro onde estamos faz uma diferença, sim. Disponível no YouTube.

A GAROTA DA VEZ (Woman of the Hour)

Um filme de um assassino de mulheres dirigido por uma mulher tem um tipo de sensibilidade diferente. Nota-se que há uma busca de equilíbrio entre mostrar as cenas de violência de modo que se construa o clima de tensão e medo do assassino e não tornar essas cenas gráficas o suficiente para que se tornem um espetáculo. Anna Kendrick é a atriz principal de sua estreia na direção, um filme em sintonia com a onda de produções que parecem muito interessadas na década de 1970. Inclusive, A GAROTA DA VEZ (2023) até faria uma bela sessão dupla com ENTREVISTA COM O DEMÔNIO, já que ambos se passam num programa de televisão. Este aqui bem menos, já que há um trabalho de montagem que também tem a função de nos apresentar a algumas das vítimas do serial killer, que estava como participante nesse programa de namoro na TV. Há cenas de muita tensão, como a conversa do sujeito com a personagem de Kendrick depois do programa e há também a crítica feroz ao machismo que contribuiu, inclusive, para que o assassino continuasse a matar mais e mais vítimas.

ALIEN: ROMULUS

Legal terem dado a direção do novo “Alien” para Fede Alvarez, um cineasta que começou em Hollywood com o cinema de horror, A MORTE DO DEMÔNIO (2013), e que poderia trazer algo novo para a franquia, já que o próprio Ridley Scott, com sua irregularidade, havia fracassado com ALIEN: COVENANT (2017), cuja existência eu até já havia apagado de minha memória. Este novo filme começa já empolgante, com um novo universo sendo apresentado a princípio, o de um planeta de mineração em que não se vê o sol e tudo é feio e escuro e as pessoas trabalham nas minas até morrer. A única saída possível é através de naves com equipamentos de criogenia, dada a distância para outros planetas habitados e habitáveis. Daí a personagem principal, Rain (Cailee Spaeny), ter aceitado se a arriscar com a missão de roubar câmeras criogênitas de uma espaçonave abandonada. A espaçonave é a de ALIEN, O 8º PASSAGEIRO (1979), quase toda destruída após os acontecimentos e a posterior fuga de Ripley. Um dos personagens mais legais do novo filme é novamente um androide, Andy (David Jonsson). O ator é ótimo, desconhecia o seu trabalho. Andy passa de criatura falha e frágil e além de tudo odiada por alguns para herói que toma decisões necessárias para a sobrevivência do grupo de jovens, quando do ingresso deles na nave abandonada e ainda cheia daquelas criaturas perigosas. Fede Alvarez homenageia o filme original inúmeras vezes, mas traz um frescor necessário e uma dinâmica empolgante. Penso neste momento numa cena que envolve o funcionamento da gravidade numa situação de ataque de diversos monstros. Cena excelente, como outras tantas. Não é um trabalho totalmente original, mas não tinha mesmo como ser, já que tem a função de dar continuidade à mitologia, mas aqui sem muitas complicações. Uma das coisas que me incomodou foi aquela contagem regressiva do computador central, excessivamente conveniente para a trama, embora compreensiva do ponto de vista do jogo de suspense.

domingo, outubro 13, 2024

ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS



Ontem, ao escrever sobre o mais recente filme de Woody Allen, dei de cara com um texto escrito por mim, aqui para o blog, 22 anos atrás, sobre A OUTRA. Nele eu meio que reclamava e meditava sobre a mudança para a casa dos 30 anos de idade, uma passagem que eu de fato senti mais que a mudança para a casa dos 40, muito pelo que eu lamentava não ter conseguido em minha vida naquele momento. Hoje, aos 52 anos, me sinto mais feliz e grato, apesar de já sentir o peso da idade no corpo e também perceber as marcas do envelhecimento cada vez mais duro em minha mãe, que tem sofrido muito com as dores e a dificuldade de mobilidade. O fato de eu estar vivendo também um feliz romance tardio também me traz uma consciência maior do passado e do que pode vir a acontecer no futuro, mas também me faz valorizar mais as alegrias do presente.

Ontem à noite, por exemplo, eu, Giselle e Regina, uma amiga dela, fomos a uma festa dessas de flashback, com uma banda muito famosa por tocar jovem guarda, que é um tipo de música que serve mais como museu do que como algo a ser de fato curtido. Mas isso é só a minha impressão, não um fato. O fato é que existe um monte de gente que se sente feliz e com um sentimento de pertencimento em estar numa festa como essas, cantando a plenos pulmões e muitos com o corpo frágil as letras. A maior parte do público presente na festa era de pessoas da terceira idade, muitas delas extremamente felizes de estarem ali. Por isso, não importa se eu me incomodava com as versões toscas de canções dos Beatles da fase inicial, ou outras canções desse período, mas no final, especialmente quando a banda também toca outros gêneros e artistas (era disco, Secos e Molhados, A Turma do Balão Mágico, Sidney Magal, Elvis, Frank Valli etc,) e quando fomos lá para a frente dançar, valorizei a banda, a música, a alegria de estar dançando com alguém que amo.

