domingo, abril 28, 2024

RIVAIS (Challengers)



Quando saí da sessão de LA CHIMERA, de Alice Rohrwacher, na quinta-feira passada, comentei com meu amigo Walker sobre o fato de não gostar muito de nenhum cineasta italiano surgido neste século. Mas acho que porque havia me esquecido de Luca Guadagnino, talvez por ele ter se tornado um cineasta internacional já faz algum tempo. Se bem que seu primeiro longa, THE PROTAGONISTS, é de 1999, mas acho que só fui saber de sua existência com 100 ESCOVADAS ANTES DE DORMIR (2005), e na época o chamariz estava mais em torno da adaptação do romance picante do que em qualquer outra coisa. De todo modo, podemos considerar Guadagnino como um diretor do século XXI, sim.

Levando em consideração o que eu pude ver até o momento de sua filmografia, vejo o cinema do diretor como de reinvenção – e talvez por isso não seja sempre abraçado com unanimidade. Foi uma reinvenção quando ele tentou fazer um remake de SUSPIRIA, de Dario Argento, em 2018 (SUSPÍRIA – A DANÇA DO MEDO); foi reinvenção quando ele contou uma história de canibais em ATÉ OS OSSOS (2022); foi reinvenção quando ele contou uma história de amor e descoberta juvenil entre dois homens em ME CHAME PELO SEU NOME (2017). Agora ele reinventa o filme de jogadores de tênis. E talvez ele tenha feito o melhor do subgênero desde LAÇOS DE SANGUE, de Ida Lupino, filme do início dos anos 1950. É importante notar que os três filmes de Guadagnino citados acima lidam com o sexo, de uma maneira ou de outra. (Ou seriam sobre sexo?)

RIVAIS mostra um diretor em pleno domínio de seu ofício, contando a história de um triângulo amoroso entre três esportistas do tênis. Ele faz uso de campo e contracampo e de câmeras chicoteando lá e cá nas disputas na quadra de modo a conferir dramaticidade à trama. Uma trama que vamos conhecendo no engenhoso vai-e-vem temporal, nos passeios entre passado e presente. Há também uso de efeitos digitais muito interessantes nas cenas de jogos. 

A primeira viagem ao passado é muito empolgante, quando a dupla de jovens jogadores de tênis vividos por Josh O'Connon (que está em LA CHIMERA também) e Mike Faist se mostram, ambos, muito interessados em Zendaya, uma jovem esportista cheia de autoconfiança e com um futuro brilhante pela frente. Para eles, ela é uma das mulheres mais sensuais que já viram. E por isso o interesse dos dois por ela parece mais do que uma disputa, parece um jogo em que a rivalidade de ambos também se apresenta como uma espécie de jogo erótico sutil. Gosto do jeito mais cafajeste de O’Connor, mas uma de minhas cenas favoritas de intimidade entre o trisal é uma bem melancólica, envolvendo Faist e Zendaya, na véspera do jogo.

A cena dos três juntos no mesmo quarto já ganhou seu lugar entre as mais memoráveis do ano. É dessas cenas de deixar sorrisos em salas inteiras de cinema mundo afora. Adoro as perguntas que a personagem feminina faz a eles, sobre suas intimidades, para logo em seguida dar a entender que o sonho de os dois transarem com ela ao mesmo tempo pode não estar tão distante assim. É bom ver que o cinema contemporâneo ainda tem espaço para cenas quentes e provocantes. Imagino que, para as novas gerações, uma cena como essa até ganhe certo ar de novidade e excitação. E há, claramente, cenas com maior ou menor apelo homoerótico. Inclusive, muito do sucesso de bilheteria do filme está vindo de sua ligação com as plateias LGBTQI. 

Zendaya, como uma das produtoras do filme, sabe muito bem o que está fazendo com sua carreira ao trazer tanto fortaleza quanto sensualidade para seus papéis, saindo, inclusive, do padrão físico então adotado em Hollywood. Além de tudo, a jovem atriz se confirma como uma das mais importantes do momento, ao estrelar justamente dois dos mais interessantes filmes deste início de ano  – o anterior é DUNA – PARTE DOIS, de Dennis Villeneuve. Essa menina vai longe.

Ah, e a trilha é ótima e de autoria da dupla Trent Reznor e Atticus Ross, tradicionais colaboradores dos filmes de David Fincher.

+ DOIS FILMES

GARRA DE FERRO (The Iron Claw)

Certos filmes baseados em histórias reais ganham muito mais quando não sabemos absolutamente nada a respeito. E é o caso de GARRA DE FERRO (2023), de Sean Durkin, que nos leva ao mundo da luta livre no Texas, esporte brega, extravagante e muitas vezes cômico, mas que pode trazer situações dramáticas incríveis no cinema (vide O LUTADOR, de Darren Arronofsky). Aqui temos a história de uma família de lutadores de wrestling, irmãos que são encorajados pelo pai, lendário lutador no seu tempo, a ingressar no meio. Zac Efron está bem diferente como o irmão mais velho que sente a necessidade e a vontade de estar com os mais novos. Trata-se de um personagem que vai crescendo ao longo do filme, à medida que sua posição de protagonista vai se tornando cada vez maior. As surpresas da narrativa, no que se refere à tal maldição da família, ajudam a trazer um tom cada vez mais sombrio a uma história que parece a princípio apenas curiosa. Num filme cheio de testosterona, duas personagens femininas se destacam de diferentes maneiras. A matriarca, vivida por Maura Tierney, é uma espécie de mãe que aceita a filosofia de vida do marido (Holy McCallany), enquanto Lily James é a esposa carinhosa que auxilia na transformação do marido num homem mais confiante. Não à toa, o destino do personagem de Efron é diferente dos demais irmãos. O filme também tem o mérito de nunca subestimar a inteligência da audiência, como na cena da moto, e ainda faz uso do elemento surpresa a ponto de causar espanto e tristeza. Desde já, um dos melhores lançamentos da safra recente.

