sábado, novembro 11, 2006

OS INFILTRADOS (The Departed)



Não é sempre que filmes de dois gigantes do cinema estréiam no mesmo dia. Pedro Almodóvar e Martin Scorsese. Dois mestres totalmente diferentes. Enquanto um é homossexual e entende a alma feminina, o outro é hetero e admite saber muito pouco das mulheres. Nos filmes de Scorsese, as mulheres, ou são putas ou são santas. Em seus filmes, os homens só entendem a linguagem da brutalidade, levam as namoradas para cines pornô, batem na mulher por causa de um bife, alimentam-se da violência e da testosterona. Às vezes, eles buscam o Deus católico, mas dificilmente o encontram. Scorsese, sabendo de suas limitações, faz dessas limitações a sua força. Se é o universo masculino e da violência que ele conhece, é esse universo que ele explora e transforma em algo belo, em arte. E a violência em seus filmes não é gráfica como a de um Dario Argento ou de diretores orientais contemporâneos. A violência se encontra no núcleo de seus personagens. Dependendo do nosso estado de espírito, essa violência pode nos chocar, como aconteceu comigo em OS BONS COMPANHEIROS (1990), ou pode empolgar, como aconteceu comigo enquanto assistia a OS INFILTRADOS (2006). De uma forma ou de outra, é sempre bom ver Scorsese de volta àquilo que sabe fazer melhor: o filme de gângster.

Talvez OS INFILTRADOS seja o filme mais comercial de Scorsese desde CABO DO MEDO (1991), mas é impressionante como, mesmo quando ele parece se render às vontades da indústria hollywoodiana, ele continua fazendo trabalhos notadamente autorais, vigorosos e cheios de qualidade. Foi assim também com O AVIADOR (2004), que é um filme bem mais ousado e pretensioso. Dos três filmes protagonizados por Leonardo Di Caprio, OS INFILTRADOS é o mais redondo, talvez por se tratar de um remake - CONFLITOS INTERNOS. O que não quer dizer que seja melhor que os outros dois, que são muito mais cheios de altos e baixos, mas cujos altos são mais altos que qualquer momento desse novo filme. De qualquer maneira, trata-se de uma obra admirável. Scorsese deve estar orgulhoso de seu garoto, que começou um pouco tímido ao lado de um grande ator como Daniel Day-Lewis - em GANGUES DE NOVA YORK (2002) -, interpretou um maníaco obsessivo em O AVIADOR, e agora põe um pouco dessa neurose no personagem do tira infiltrado na máfia que luta contra suas próprias crises de pânico, mas que vence seus demônios interiores com coragem. Nunca Leonardo Di Caprio pareceu tão forte. A ponto de ficar em pé de igualdade com o monstro Jack Nicholson.

Claro que quem tem mais intimidade com o cinema de Scorsese deve adorar a familiaridade que OS INFILTRADOS traz, mas acredito que aqueles que vão ao cinema apenas para ver um bom filme, para se divertir, também curtirão o jogo de gato e rato, aliás, de rato e rato, cujo eixo do tripé é Jack Nicholson. De um lado, temos um policial infiltrado na máfia (Di Caprio); do outro, um membro da gangue de Nicholson treinado para ser um policial modelo (Matt Damon). Diferente do filme chinês, OS INFILTRADOS é um trabalho bem fácil de se assistir, como é natural no cinema americano, que oferece uma narrativa quase didática. Inclusive, até no que se refere ao maniqueísmo, isso é muito mais presente no filme americano. Em CONFLITOS INTERNOS, os dois personagens são bem mais complexos. O "vilão" não é tão mau, só quer o conforto da vida de policial e poder se livrar dessa vida dupla que despedaça sua alma. No filme de Scorsese, é difícil simpatizar com o personagem de Matt Damon. Aliás, quando Damon faz um sujeito amoral, ele consegue mesmo ser odioso, como aconteceu antes com O TALENTOSO RIPLEY. No entanto, se Scorsese perde no aprofundamento dos personagens, ele ganha na condução da narrativa.

O gosto pelo rock sessentista e setentista aparece na trilha sonora, que traz duas canções dos Rolling Stones, "Gimme Shelter" e "Let it Loose", ao lado de músicas dos Beach Boys, Allman Brothers, John Lennon, entre outros. Inclusive, Lennon é citado numa cena. Jack Nicholson faz uma citação aparentemente gratuita de uma frase do cantor e compositor: "Give me a tuba, and I'll get something out of it." Será que isso não é uma forma de Scorsese dizer que por mais que lhe entreguem trabalhos de encomenda ou comerciais, sempre sairão filmes de Martin Scorsese? Sobre os Rolling Stones, parece que Scorsese está se dedicando cada vez mais aos documentários. No próximo ano poderemos ver um documentário sobre a última turnê da banda de Mick Jagger e Keith Richards. Scorsese está ficando velho, mas ainda tem muito rock no sangue. Amém.