E assim faço ligação com ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS (2024), de Eduardo Escorel, um filme que chama a atenção para o envelhecimento e a aproximação da morte, essa figura invisível que pode chegar a qualquer momento e a qualquer pessoa, mas que parece, naturalmente, ainda mais próxima de alguém que já está entre 96-98 anos de idade, como é o caso da pessoa que escreve as anotações lidas na voz de Matheus Nachtergaele.

Meu contato com o sociólogo, crítico literário e professor Antonio Candido se deu na faculdade de Letras, tanto na graduação quanto no mestrado. Era/é um nome muito querido pelos professores e também pelos alunos como um grande pensador da nossa literatura. Ver este documentário me fez conhecer um pouco mais o pensador e teórico, um dos criadores do PT, entusiasta do socialismo e alguém que poderia ter optado por viver na bolha de seu mundo maravilhoso de livros e erudição, mas que fez questão de conhecer o Brasil profundo com os próprios olhos, entrando em contato com as misérias do povo brasileiro desfavorecido.

Os trechos de seus textos para o filme são de dois dos 74 cadernos encontrados após sua morte, aos 98 anos, escritos entre os anos de 2015 e 2017. Não mais tão ativo, Candido testemunhou a derrocada dos anos Lula com tristeza: o golpe de Dilma Roussef e um novo e aterrador momento de nossa política, que ele teve a sorte de não ver. Com frequência, ouvimos sua voz enquanto a câmera passeia pela casa vazia, enfatizando sua ausência física e sua rica estante ainda disposta.

Algo muito bonito que o filme destaca a partir da própria fala do escritor é seu imenso amor pela esposa, Gilda, falecida em 2005, mas presente todos os dias em seus pensamentos. Candido dizia que Gilda foi a melhor coisa que lhe acontecera na vida e é tocante essa devoção a ela, principalmente partindo de alguém que tem também uma outra paixão imensa: a literatura, além da política. Como filme, é simples, mas ouvir o texto de Candido, tão lúcido quanto poético, falando inclusive de sua condição de pessoa idosa e da expectativa da morte, é de um prazer imenso.

+ TRÊS FILMES

TERMODIELÉTRICO

É impressão minha ou uma relação mais estreita entre cinema e ciências naturais dificilmente é bem-sucedida? E olha que o mundo dos cientistas e inventores é fascinante, assim como é fascinante também saber mais sobre radioatividade. Este documentário é um exemplo dessa dificuldade, com a diretora falando sobre seu avô, Joaquim da Costa Ribeiro, pioneiro da física no Brasil, e detalhando um pouco suas pesquisas e realizações. TERMODIELÉTRICO (2023), de Ana Costa Ribeiro, entrecorta a vida do cientista com uma apresentação de seus estudos, descobertas e êxitos. O resultado é um tanto irregular, por vezes interessante, outras vezes monótono. Nem sempre a costura que a diretora faz funciona, mas gosto das escolhas das imagens e de sua plasticidade.

DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA

É imprescindível que um filme em homenagem a Ruth de Souza exista, de modo que a atriz seja devidamente valorizada e lembrada, não apenas por ser a primeira atriz negra brasileira a chegar ao cinema, ao teatro e à televisão, mas pela trajetória brilhante e de enfrentamento dos preconceitos, começando já nos anos 1930, e servindo como abertura para outras tantas atrizes pretas que viriam. Não gosto das cenas de dramatização (não vejo força nelas) de DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA (2022), de Juliana Vicente, mas acho brilhante a diretora ter deixado na mesa de montagem um monte de entrevistas de famosos para se concentrar apenas nos registros de entrevistas da própria Ruth, inclusive em seus anos de saúde mais debilitada. Gosto também quando o filme mostra cenas de filmes que ela fez, alguns deles mais raros, da época da Vera Cruz. Por vezes, dá vontade de ver aqueles filmes inteiros. Há até bem poucos trechos de trabalhos dela para cinema e televisão, se olharmos para sua filmografia de mais de 80 títulos. Entre os apresentados no doc, estão clássicos e cults como TAMBÉM SOMOS IRMÃOS (1949), SINHÁ MOÇA (1953), O ASSALTO AO TREM PAGADOR (1962) e PUREZA PROIBIDA (1974).

DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS

É difícil sair da sessão deste documentário sobre Dorival Caymmi e não ficar emocionado e ainda mais encantado com o cantor e compositor e seu trabalho único, e que reverbera na obra de artistas tão diferentes quanto Caetano Veloso e Marcelo Camelo. DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS (2019), de Daniela Broitman, tem um formato mais tradicional, com a presença de vários depoimentos, mas já começa com uma filmagem de 1989, do próprio Dorival brincando com sua beleza física e com sua idade, e de como o fato de ele ter uma boa relação com as pessoas acabar repercutindo na própria beleza que vibra de si. Ou algo parecido. Inclusive, há coisas que ele fala que parecem poesia metafísica. Não à toa, há um trecho em que sua filha apresenta um livro de poesia completa de Fernando Pessoa como uma obra fundamental para o pai, que era uma pessoa com muita consciência da grandeza e importância da própria obra, seja num detalhe pertencente a um verso, seja numa nota musical bem pensada. Adorei também as histórias que ele contou de sua vida e o quanto o filme o coloca numa posição de entidade espiritual da música brasileira. E que final bonito, hein. Lágrimas rolaram.