FERRARI

A última vez que havia visto um Michael Mann no cinema foi com INIMIGOS PÚBLICOS (2009), um belo e subestimado filme de gângster. Depois veio o fracasso de HACKER (2015), que vi na telinha, e acho que nem chegou aos cinemas brasileiros. O retorno com esta biografia de Enzo Ferrari (vivido por Adam Driver), o então dono da fábrica de automóveis luxuosos e principalmente de corrida, foca num momento bastante conturbado de sua vida, com a leve pressão da amante doce (Shailene Woodley), o olhar de insatisfação e ira da esposa em luto (Penélope Cruz), e um fato que iria modificar sua vida, mostrado perto do final da narrativa. Usando tons mais soturnos para contar essa história, o cineasta valoriza os espaços em que os personagens se colocam pela tela, e faz uma obra um tanto fria e prejudicada pelo sotaque italiano. Duvido que se FERRARI (2023) fosse um filme que se passasse na França colocassem o povo falando inglês com sotaque francês; ou se fosse na Alemanha etc. Assim, demorei metade do filme para me acostumar com esse “detalhe”, que já não deu certo com CASA GUCCI, e que poderia muito bem ser completamente limado. Há algo nos rostos de alguns personagens que é curioso: passam como fantasmas ao longo da narrativa, casos de Sarah Gadon e do próprio Gabreil Leone. É como se a câmera quisesse evitá-los. Não sei o quanto isso é proposital (teria associação com a culpa do protagonista?), mas o resultado não deixa de ser curioso e interessante. Na verdade, estava incomodado com a projeção que ficou tremida durante metade do filme, e que foi regularizada (acho que com o desligamento do ar condicionado) na metade seguinte. Curiosamente, foi a mesma sala (Vip) onde vi, com os olhos brilhando de alegria, POBRES CRIATURAS, de Yorgos Lanthimos, em toda sua glória e resplandecência.

sábado, abril 27, 2024

MUSIC (Musik)



Na quarta-feira, consegui uma folguinha do trabalho e aproveitei para ver a última sessão disponível de MUSIC (2023), de Angela Schanelec. Não conhecia o cinema da diretora, mas o comentário que havia ouvido dos amigos é que se tratava de um filme quase incompreensível. Logo, já cheguei no cinema com a disposição de encarar o desafio naquele horário “de herdeiro” (13h40, um horário que fez com que eu tivesse que me organizar em almoçar fora e procurar um bom e caprichado expresso fora do espaço do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura). Além do mais, como ainda sigo com uma crise alérgica e resquícios de uma virose, fui buscando alternativas para estar com a mente e o corpo dispostos o bastante para aquela sessão. Felizmente, deu certo. 

Algo que já chama a atenção em MUSIC (2023), de Angela Schanelec, é o quanto ele instiga em sua narração, que com frequência nos faz indagar o que está acontecendo, por que tal ação foi mostrada depois da anterior, qual o sentido dos pés feridos, entre outras particularidades e preferências formais, que remetem muitas vezes ao cinema de Bresson (as mãos, o extracampo, o estilo de dramaturgia). Para quem teve o início de sua cinefilia nutrida com doses de Lynch e Buñuel e depois se apaixonou por Bresson, esse tipo de sensação de não estar entendo tudo e, mesmo assim, estar curtindo muito, não é exatamente novidade.

Aos poucos, no meio de tantas elipses, uma história principal vai se mostrando um pouco mais clara, principalmente perto da metade do filme, quando uma moça que trabalha num presídio se envolve afetivamente com um jovem presidiário, o jovem que é preso por matar acidentalmente outro, durante férias com um grupo de jovens no que parece ser a Grécia. Sobre os tais pés feridos, é curioso que isso já se mostra presente na primeira vez que somos apresentados a Jon, o protagonista. A primeira coisa que vemos dele são seus pés feridos e sujos, descendo de um carro, aparentemente dos anos 1990. A juventude em flor é apresentada em cenas em que os jovens do grupo tomam banho nus ou seminus num lago. Logo à frente, quando Jon está preso, percebemos que os presos usam tamancos de madeira, tão desconfortáveis a ponto de todos ficarem, consequentemente, com os pés feridos.

A preocupação com o enredo é menor, ainda que ela exista sim (não à toa o filme ganhou o prêmio de melhor roteiro em Berlim-2023). Livremente baseado em Édipo Rei, de Sófocles, o filme deve ganhar bastante com uma revisão, em termos de compreensão da trama, mas, em termos de apreciação das imagens e da ambientação, a primeira vez é o suficiente para nos encantarmos com muito do que Schanelec traz.

Gosto de como a diretora drena a carga dramática dos atores/personagens, mesmo nos momentos mais trágicos, e faz com que essa dramaticidade mais excessiva permita se apresentar de forma mais contundente nas cenas musicais, que são poucas, mas muito expressivas. Aliás, para um filme chamado MUSIC, o que temos bastante é silêncio. Até os diálogos são reduzidos ao máximo, num trabalho de subtração tanto de dramaticidade quanto de enredo. É o tipo de filme em que saímos do cinema sem ter entendido muito, mas muito satisfeitos com a experiência, um filme que nos convida a ler nas entrelinhas, a procurar entendê-lo a partir de imagens que às vezes funcionam como símbolos. É uma obra que funciona como um jogo de compreensão, e que, por isso, é tão desafiadora quanto recompensadora.

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LA CHIMERA

Tendo visto apenas dois longas e um curta-metragem da carreira já generosa de Alice Rohrwacher, percebo que ainda tenho dificuldade de me aproximar com vontade e carinho de sua poética, por mais que perceba sua assinatura de cara - e vejo isso como um ponto positivo para um autor. A fotografia granulada, vindo de película 16mm e 35mm, chama atenção mais uma vez para as imagens e as cores nesta história estranha sobre um homem que tem o dom de encontrar artefatos enterrados na região onde mora, outrora lar dos etruscos. Em LA CHIMERA (2023), o inglês Josh O'Conner é o protagonista, homem que está de volta a sua terra, depois de um tempo distante. Aos poucos vamos sabendo um pouco mais sobre ele e sobre as pessoas que o circundam e o circundavam. O que eu sinto falta no filme de Rohrwacher pode até ser bobagem, mas talvez seja algo de mais atraente em seus personagens. Também fico sentindo falta de me encantar com os elementos fantásticos trazidos para o filme, embora veja sim o final como bonito e poético. Carol Duarte está bem como a empregada da personagem de Isabella Rossellini, e que esconde da patroa duas crianças pequenas no próprio casarão onde vive. Ou seja, o filme com frequência põe situações estranhas dentro de uma narrativa que pende, aparentemente, para o realismo. Imagino que vá gostar mais do filme numa revisão, ou quando me sentir um pouco mais confortável com seu estilo.

