
A minha peregrinação pela obra de Samuel Fuller está em ritmo muito mais lento do que gostaria. Poderia até dizer que é que sua obra não me traz o mesmo impacto de outras peregrinações recentes, como foi o caso de Abel Ferrara, Fritz Lang e Brian De Palma, para citar aprofundamentos nas obras de diretores iniciadas de 2020 para cá, ma a verdade é que hoje entendo por que Fuller é tão querido pelos críticos: porque ele se torna mais fascinante à medida que pensamos nele, em seus filmes, em seus personagens trágicos. Mas sei também que os tempos são outros e que também tem me faltado tempo para escrever. E sei também que estou vivendo um dos melhores momentos de minha vida, e por isso não posso reclamar. Vamos seguindo, agora iniciando os filmes dos anos 1960 de Fuller, com A LEI DOS MARGINAIS (1961), um filme que, confesso, não foi dos que mais me envolveram.
Curioso como Fuller seguia seu próprio caminho nas décadas em que mais trabalhou: as de 1950 e 60. Nos anos 1950, ele poderia estar fazendo filmes semelhantes aos noir produzidos em grande escala, mas acabou fazendo apenas ANJO DO MAL (1953). Até podemos classificar CASA DE BAMBU (1955) e O QUIMONO ESCARLATE (1959) também nessa categoria, mas eles fazem parte daquele fascínio do diretor pelo mundo asiático.
A LEI DOS MARGINAIS chega num momento em que o film noir já é considerado morto pelos historiadores, e antecipa o filme policial mais sujo que estaria mais presente no cinema da Nova Hollywood. É uma história de vingança que começa de maneira muito simples, mas que vai se tornando mais intrincada quando o personagem de Cliff Robertson sai da prisão para se vingar do pai, assassinado pela máfia. E eu confesso que comecei a perder um pouco o gosto nesses momentos do filme: as intrigas que o personagem cria para fazer com que seus inimigos matem a si mesmos.
O que mais me pegou no filme foi uma cena em que o interesse amoroso do personagem (Dolores Dorn) pede ao protagonista em casamento. Nesse momento, o sangue sobe de raiva no espectador (subiu em mim, ao menos), mas é aí que vemos o quanto essa personagem é herdeira das heroínas do cineasta, lembrando Jean Peters em ANJO DO MAL, Shirley Yamaguchi em CASA DE BAMBU, Barbara Stanwyck em DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957) e principalmente Andie Dickinson em NO UMBRAL DA CHINA (1957), um de seus filmes mais devastadores, especialmente quando pensamos na personagem feminina. Também há uma cena de fazer suar frio em A LEI DOS MARGINAIS: a do atropelamento de uma criança. Nos extras do box O Cinema de Samuel Fuller há um entusiasmado comentário de Martin Scorsese sobre o filme e um pouco sobre o diretor também. Quem tiver de posse dessa mídia física, vale muito conferir.
Um livro que tenho acompanhado ao longo dessa peregrinação pela obra de Fuller é Samuel Fuller, de Phil Hardy, que acredito estar fora de catálogo, mas é possível encontrar em cópias em PDF. É uma dessas cópias que tenho lido. E acho interessante a classificação que o autor fez das obras do cineasta, dividindo por temas: “um sonho americano”, “jornalismo e estilo”, “uma realidade americana”, “Ásia” e “a violência do amor”. Claro que esses temas podem e se interrelacionam entre si e A LEI DOS MARGINAIS é enquadrado no tema “uma realidade americana”, assim como outros vistos, como BAIONETAS CALADAS (1951), TORMENTA SOB OS MARES (1954), PROIBIDO! (1959) e outros dois que pretendo ver e/ou rever: MORTOS QUE CAMINHAM (1962) e PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963).
Na trama de A LEI DOS MARGINAIS, o herói, de modo a se vingar do pai, assassinado pela máfia, faz jogo duplo entre o FBI e a máfia. Ele não tem uma ética de bem e mal, não tem interesse em fazer o bem, porque acha que os mafiosos são um mal para a sociedade, mas por pura vontade de satisfazer o seu ímpeto de vingança, de fazer valer seu ódio acumulado de anos. Ainda assim, ele salva Dolores, a leva para casa, mas não a vê como alguém que seja boa o suficiente para casar com ele. Pelo menos, não a princípio, não quando ele percebe sua própria estupidez, sua própria imbecilidade. Seu interesse em salvar Dolores está mais associado em conseguir alguém para dedurar os mafiosos e conseguir mais informações, e isso fica explícito na cena de sexo entre os dois, quando ele a seduz enquanto a questiona. O fim do herói não é um fim tão heroico assim, no fim das contas, mas ao menos ele havia alcançado algo próximo de uma honradez.
