domingo, maio 29, 2016

GRITOS E SUSSURROS (Viskningar och Rop)



Uma das cenas mais impactantes de GRITOS E SUSSURROS (1972) é a que mostra um padre rezando pela alma da falecida Agnes (Harriet Andersson). Ele "a recomenda a Deus para nos liberar de nossa angústia nessa terra sombria e suja debaixo de um céu vazio e cruel". Fugindo dos padrões frios que costumamos ver em cenas do tipo, o padre chora. Chora não só pela morte daquela moça possuidora de fé, mas pelo estado infeliz de quem permanece neste plano.

É como se Deus estivesse ausente e a morte implacável oferecesse apenas um pouco de tempo para que a dor e a agonia tomassem de conta dos personagens do universo bergmaniano. Como é o caso do homem que joga xadrez com a própria morte em O SÉTIMO SELO (1957) ou da mulher condenada à morte por bruxaria, no mesmo filme. A todos eles lhe são concedidos apenas mais alguns momentos de inquietude espiritual.

Como se não bastasse, mais adiante, em GRITOS E SUSSURROS, Bergman vai ainda mais fundo, na cena do "pesadelo coletivo", em que a dura Karin (Ingrid Thulin) e a insegura Maria (Liv Ullmann) são chamadas para travar um diálogo com a falecida numa cena que tangencia o gênero horror tão ou mais fortemente quanto a cena de outro pesadelo em outra obra cultuada de Bergman, MORANGOS SILVESTRES (1957). Na cena de GRITOS E SUSSURROS, Agnes confessa estar em um vazio terrível no pós-vida.

O que acalenta a dor e a aflição de Agnes durante seus últimos dias na terra são justamente os momentos em que a governanta Anna (Kari Sylwan) transmite a ela um carinho maternal, oferecendo-lhe até mesmo o seio. A carência do toque está presente em toda a obra, e em Agnes ela se manifesta neste momento e no desejo que ela sente, mesmo doente, do toque do médico que a visita.

Os homens, no entanto, são todos frios, covardes e principalmente ausentes. Quando surgem naquele universo povoado por mulheres de personalidade forte, ainda que muito frágeis emocionalmente, eles são dignos de desprezo. Principalmente os maridos de Karin e Maria. Uma cena do flashback de Karin, inclusive, é bastante forte, ao mostrar a vingança da mulher perante o marido dominador. Mesmo que seja uma vingança que envolva automutilação.

Um dos aspectos que mais chamam a atenção em GRITOS E SUSSURROS é a direção de arte, com tons fortes de vermelho que predominam na mobília e nas paredes daquela casa. O vermelho contrasta ora com o branco, ora com o preto das roupas das mulheres que se revezam cuidando da moribunda irmã. E esse mesmo vermelho cresce ainda mais na tela quando somos levados para as memórias de cada uma delas.

O curioso deste drama impactante de Bergman é que o único momento de alegria destoa tanto dos demais que parece um sonho, uma mentira que o filme se permite contar na trama. Trata-se da sequência em que as duas irmãs que não se entendem, Karin e Maria, começam a dialogar com alegria, depois de tantos anos de afastamento, ao som de um violoncelo que só aparece de maneira pontual. Por outro lado, a cena final, narrada pela falecida Agnes, é tão triste e ao mesmo tempo tão genuinamente pura que o que sentimos é algo próximo de um sentimento de ternura. No entanto, o gosto amargo da existência que permeia todo o filme e contagia o espectador não permite algo além disso.

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