20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS (20.000 Especies de Abejas)

Eu tenho aquele velho e ridículo problema (que não sei ainda explicar) de ter sono com filmes protagonizados por crianças. Mas acho que, no caso deste, estar gripado e o horário da tardinha podem ter contribuído. Ainda assim, fiquei muito interessado no estilo de narrativa de 20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS (2023), de Estibaliz Urresola Solaguren, e de ir descobrindo aos poucos as angústias de suas personagens, principalmente da criança e de sua mãe. Ela, por ficar confusa em relação à sua sexualidade, de não querer mais aceitar ser um menino, aos oito anos de idade, e a mãe por se sentir surpresa com esse momento de descoberta da garota durante as férias de verão da família, numa aldeia ligada à apicultura. A diretora opta muitas vezes (ou sempre?) pela câmera na mão, quase como se estivesse espiando as personagens. O filme não é do tipo que leva o espectador pelo braço: faz com que ele vá descobrindo o que está acontecendo aos poucos. A menina, Sofía Otero, está ótima e muito natural em seu papel. Seu prêmio em Berlim parece merecido.

sábado, abril 13, 2024

A PRIMEIRA PROFECIA (The First Omen)



Na década de 1970, havia dois movimentos distintos ocorrendo e ambos repercutiam na cultura, nas artes, seja no cinema, seja na música. Ao mesmo tempo em que havia uma espécie de pânico em relação ao satanismo, havia também uma certa simpatia, principalmente por parte dos jovens dispostos a enfrentar as instituições de autoridade, e a igreja era uma dessas instituições. Uma simpatia que nascia da rebeldia. Por isso, quando os Rolling Stones tocavam “Sympathy for the Devil” ou Raul Seixas cantava “Rock do Diabo”, eles estavam mais querendo trazer choque para a sociedade mais tradicional da época do que exatamente convidar adeptos para cultos de invocação ao demônio.

Enquanto isso, o cinema refletia esse medo do satanimo em diversos títulos, como OS DEMÔNIOS, de Ken Russell, O EXORCISTA, de William Friedkin, SATÂNICO PANDEMONIUM, de Gilberto Martínez Solares, A SENTINELA DOS MALDITOS, de Michael Winner, UMA FILHA PARA O DIABO, de Peter Sykes e Don Sharp, entre outros tantos. E há A PROFECIA (1976), de Richard Donner, um dos grandes clássicos do gênero e que lida com o tema da chegada do Anticristo. De certa forma, pelo que me lembro, não chega a ser tão transgressor quanto O BEBÊ DE ROSEMARY, de Roman Polanski, ou O EXORCISTA, feito por cineastas mais simpatizantes da ambiguidade. Assim, se enquadraria bem mais num filme de terror mais católico.

A PROFECIA, depois de ganhar algumas sequências que, dizem, não são boas, recebeu uma refilmagem em 2006, dirigida por John Moore, que resultou numa obra bem esquecível. E aí, quando menos esperávamos, e dirigido por uma cineasta estreante, a jovem Arkasha Stevenson, no meio de vários filmes de horror ruins no circuito mais mainstream, chega o ótimo A PRIMEIRA PROFECIA (2024), uma prequel do filme de Donner. E que grata surpresa.

O filme já encanta de cara, com sua beleza plástica, seu cuidado com a reconstituição de época (anos 1970), inclusive com uma fotografia que emula a dessa década. Até o andamento da trama é mais lento, o que pode causar alguma estranheza em certos espectadores. O brilhante filme de Stevenson anda com suas próprias pernas, e até pode ter uma continuação, já que sua protagonista é encantadora e a trama pode seguir em paralelo à trama onde começa o filme de 1976. Além do mais, há todo um cuidado em nos levar junto a ela pelas ruas de Roma, e a conhecer até boates da cidade. 

Na história, Nell Tiger Free (da ótima série SERVANT), é uma jovem americana que começa a se preparar para a vida de freira em Roma, quando percebe que há uma ala demoníaca dentro daqueles muros. A atriz, mais uma vez brilhante, está tão bem no papel que o filme parece não querer se desgrudar dela. Não sou tão apreciador de filmes sobre profecias de anticristo (acho datados, muito anos 70), mas o grande mérito do filme de Stevenson é que a sua maior preocupação é na construção da atmosfera e em cenas de impacto visual. E isso a diretora consegue fazer unindo elegância e uma sabedoria em lidar com a iconografia católica em prol do horror.

Há uma cena, inclusive, que me fez lembrar a dobradinha MADRE JOANA DOS ANJOS e OS DEMÔNIOS, o que eu encaro como um grande elogio, e há outra que faz lembrar POSSESSÃO, de Andrzej Zulawski, quando a protagonista começa a ver coisas e a gritar enlouquecida na rua. O interessante também é que, por mais que o filme seja um pouco mais longo do que o habitual para o gênero, não há cenas desnecessárias. Mesmo os jump scares gratuitos (são poucos) não incomodam. Além do mais, o primeiro jump scare é apavorante de fato e impõe uma relação de respeito entre filme e espectador. E a cena do parto... poxa...incrível. 

Fico feliz em ver uma nova diretora surgindo no gênero e acredito que seu futuro será brilhante, por essa amostra incrível que é A PRIMEIRA PROFECIA. Além do mais, sendo ela uma diretora, acredito que isso contribui para que o ponto de vista feminino da protagonista (e da maioria dos personagens do filme), incluindo seus medos e traumas, seja ainda mais favorecido e valorizado. Ah, e o filme tem a Sônia Braga, muito bem, como uma freira ameaçadora. E também gosto muito da atriz que faz a noviça que mora com a personagem de Tiger Free, uma jovem espanhola lindíssima chamada María Cabellero. Acho um charme quando ela aparece vestida de freira, com maquiagem caprichada e sensual nos olhos. Ou seja, além de tudo, A PRIMEIRA PROFECIA ainda se aproveita das coisas atraentes que o ciclo dos nunsploitation trouxe.

+ DOIS FILMES

FALE COMIGO (Talk to Me)

De vez em quando algum pequeno filme de horror australiano ganha os holofotes mundiais. Creio que FALE COMIGO (2022), de Danny e Michael Philippou, teve maior repercussão que, por exemplo, WOLF CREEK – VIAGEM AO INFERNO e O BABADOOK, para citar dois títulos das últimas duas décadas. E o que me ganhou neste novo exemplar foi o quanto ele é carregado de surpresas, e também o quanto ele adentra territórios muito mais sombrios do que estamos acostumados a ver. Não se trata apenas de um filme sobre possessão envolvendo uma mão misteriosa, mas é também um filme sobre traumas, sobre inconsequência juvenil, sobre desespero e desesperança – e ainda pode ser uma alegoria sobre o uso de drogas pesadas. O filme tem uma mudança de chave para um território mais pesado em determinado momento do jogo da possessão, por assim dizer, e daí em diante as coisas só ficam mais e mais bizarras. Com o sucesso, uma continuação está a caminho. E espero que os diretores não percam a mão na sequência. Sem trocadilhos.

