domingo, fevereiro 08, 2004

KHOURI EM DOIS FILMES



“Houve um tempo que eu pensei que tinha capacidade e talento pra fazer qualquer coisa. Era uma euforia besta. Hoje eu sinto que o tempo vai passar e me engolir sem que eu faça nada. Mas não me importo muito. Antigamente ficaria doente de pensar em passar em branco pelo mundo. Hoje tanto faz. O que eu quero agora é conseguir experimentar uma vivência interior realmente intensa, que seja ela mesma uma finalidade total, absoluta. Deve haver algo equivalente ao equilíbrio das estrelas, ao fogo e à chuva, que não termine necessariamente no desencanto e na frustração.”

Esse é um pequeno monólogo que Marcelo, interpretado por Paulo José em AS AMOROSAS, fala em certa altura do filme. Achei isso bem representativo de Walter Hugo Khouri, das angústias e inquietações de seu cinema. Foi vendo esse filme, que eu entendi porque a pessoa que escreveu a biografia de Khouri colocou como título do livro “O equilíbrio das estrelas”.

A qualidade do DVD não está tão boa, mas isso porque não foi feito um trabalho de remasterização dos negativos originais. A imagem até que está bem bonita, num preto e branco lindo, mas o som é que é bem prejudicado. Às vezes nem dá pra entender o que os atores falam. Mesmo assim, adorei colocarem esses títulos nas prateleiras. Afinal, não tinha outra maneira de eu vê-los mesmo. Comento a seguir um pouco desses dois filmes.

O CORPO ARDENTE

Quando Khouri fez O CORPO ARDENTE (1966), ele já tinha feito a obra-prima NOITE VAZIA e conquistado muita gente com o seu estilo. Se o filme não consegue atingir a excelência de seu antecessor, Khouri aqui faz um trabalho mais complexo na montagem, alternando passado e presente, e não entregando de bandeja a personalidade fechada de seus personagens. Na trama, Barbara Laage é uma mulher inquieta numa festa chique e regada a jazz (tinha que ser, né?). Aos poucos ficamos sabendo dos jogos de infidelidade dela e do marido. O diretor usa o cavalo como metáfora do homem, que sempre tem uma besta dentro de si. Esse é um tema recorrente em sua obra e em EROS – O DEUS DO AMOR (1981) pode-se ver algo bem parecido. Faz parte do elenco, além de Laage, Dina Sfat e Lilian Lemertz, que se tornaria uma das musas de Khouri, trabalhando em vários de seus filmes. A atriz Barbara Laage é brasileira, mas tinha carreira internacional. Já trabalhou ao lado de Paul Newman, Kirk Douglas e Gene Kelly, por exemplo.

Nos extras, a melhor coisa é a entrevista da viúva do diretor. Ela conta da personalidade ímpar de Khouri, de sua inteligência polêmica e do gosto por autores depressivos como Nietzche e Shopenhauer. Falou do quanto era feliz com ele, quando íam para festivais de cinema na Europa, de quando o marido trouxe para Gramado o diretor Josef Von Steinberg. Gostei dessa entrevista, podia ser mais longa que os poucos dez minutos.

AS AMOROSAS

Esse filme de 1968 é ainda melhor que o primeiro. Mostra o alter-ego do diretor, Marcelo, dessa vez interpretado pelo brilhante Paulo José. Nesse filme, Marcelo ainda não era um sujeito rico e esbanjador. Mas a natureza de mulherengo não podia deixar de faltar.

As tais amorosas do título do filme são as irmãs de Marcelo como também as amantes. Quem aprecia as obras do autor vai se esbaldar com montes de referências a livros que faziam a sua cabeça, e com as discussões filosóficas de Marcelo.

Um dos destaques do filme é a participação dos Mutantes. Eu fiquei admirado com a beleza de Rita Lee quando jovem - ela era linda.

A entrevista de dez minutos nos extras, dessa vez, é do filho de Khouri, mas não é tão boa quanto a da esposa. Ele focaliza mais detalhes técnicos, ao contrário da esposa que mostrou mais o Khouri humano.

Esses três filmes do box (o outro é NOITE VAZIA) são “vendidos” na apresentação como os melhores filmes do mestre. O que não é verdade. Mas não deixam de serem filmes brilhantes de um cara que era verdadeiramente um autor.

Assisti esses filmes do Khouri em momentos especialmente introspectivos, quando me sentia deslocado do mundo. Na sexta-feira, então, eu estava me sentindo um peixe fora d’água na escola, um estranho que não consegue se relacionar normalmente com o universo e que cada vez mais se sente atraído pela solidão. Ver esses filmes tão cheios de inquietação espiritual do meu cineasta brasileiro preferido funcionou como um alento nessas horas.