+ TRÊS FILMES
CLOUD – NUVEM DE VINGANÇA (Kuraudo)
Décimo filme de Kiyoshi Kurosawa que vejo e fico feliz que de vez em quando o nosso circuito abre uma brecha para um ou outro filme seu. CLOUD – NUVEM DE VINGANÇA (2024) foi um dos três que ele dirigiu no ano passado. Aos 70 anos de idade, Kurosawa está com uma energia de menino de 20. Este novo filme é bem surpreendente. Não tinha lido nada a respeito, mas esperava um horror sobrenatural. E ele começa mais ou menos assim, com uma das cenas mais assustadoras do cinema de gênero contemporâneo. Mas depois o filme vai se transformando em outra coisa, não parando de nos surpreender. Na trama, Yoshii é um jovem que decide largar o emprego para se dedicar a comprar e revender coisas. Sua maior diversão é olhar a tela do computador e perceber que teve o tino para o negócio, que seu lucro foi imediato. Yoshii não se importa se a bolsa que compra é de grife ou falsificada; se está passando por cima de colecionadores apaixonados de uma boneca para oferecer mais e vender com um preço bem mais caro. Até que as coisas começam a complicar para ele e ele passa a ser perseguido. Uma das graças do filme é nos fazer ficar do lado, ou talvez torcendo, ainda que o verbo não seja bem esse, por alguém que na verdade é o grande vilão. Inclusive, uma das coisas que não me fez amar o filme foi o aspecto pouco sutil com que Kurosawa ataca o capitalismo. Mas é, sim, um belo filme e um herdeiro de PULSE (2001), seu melhor trabalho (entre os que vi), não pelo caráter sobrenatural, mas pelo interesse pelo mundo virtual.
ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS (Ernest Cole: Lost & Found)
Diferente de EU NÃO SOU SEU NEGRO (2016), um filme carregado de muita raiva (e com toda a razão), ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS (2024) é carregado de muita melancolia por parte do diretor Raoul Peck. E de certa forma isso é totalmente coerente com o espírito do personagem, pelo menos em sua trajetória de solidão e despatriação, quando sai de uma África do Sul vivendo seus mais brutais e covardes momentos do Apartheid, para viver nos Estados Unidos. Em seu país, ele criou um rico trabalho fotográfico que denuncia as violências cotidianas sofridas pela população negra – casas destruídas, assassinatos durante protestos, ofensas gratuitas nas ruas, além do que já se sabe sobre o regime, o de separação total de espaços e de humilhação e desamparo de quem não é “europeu”. Um dos momentos mais tristes do filme é quando Cole compara a violência na África do Sul e nos Estados Unidos, especialmente no sul, como o Mississipi: em seu país, ele tinha medo de ser preso; nos Estados Unidos, ele temia levar um tiro. Ou seja, a “terra da liberdade” tão propalada não era bem assim para os negros. O documentário é composto de fotos de Cole e narrado com texto seu, complementado com texto escrito por Peck. Os poucos depoimentos são fundamentais para a conclusão do filme.
O APRENDIZ
Uma pena eu não ter visto O APRENDIZ (2024), de Ali Abbasi, quando foi exibido (rapidamente) nos cinemas no ano passado. Mas poder ver na telinha não perdeu sua força, não. É de fato um filme incrível, um retrato da criação de um monstro. Se o jovem Donald Trump (Sebastian Stan) aprendeu as regras do jogo que ditam seu jeito de viver e de governar e desgovernar até hoje com o advogado inescrupuloso vivido por um assombroso Jeremy Strong, o monstro que esse advogado cria é até difícil de descrever com palavras. A trama do filme se passa principalmente nos anos 1970 e 80, quando Trump ainda era um rapaz fascinado pela vida dos milionários e vivia de cobrar de porta em porta o aluguel dos imóveis do pai. Conhecer Roy Cohn muda sua maneira de pensar e agir e aumenta sua ambição. Com a ajuda das trapaças e do jogo sujo do advogado, ele alcança uma riqueza ainda mais impressionante se pensarmos como era a Nova York nos anos 1970, bastante decadente. Algumas cenas memoráveis: a lição inicial de Cohn, a festa regada a sexo e drogas, a negociação sobre o casamento com Ivana Trump (Maria Bakalova), o encontro com o advogado doente, as duas cenas em paralelo que dizem muito de quem é Trump: um sujeito incapaz de ver a vida além da superficialidade do corpo e da acumulação de dinheiro. Todos os atores envolvidos estão incríveis, mas Strong e Stan estão monstruosos de tão bons.
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