A BRUXA DOS MORTOS – BAGHEAD (Baghead)

Nem dá para dizer que Alberto Corredor copiou os irmãos Philippou, de FALE COMIGO, com a história de ter contato com os mortos por uma janela de tempo muito pequena. Afinal, Corredor já havia feito um curta em 2017 de nome BAGHEAD, que inspirou o longa. O resultado, A BRUXA DOS MORTOS – BAGHEAD (2023), não foi essas maravilhas todas, mas há alguns momentos muito bons. E isso acaba me deixando esperançoso para os novos trabalhos do diretor. Gosto, por exemplo, da cena em que a protagonista (Freya Allan) adentra o buraco onde fica a bruxa encapuzada. Aliás, a ideia de uma bruxa que aparece com um capuz é muito boa. Acentua o tom de terror. Também gosto bastante da conclusão, principalmente pelo aspecto plástico. Uma pena que o filme já começa com um prólogo desanimador, mas gosto dos problemas que surgem à medida que a jovem herdeira fica mais tempo na velha casa. A jovem Freya Allan parece ter futuro em Hollywood: em breve a veremos em PLANETA DOS MACACOS – O REINADO.

domingo, abril 07, 2024

PADRE PIO



Um dos dias mais reveladores e bonitos do ano para mim foi o dia em que fui com a Giselle a uma missa no Instituto Hesed, um mosteiro lindo situado num bairro afastado da cidade. Era quinta-feira da Semana Santa e eu, a princípio, ia ao cinema à tardinha e ela me fez o convite, que fez com que eu mudasse de planos. Como tinha interesse em conhecer o local e também em estar com ela, aceitei de imediato. Mas confesso que não esperava gostar tanto. 

Para mim, que não fui criado em lar católico, boa parte da imagem que eu tenho da igreja vem muito do cinema, e muitas vezes dos filmes de horror, que se apropriam do imaginário católico, tão rico visualmente, para a construção de suas histórias. E há também os grandes cineastas católicos (Hitchcock, Scorsese, Bresson, Ferrara, Rohmer, entre outros) que ajudam a enriquecer a arte cinematográfica. Então, quando vi as imagens dos santos cobertos com um pano até o desvelar na Páscoa, achei tudo incrivelmente estranho e belo, e muito parecido com os filmes de terror. Até mesmo as vestimentas das freiras me pareceram dotadas de uma beleza e de um mistério incríveis.

Aprendi que não compreender tudo faz parte da graça e meu psicanalista ficava o tempo todo procurando palavras relacionadas ao evangelho quando eu falava de minha experiência nesse dia e a palavra “graça” era uma delas. E "graça” é uma palavra que tem, sim, um significado mais religioso nas pouco mais de duas horas que passamos na celebração. Para começar, achei lindos os cânticos, todos equilibrados entre a devoção mais emotiva e a técnica de coral que demanda muito esforço para chegar à perfeição. Tive experiência em coral e por isso valorizo muito trabalhos vocais bem construídos. Meus olhos já começaram a marejar com a música, mas o melhor viria com a homilia do padre colombiano Fidel Oñoro, convidado para o evento.

E Oñoro fez o mais belo sermão sobre a última ceia que já ouvi na vida, destacando a entrega de Jesus, a covardia (humana) dos apóstolos naquele momento de perseguição e perigo, o ensino da humildade através do lavar os pés, deixando claro que os pés naquela época eram muito mais sujos e sofridos que os de hoje. Eu às vezes curvava meu corpo para mais à frente, como se quisesse absorver mais das palavras do sacerdote. E há outra coisa bonita que não costumo ver com muita frequência nas igrejas evangélicas: a pausa para o silêncio, para a oração, algo de fato sagrado e um instante em que nosso espírito se abre para Deus. No momento em que doze pessoas sobem ao altar para representar os apóstolos, ouvimos uma canção que diz “que o maior é o que sabe servir / Que se abaixa e que sabe se inclinar / Porque grande é somente o amor”. Achei o ritual, o gesto, a canção, a letra, tudo de uma beleza imensa.

No final, numa espécie de performance (entendam que é a visão de alguém mais acostumado com as artes) em que os sacerdotes e freiras levam a imagem de Jesus coberto para outro local, enquanto as luzes vão se apagando, o som das vozes dá lugar às canções entoadas, à penumbra, e no meu caso ouvia o som dos grilos também, como se tudo que presenciei e que resumi muito brevemente aqui fosse também uma experiência sensorial, ou extra-sensorial, levando em consideração que pode muito bem ter ido além da percepção dos sentidos. Quis deixar registrado esse evento aqui como forma de reverência, aproveitando o espaço que ficará pequeno para falar de PADRE PIO (2022), de Abel Ferrara.

A respeito do filme sobre o celebrado padre, não dá para dizer que Abel Ferrara é um cineasta incoerente ou que seu cinema mudou do dia para a noite. Essa vontade (ou necessidade) de fazer filmes menores – agora, principalmente, morando na Itália – e sem se preocupar com bilheterias se manifesta mais uma vez em PADRE PIO, sobre um personagem que já foi objeto de estudo em seu documentário SEARCHING FOR PADRE PIO (2015), feito para a televisão, e que aqui aparece como protagonista, de certa forma.

Digo "de certa forma", pois o filme pode frustrar um pouco quem for buscar uma biografia mais comum do padre elevado a santo. Há talvez mais cenas do embate entre trabalhadores simpatizantes do comunismo e empresários e militares fascistas do que do padre. Ferrara apresenta uma espécie de batalha entre o bem e o mal, marcadamente pelas tensões políticas pós Primeira Guerra, quando a Itália sai vitoriosa, mas a vitória tem um gosto amargo ao vermos logo no início alguns homens voltando da batalha: um deles sem as pernas e feliz por continuar "sendo um homem" e o outro que trocou um olho por uma medalha. Há também a mulher que espera pelo marido, sem ter a confirmação se ele está vivo ou morto. E por isso a esperança das pessoas pobres e sofridas daquele vilarejo passa pelo comprometimento com as causas do socialismo, em alta naquele início dos anos 1920.

Enquanto isso, Padre Pio enfrenta as forças de Satanás numa batalha interior que o aflige, o maltrata, o perturba. No início, até acho que o filme apresenta algo de dúbio, se aquilo é algo de natureza espiritual ou psicológica, mas vendo o final é fácil perceber o quanto Ferrara abraça o sobrenatural. 

