O cinema brasileiro continua sendo essa fonte inesgotável de joias a serem descobertas. Se bem que estamos falando agora de um cineasta de grande importância para a história de nosso cinema. Luiz Carlos Lacerda tem uma filmografia bastante generosa de cerca de 20 títulos entre curtas e longas-metragens. O cinéfilo aqui foi que cometeu o vacilo de deixar de ver tantas obras do diretor, por um motivo ou outro. E pelo que andei lendo em entrevistas do cineasta, há tantas coisas emocionantes em sua vida que dariam um excelente filme biográfico.
E por isso é tão importante o trabalho de curadoria que uma mostra como a Curta Circuito faz. A mostra já tem a cara de Andrea Ormond, uma das melhores e mais importantes profissionais da crítica do Brasil, não apenas por causa de suas excelentes críticas, mas por nos apresentar com muito entusiasmo à obra de cineastas que às vezes não costumam pertencer ao cânone ou não são tão populares. Pelo menos, não na atualidade. Infelizmente há um problema de preservação da memória de nosso cinema e por isso essa tarefa é tão necessária e valiosa.
Foi por causa da mostra Curta Circuito que vi O PRINCÍPIO DO PRAZER (1979), filme que encerra a edição deste ano, que aconteceu online e por isso eu tive a honra de poder participar do debate e entrar em contato com o diretor logo depois de ver o filme. Que infelizmente teve que ser visto no YouTube, em uma qualidade não muito boa - outro problema muito comum que ocorre com nossos filmes, que carecem de cuidado por parte do Estado. No entanto, como se trata de uma obra muito interessante e cheia de atrativos, até relevamos esse problema e vemos com prazer.
O PRINCÍPIO DO PRAZER pertence àquela categoria de filmes estranhos e sensuais. E isso muito me interessa. Na trama, Carlos Alberto Riccelli é um jovem à procura de emprego que vai parar na mansão de uma família com toques aristocráticos em uma Paraty dos anos 1920-1930. Como eles vivem na área rural, vemos muita charrete e carros de bois. Chegando lá, o jovem rapaz fala com o chefe da família, vivido por Paulo Villaça. Para trabalhar na casa, teria que dormir lá todos os dias, servir as refeições e também as bebidas em eventuais festas etc.
E as festas dessa família são um tanto extravagantes, para usar de eufemismo. O filme não conta a princípio o tipo de parentesco dessas pessoas, mas convenciona-se acreditar que os personagens de Paulo Villaça e Odete Lara são os pais da jovem Ana Miranda (hoje uma aclamada escritora, mas na época uma atriz que fazia parte da trupe de Nelson Pereira dos Santos). Aos poucos vamos sendo apresentados à rotina daquela família e Lacerda já nos presenteia com uma primeira cena sensual de Ana belíssima: ela sendo banhada pelo irmão (?) em uma bacia. Em seguida, os dois fazem sexo.
A cena é bela e transgressora, mas é apenas o começo do que o filme ofertaria nesse sentido. Há uma cena que eu considero a mais transgressora e mais intoxicante, que é o momento em que a família celebra apenas os quatro, tomando vinho. E o personagem de Riccelli serve a bebida observando aquilo tudo, o modo exageradamente carinhoso com que pai e filha e mãe e filho se beijam e se acariciam. E há algo muito estranho que também ronda a casa, uma espécie de animal que emite ruídos parecidos com os de um jumento, talvez, mas de maneira mais monstruosa. Uma criatura que poderia ser pensada tanto do ponto de vista psicológico quanto como uma alegoria política, levando em consideração o cenário do momento no país.
Foi curioso eu ter assistido ao filme poucos dias após ter finalmente visto TEOREMA, de Pier Paolo Pasolini, e ver algumas semelhanças, tanto do enredo quanto da forma como aparece a personagem de Odete Lara, que me fez lembrar o modo um tanto fantasmagórico como aparece Silvana Mangano no filme de Pasolini, com uma maquiagem carregada de branco. Durante o debate, até perguntei ao cineasta se havia uma homenagem, mas foi apenas uma feliz coincidência.
Quanto à semelhança do enredo, há uma inversão bem considerável. O personagem de Riccelli interfere na rotina da família, mas ele não é o dominador, mas o objeto sexual. E é um aspecto que muito me chamou a atenção e que lida com a fantasia erótica. Fazer parte daquele jogo da família era também muito excitante para o protagonista, em especial nas várias vezes que ele é seduzido pela personagem de Ana Miranda, que exala um sex appeal fantástico. Até o personagem do Villaça se rende à beleza física e jovem do rapaz e o chama para seu quarto, deixando de lado sua posição de dominador nesse momento.
Enfim, O PRINCÍPIO DO PRAZER é um filme que se torna melhor a cada vez que penso nele. Seria muito beneficiado com uma restauração/remasterização para que pudéssemos apreciar melhor a fotografia, a direção de arte, os figurinos, a linda Paraty e, claro, a beleza do elenco.
+ TRÊS FILMES
MULHER DO PAI
Ao que parece, um dos segredos para que o cinema brasileiro dê bons frutos é fazer parceria com nossos hermanos. Mais uma vez uma parceria com o Uruguai rende um belíssimo resultado. Inspiradíssima direção da estreante Cristiane Oliveira. Gostei de tudo neste filme, mas há uma cena que eu acho maravilhosa: uma envolvendo a Analu na bicicleta. E que lugar maravilhoso é aquele fotografado, hein. Direção: Cristiane Oliveira. Ano: 2016.
CANÇÃO DA VOLTA
Filme que consegue, ainda que de maneira bem fragmentada, fornecer um pouco do que é uma família fragilizada pela depressão e pelas tentativas de suicídio. Grandes desempenhos em cena de João Miguel e Marina Person. E quando termina, a gente fica olhando para os créditos, meio que pensando no que acabou de ver. Isso é bom sinal, ainda mais com a canção escolhida pra encerrar. Direção: Gustavo Rosa de Moura. Ano: 2016.
TRAVESSIA
Se o filme se estendesse na trama do Chico Díaz e deixasse de lado à de seu filho poderia ter rendido até bem. Infelizmente, é bem irregular. Vale pelo Díaz, excelente sem fazer esforço no papel de um homem vazio. Direção: João Gabriel. Ano: 2015.
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