Apesar da irregularidade, depois do massacre no final e das últimas imagens de Padre Pio em contato com Deus/Jesus, percebemos o quanto Ferrara optou pela devoção católica de forma muito bonita. Ou seja, num mundo cheio de injustiças, crueldade e ainda longe de encontrar a paz, a mão de Jesus está ali para consolar os espíritos, especialmente de alguém que tem uma maior consciência do ataque das forças malignas, como Pio. Há duas conversas com pessoas que vêm procurar o padre: uma delas, um "homem alto" vivido por Asia Argento, é logo expulsa pelo padre, como símbolo da maldade e da tentação contra a fé, aos gritos de “Diga que Jesus é o Senhor!”. Destaco também a fotografia de Alessandro Abate (CÓPIA FIEL), que enfatiza tanto as sombras quanto a luz divina apresentada, especialmente, nas cenas em que a luz adentra a igreja.

Texto dedicado com amor e gratidão à Giselle.

+ DOIS FILMES

AS 4 FILHAS DE OLFA (Les Filles d'Olfa)

Um dos cinco indicados a melhor documentário do Oscar deste ano (perdeu para 20 DIAS EM MARIUPOL), este AS 4 FILHAS DE OLFA (2023) nem é a primeira participação da diretora Kaouther Ben Hania na academia: seu O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE (2020) havia concorrido a melhor filme internacional não faz muito tempo. Além do mais, ela já goza de certo prestígio em festivais. A ideia para a realização, eu considero um de seus maiores trunfos: chamar a própria mãe (Olfa) e suas duas filhas mais novas para representarem a si mesmas numa dramatização dos eventos que levaram ao "desaparecimento" de suas filhas mais velhas de casa. Para isso, somos convidados a conhecer uma cultura diferente e a perceber a ameaça de uma organização como o Estado Islâmico, que operava na Síria na época em que Olfa deixou a Tunísia para lá trabalhar. A Tunísia também é um país cheio de tensões entre grupos islâmicos e seculares e isso acaba por afetar também a herança de educação que Olfa traz para suas quatro filhas. O embate de gerações surge quando as filhas se apresentam mais donas do documentário do que a própria mãe, representando o futuro, uma quebra de padrões estabelecidos, que guardam os traumas e a saudade da saída das irmãs mais velhas do lar habitado basicamente por mulheres, já que os homens que por lá passaram não foram exemplos de boas figuras paternas. Desse modo, há algo de muito bonito na relação que se estabelece entre a diretora, a família (seu objeto de estudo) e as jovens atrizes contratadas para interpretarem as irmãs mais velhas. AS 4 FILHAS DE OLFA talvez só peque por se estender um pouco além da conta, prejudicando um pouco seu ritmo.

THE FIRE WITHIN – A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT

Muito provável que a forma com que vi THE FIRE WITHIN – A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT (2022) ("em fascículos") tenha atrapalhado e muito a minha apreciação. Além do mais, nas cenas de sinfonia de vulcões, com imagens tão incríveis que não parecem deste mundo, fiquei o tempo todo pensando em como seria ter a chance de ver este filme no cinema. Trata-se também de mais uma obra de Werner Herzog que traz personagens tão apaixonados quanto obcecados, como os vistos em FITZCARRALDO (1982) ou O HOMEM URSO (2005). Aqui o diretor faz uma homenagem a um casal de apaixonados/cientistas/cineastas especializados em vulcões, que morreram em seu ofício. E isso não chega a ser um spoiler: é uma informação que o diretor dá logo no início, quando mostra imagens do casal no Monte Unzen, em Nagazaki, Japão, antes de morrerem em um fluxo piroclástico. Sobre a beleza das imagens, ainda fico achando que houve alguma manipulação. Não é possível. No meio disso tudo, o diretor optou por muitas óperas alternado canções típicas de certos países visitados pelo casal de cientistas e cineastas.

domingo, março 31, 2024

SHAMPOO



Tenho muitas lacunas em se tratando de Nova Hollywood. E ultimamente tenho tido muito interesse em me aprofundar um pouco mais neste período tão interessante e rico do cinema americano. SHAMPOO (1975) é um filme que não me interessava tanto em ver, principalmente por uma nota não muito animadora da sessão “videolançamentos” da revista SET (cá estou eu falando da revista novamente). Além do mais, acho que não ia muito com a cara do Warren Beatty. Se o filme fosse visto como algo como uma obra-prima incontestável por muitos críticos, é bem possível que eu já o tivesse visto há muito tempo (ou não, quem sabe).

O que me chamou a atenção para ele agora foi a retomada da leitura de Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock’n’Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind. O filme é destacado pelo autor do livro como uma obra importante na história desse movimento/período, principalmente pelas histórias de bastidores, que envolvem Warren Beatty, o cara que fez acontecer para que o filme se materializasse, inicialmente colocando seu próprio dinheiro e depois fazendo um jogo entre diferentes estúdios (Columbia, Warner, Paramount) para dar a entender que seu projeto estava sendo muito valorizado em Hollywood, que seria um grande sucesso. Depois de conseguir o aval da Columbia, Beatty foi atrás de diretor e roteirista – ele tinha “apenas” os principais nomes do elenco, ele mesmo, Julie Christie, Goldie Hawn, Lee Grant e Jack Warden, além do diretor de fotografia Lászlo Kovacs, de SEM DESTINO e CADA UM VIVE COMO QUER. Só depois seriam contratados o roteirista Robert Towne e o diretor Hal Ashby.

Filme mais interessante do que realmente muito bom, SHAMPOO acabou ficando importante como estudo político e comportamental da sociedade americana da época. A história se passa em 1968, nas vésperas da eleição de Nixon, mas como o filme foi lançado em 1975, o tom pessimista daquele momento contamina naturalmente o humor, que é daquele tipo mais para sorrir do que para rir. Além do mais, como é característico dos filmes da Nova Hollywood do período, há um interesse maior nos personagens do que na trama.

Temos Beatty como um cabeleireiro mulherengo que tem sua namorada atual (Goldie Hawn, um encanto, e sempre trajando microvestidos), mas que segue seu instinto predatório. Em determinado momento, ele chega a transar com a amante, a filha da amante e a amante do marido da amante, vivida por Julie Christie, que já havia sido sua namorada no passado. O interessante é que o contexto político ali presente não é apresentado de maneira tão pesada ou dramática. É como se todos que ali vivem estivessem mais interessados em suas vidas particulares, em manter seus amantes e amores por perto, muito mais por carência afetiva do que por um sentimento mais nobre, por assim dizer.

Há uma cena com a personagem de Julie Christie, bêbada, em que ela fala que seu maior desejo é chupar o pau do personagem de Beatty, um comentário nada comum então nos filmes hollywoodianos. Ou seja, SHAMPOO começa um processo de maior liberdade de mostrar conversas mais explícitas entre as mulheres sobre seus desejos. Há também uma cena bem interessante, numa festa bacana, com gente que tira a roupa e usa muitas drogas ao som do rock daquele fim dos anos 1960 (toca “Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club Band” e “Lucy in the Sky with Diamonds”, dos Beatles, “Mr. Soul”, do Buffalo Springfield, “Manic Depression”, do Jim Hendrix etc.).

Outro aspecto interessante está no quanto o filme não envelhece mal para os dias de hoje, já que é mais um comentário ácido sobre a rotina de adultérios e mentiras da sociedade da época do que uma defesa do estilo galinha de ser do cabeleireiro de Beatty, que em vários momentos se apresenta como alguém perdido e cansado daquilo que construiu para si mesmo. A cena da confissão dele para a personagem de Goldie Hawn traz um pouco do incômodo que ele sente (e a dor dela), por mais que ele tenha dito antes para a personagem de Christie que era ela quem ele amava etc.

Filme visto no box O Cinema da Nova Hollywood 7, que conta, nos extras, com uma entrevista com Beatty e um ótimo bate-papo entre dois críticos de cinema sobre a produção.

+ DOIS FILMES

O MELHOR ESTÁ POR VIR (Il Sol dell'Avvenire)

Depois de dois melodramas, MIA MADRE (2015) e TRE PIANI (2021), e um documentário, SANTIAGO, ITÁLIA (2018), Nanni Moretti volta ao tom mais cômico que tanto alegrou seus fãs, embora certo amargor ainda esteja presente, como é natural da vida. Mas o tom de O MELHOR ESTÁ POR VIR (2023) é de leveza, mesmo quando há algo mais pesado presente, como uma crise conjugal e uma visão de desfecho extremamente pessimista para o cineasta vivido pelo próprio Moretti. Há vários momentos de fazer rir, e a gente percebe que nesses momentos é o próprio diretor fazendo rir de si mesmo, de sua incapacidade de se conformar com as mudanças, inclusive da forma como ele vê o cinema e a política, mas também deixando claros seu entusiasmo e sua paixão pelo cinema. O filme dentro do filme é sobre um fato ocorrido com pessoas ligadas ao Partido Comunista Italiano durante os anos 1950. Mas, nos bastidores, uma de suas atrizes teima em lhe dizer que seu filme é sobre amor, o que lhe deixa confuso. O MELHOR ESTÁ POR VIR vai ficando melhor à medida que pensamos nele. Quanto ao elenco, gosto muito de Margherita Buy, que tem feito filmes com Moretti desde pelo menos O CROCODILO (2006).

TODOS MENOS VOCÊ (Anyone But You)

Bom ver que as comédias românticas não foram de todo extintas em Hollywood. Estão sendo um pouco repensadas para os novos tempos, embora TODOS MENOS VOCÊ (2023) lembre algumas dirigidas pelos irmãos Farrelly. Trata-se também de um veículo para promover o talento de Sydney Sweeney, jovem atriz em ascensão que tem procurado alguns filmes interessantes para seu currículo e aqui parece querer seguir um pouco os passos de Cameron Diaz. O diretor Will Gluck é o mesmo de outra comédia romântica bem simpática, AMIZADE COLORIDA (2011), e aqui brinca com situações envolvendo um desentendimento de um casal que tem uma ótima química no primeiro encontro, mas que depois acabam virando meio que inimigos. Os dois precisam fingir estarem juntos no fim de semana do casamento entre uma amiga e uma familiar em comum. A lembrança que o filme traz de Muito Barulho por Nada, a peça de Shakespeare, é explícita e o formato da trama às vezes lembra essa comédia clássica, inclusive há pouco (ou nenhum) uso do telefone celular. Não sei se isso foi proposital ou apenas necessário para a trama fazer a gente se esquecer do mundo além daquela praia linda da Austrália. Gosto também de como o filme lida com gags um pouco mais apimentadas e físicas, como a cena da aranha, que explora, inclusive, a nudez de Glen Powell e eleva a classificação indicativa. TODOS MENOS VOCÊ é leve, divertido e no final até me fez lembrar HARRY E SALLY – FEITOS UM PARA O OUTRO, embora esteja anos-luz do texto brilhante de Norah Ephron. No mais, foi bom rever Rachel Griffiths, agora no papel coadjuvante da mãe da personagem de Sydney. Nos anos 2000, eu era apaixonado por Brenda, sua personagem da saudosa série A SETE PALMOS. O tempo voa.

sábado, março 30, 2024

CAPACETE DE AÇO (The Steel Helmet)



Uma dos presentes que o saudoso Carlão Reichenbach me deu foi ter me deixado muito interessado em conhecer muitos filmes e cineastas que não faziam parte da minha cultura de cinéfilo até então. Aliás, alguns nomes eu conhecia de certos títulos resenhados na revista SET, mas mesmo esses eu precisava conhecer com mais profundidade. O tempo mais livre que tive durante a pandemia me fez entrar em contato com a filmografia completa de Fritz Lang, por exemplo. Finalmente pude ficar mais íntimo de sua filmografia. Outros cineastas muito queridos por ele eram Samuel Fuller e Valerio Zurlini. O diretor italiano, que até tem uma filmografia muito menor, vou deixar para fazer uma peregrinação com mais calma depois. Agora é o momento de conhecer mais Fuller.

Que, por enquanto, ainda é um diretor que mais me intriga do que me ganha. Pelo menos por enquanto. Ainda gosto bem mais de seu primeiro filme, EU MATEI JESSES JAMES (1949), mas sigo muito interessado em entender mais seu cinema, justamente por que os poucos títulos que vi do realizador me pareceram, de certa forma, pouco palpáveis, mesmo os mais elogiados, como PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) e O BEIJO AMARGO (1964), filmes a que voltarei em breve, com mais atenção.

Em CAPACETE DE AÇO (1951), seu terceiro longa-metragem e primeiro filme de guerra, se percebe logo de cara o baixo orçamento da produção (foi filmado em apenas seis dias), já que a maior parte do filme se passa ou num lugar fechado ou numa selva, ou melhor, no Griffith Park, em Los Angeles, onde foi rodado. Engraçado que no anterior dele, O BARÃO AVENTUREIRO (1950), eu não senti essa questão do orçamento tão de cara, já que havia uma preocupação maior com a direção de arte. E como tenho pouca experiência com produções hollywoodianas mais baratas desse período, ver este Fuller foi como se estivesse vendo uma produção europeia com atores desconhecidos. E talvez esse seja um dos motivos de Godard ter o cineasta americano no coração com tanta paixão.

Uma coisa que me saltou aos olhos vendo, em intervalo de tempo menor, três filmes do realizador em sequência, está no quanto o diretor é um grande humanista. Neste drama de guerra, os homens são apenas homens, às vezes homens que precisam ver sua profissão como um meio de se ganhar dinheiro enquanto se está atirando e correndo o risco de morrer de uma bala de um inimigo que nem é na verdade um inimigo, já que naquela época, a Guerra da Coreia já era problematizada. Não foi uma guerra tão vista como uma batalha do bem contra o mal, como na Segunda Guerra Mundial. Até porque a bomba atômica fez muita gente pensar nos Estados Unidos como uma nação genocida, por mais que esse pensamento não fosse hegemônico dentro do próprio país.

Depois de se mostrar afetuoso com um covarde traidor (no primeiro filme) e com um criminoso falsificador no segundo, é muito mais fácil abraçar agora um sofrido e velho sargento que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e agora sobrevive à Guerra da Coreia, tendo que engolir o choro e ser o mais duro que se pode naquele cenário de dor e morte.

O filme começa com esse sargento se confundindo com um grupo de soldados de seu grupo que foram mortos em batalha. Ele estava vivo e amarrado e com seu característico capacete furado por uma bala. Um garotinho sul-coreano o encontra, lhe dá água e diz que agora se sente responsável por sua vida, por ter lhe salvado. Começa uma relação de amizade entre o velho e a criança naquele cenário sombrio acentuado pela fotografia em preto e branco e pelas sombras das árvores. No meio do caminho, eles são atacados por norte-coreanos disfarçados de mulheres religiosas, e também se encontram com um grupo de soldados no meio da selva. Os grupos se juntam, são alvejados pelo inimigo e depois se reúnem numa espécie de abrigo budista, com uma enorme estátua de Buda. A partir daí, a maior parte do filme se passa dentro desse lugar, onde esses homens conversam sobre a vida, suas experiências, o que querem fazer ao voltarem vivos para casa etc.

Como alguém que viveu na pele o cenário da guerra, CAPACETE DE AÇO é apenas o início de uma série de filmes em que Fuller abordaria o tema. O próximo será BAIONETAS CALADAS (1952). Depois virão ainda NO UMBRAL DA CHINA (1957), PROIBIDO! (1959), MORTOS QUE CAMINHAM (1962) e AGONIA E GLÓRIA (1980). Mas, para falar a verdade, estou mais interessado é nos seus policiais, filmes noir etc. Eu chego lá.

+ DOIS FILMES

NAPOLEÃO (Napoleon)

Quer dizer que Ridley Scott entrega esta versão condensada e vai deixar a versão de 4h10min para o lançamento no streaming, Deus sabe quando? Será que ele está seguro que isso motivará as pessoas a verem o filme novamente na telinha com a certeza de que será melhor? Ou acha que não é bom o suficiente para lançamento com essa duração nos cinemas? Um dos problemas da versão dos cinemas de NAPOLEÃO (2023) é não aprofundar ou não nos fazer conhecer mais o próprio Napoleão (Joaquin Phoenix) idealizado por Scott e pelo roteirista David Scarpa, ainda mais sendo um protagonista que não demonstra ter tanta astúcia política quanto imagino que deveria. De todo modo, é um filme que mantém o nosso interesse do início ao fim, seja quando mostra as cenas de batalha, seja quando aborda o difícil casamento com Josephine (Vanessa Kirby), seja quando apresenta as crises no país - se bem que esse aspecto é um dos mais frágeis do filme. É tudo mostrado muito rapidamente. Ainda assim, gostei da cena do golpe de estado: é ao menos de fácil compreensão e divertida. Senti falta de mais vigor nas cenas de batalha. E de mais cor na fotografia - essa moda atual de se fazer filmes quase sem cores é uma tristeza. De carreira irregular, Scott tem conseguido a proeza de seguir incansável no ofício aos 85 anos, ainda por cima com filmes desse porte. Louvável. Curiosamente, o novo filme remete ao primeiro longa para cinema do diretor, o ótimo OS DUELISTAS (1977), que se passa justamente no tempo de Napoleão Bonaparte.

ZONA DE INTERESSE (The Zone of Interest)

De jeito nenhum um filme como ZONA DE INTERESSE (2023) passaria numa sala de cinema de shopping que costuma exibir produções mais comerciais. Só mesmo uma indicação importante ao Oscar é capaz disso. O que Jonathan Glazer faz aqui é fugir deliberadamente de uma narrativa mais clássica - algo já iniciado em SOB A PELE (2013) - e nos fazer abraçar uma experiência em que o que está fora da tela, ou o que aparece quase que discretamente, é tão ou mais importante quanto aquilo que estamos vendo, aquilo que a câmera deseja mostrar. Ou seja, a beleza da casa grande e arborizada da família Höss é uma espécie de negativo dos horrores que acontecem do outro lado do muro (ainda não entendo bem as cenas do sonho da filha do casal, mas gosto dos efeitos). Acho que uma das cenas de que eu mais gosto é aquela em que o comandante diz que vai precisar sair de Auschwitz para a esposa e eles conversam sobre essa decisão que ele diz ser política. Há tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo em nossa cabeça, na cabeça dos personagens e a poucos metros dali. ZONA DE INTERESSE talvez dê uma boa dobradinha com A FITA BRANCA, de Michael Haneke. E Sandra Hüller, se não é a Rainha de Auschwitz, foi a rainha de Cannes-2023.

domingo, março 24, 2024

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS



Na noite de ontem, fomos, eu e a Giselle, (re)ver DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS (1976) no Cineteatro São Luiz. E foi muito bom irmos até lá, desde a chegada ao local, apesar de vermos a tristeza que está a Praça do Ferreira como um espaço de explicitação de nossa miséria socioeconômica atual. O tempo estava nublado e ameaçando chover, e talvez por isso a organização do espaço tenha deixado as pessoas que estavam dispostas a assistir ao filme naquela sessão especial gratuita (incrivelmente um público pequeno) entrarem meia hora antes do início da projeção.

Lá dentro, tiramos umas fotos e fomos entrevistados por uma moça para uma pesquisa de satisfação do equipamento do Estado. Eu falei a ela do que não gostava, mas, logo que entrei, mesmo as coisas de que reclamei ficaram pequenas diante de minha satisfação de estar ali naquele lugar lindo. Os produtores Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto não puderam comparecer à homenagem que receberiam por um problema de indisposição do hoje lendário produtor. O filme começa e já começamos a ver com muito interesse e deleite.

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS é um dos maiores sucessos do cinema brasileiro. Não me refiro apenas ao público – por décadas foi a nossa maior bilheteria de todos os tempos –, mas também ao fato de que a crítica o tem como uma obra muito querida. A Abraccine, em votação para o livro 100 Melhores Filmes Brasileiros, o colocou na 39ª posição. Já no mais recente livro Cinema Fantástico Brasileiro – 100 Filmes Essenciais, o filme de Bruno Barreto aparece na 13ª posição. Além do mais, Jorge Amado, autor do romance de 1966 que deu origem a esta adaptação, adorou o filme do jovem realizador – Barreto tinha apenas 21 anos quando lançou DONA FLOR e o mais incrível é que já era o seu terceiro longa-metragem.

Sônia Braga está incrível como a doce Flor, a mulher que é um tanto dependente do amor que sente pelo marido Vadinho, um homem irresponsável, que não trabalha, gasta o dinheiro da mulher em jogo, e até bate nela para conseguir dinheiro, numa cena desconfortável, mas não tanto quanto a mostrada na versão dirigida por Pedro Vasconcelos em 2017. Tanto que nem me lembrava dessa cena de agressão. No filme de Barreto, o Vadinho interpretado brilhantemente por José Wilker é visto de maneira mais simpática e moleque, ainda que ganhe dimensões mais sombrias e ambíguas especialmente quando aparece como um espírito ainda louco para satisfazer seu apetite sexual pelo corpo de Flor, que o teria chamado.

Sônia, a intérprete maior das personagens femininas de Jorge Amado no cinema (faria ainda GABRIELA, de 1983, também de Barreto, e TIETA DO AGRESTE, de Cacá Diegues), lida com esse desejo intenso por sexo com a frustração, seja quando tem que aturar as irresponsabilidades do marido boêmio, seja quando se casa com um homem que não corresponde às suas vontades na cama, ainda que a trate com muito respeito, o farmacêutico Teodoro, vivido por Mauro Mendonça. A direção sabe aproveitar muito bem todos esses aspectos de Flor, de maneira muito elegante. Uma cena de que gosto muito é uma que a flagra nua, sozinha, deitada na cama; com a janela da casa aberta, a câmera a larga lá, em estado de luto, mas cheia daquela falta que lhe queima por dentro. Além do mais, a última cena do flashback de Vadinho é cheia desse calor intenso e a fotografia (de Murilo Salles) usa tons avermelhados para enfatizar algo de natureza infernal (no bom sentido, talvez?) na intensidade do desejo do casal.

DONA FLOR é um dos casos raros de filme que deixa muitas lembranças, mesmo passados muitos anos – eu devo ter visto pela última vez nos anos 1990. Ainda assim, fiquei surpreso ao ver coisas que haviam caído no arquivo morto de minha memória, como a visita de Flor a uma mulher que ela acredita ter tido um filho de seu marido. O prólogo, com a morte de Vadinho no carnaval, seguido dos créditos iniciais ao som de Simone cantando "O Que Será?", composta por Chico Buarque exclusivamente para a trilha, já esse início arrepiante é o suficiente para deixar uma grande expectativa para o que virá. Além do mais, Francis Hime faz uma orquestração magnífica a partir da canção, elevando o filme com muita sensibilidade.

Caso perfeito de clássico, o filme de Barreto é tão lembrado que até quem nunca o viu sabe do que se trata, ou lembra de alguma cena ou imagem; é uma obra que ingressou no inconsciente coletivo.

O aspecto fantástico ganha ainda mais força nos dias de hoje, já que não é mais tão eclipsado pelo erotismo (na minha memória, as cenas de sexo eram mais tórridas, mas as vi pela primeira vez muito jovem). Ainda assim, é bem ousado para os padrões da época e para um cinema produzido fora da Boca do Lixo e com um elenco de astros de primeira grandeza (até o elenco de apoio é incrível). Adoro o final, com a decisão de Flor de se sentir finalmente completa com os dois maridos. Talvez seja sobre isso o filme: a busca de completude.

+ DOIS FILMES

NOSSO LAR 2 – OS MENSAGEIROS

Esta sequência de NOSSO LAR (2010) usa o que foi apresentado no primeiro filme a fim de introduzir o ponto de vista dos mensageiros na história de aprendizado, queda e superação de espíritos que descem novamente à Terra. NOSSO LAR 2 – OS MENSAGEIROS (2024), de Wagner de Assis, tem até uma narração que dá um ar mais doutrinador, em comparação com o primeiro, que parecia mais um filme de ficção científica, e por isso era divertido até para não seguidores da doutrina espírita. Incomodou-me um pouco a música que acompanha algumas cenas, especialmente as que mostram o aspecto de perfeição da cidade celestial. Por outro lado, é interessante como às vezes o filme se apropria de elementos do cinema de horror para apresentar a decadência dos espíritos. A própria cena de um dos homens que assiste ao próprio funeral poderia assustar a espectadores da década de 1960, por exemplo. Minha cena favorita é uma em que os mensageiros lutam contra as forças sombrias pelo espírito de um homem.

MINHA IRMÃ E EU

Este filme foi me ganhando aos poucos. Se, no início, eu demorei a embarcar no humor de Ingrid Guimarães e Tatá Werneck, quando se transforma num road movie, o novo trabalho de Susana Garcia (MINHA MÃE É UMA PEÇA 3 - O FILME, 2019) é só alegria, com a química entre as duas atrizes funcionando perfeitamente. Na trama, duas irmãs, depois de terem deixado claro que não queriam cuidar da mãe (Arlete Salles), saem numa viagem em busca da genitora magoada. No meio disso tudo, há a brincadeira com as mentiras da personagem de Werneck, cheia de trambiques, e isso acaba gerando boas situações, como o encontro com o caubói do touro. MINHA IRMÃ E EU (2023) é um tipo de comédia que poderia render um bom público se as pessoas voltassem a frequentar os cinemas. A experiência coletiva na sala foi muito boa, com o público rindo e gargalhando a valer. Ou seja, se temos tradição com a comédia, um bom boca a boca pode ajudar a reconquistar a audiência perdida, nesses tempos em que, até no cinema, vemos propaganda de filmes que estão em cartaz na Netlfix. No mais, parabéns a Tatá Werneck, verdadeira craque do humor físico e rápido.