domingo, julho 27, 2025

BLACK MIRROR – SÉTIMA TEMPORADA (Black Mirror – Series 7)



Acho curioso como uma temporada tão bacana quanto esta sétima (2025) não esteja recebendo tantos elogios. Tudo bem que nem todos os episódios são tão incríveis assim, mas todos são no mínimo muito bons e interessantes, alguns bastante tocantes; outros, empolgantes. Esta nova temporada de BLACK MIRROR volta com mais força ao campo da ficção científica, algo que a anterior (2023) havia se desviado um pouco, ficando mais próxima do horror, coisa que também me agradou, aliás. Falo abaixo um pouco sobre cada episódio desta temporada, vistos num intervalo de tempo maior do que eu gostaria. 

Common People

Adorei a arte do cartaz deste "Common People", um dos episódios mais pedradas de BLACK MIRROR. O marido (Chris O'Dowd) tentando beijar a esposa (Rashida Jones) que se apresenta como se estivesse com o corpo se desfazendo como um metal líquido. Na história, os dois são pessoas que vivem em empregos simples e mal remunerados. O dinheiro mal dá para eles atravessaram para a outra cidade no dia do aniversário da relação dos dois para comerem um hambúrguer num lugar chamado San Junipero (referência a um dos episódios mais cultuados da série). Certo dia, ela passa mal e se descobre com um câncer no cérebro. Sua alternativa de vida aparece numa nova experiência de uma empresa, que diz que a cirurgia é grátis, mas que o casal terá que pagar mensalidades. "Common People" tem muitas camadas e pode se referir a diversas coisas: é fácil pensar diretamente nos planos de saúde, mas também nos serviços de streaming e, indo mais fundo, na própria vida que levamos hoje, muito dependente da tecnologia. Aqui a tecnologia aparece como um vampiro de almas, por assim dizer. O final só não é mais devastador porque, em determinado momento, a vontade de viver daquele jeito se torna mínima.

Bête Noire

Acho que o mais curioso deste episódio é que eu, pelo menos não cheguei a acreditar na protagonista, embora também não confiasse na loira que aparece no escritório para desestabilizar seu mundo. Na trama, Maria (Siena Kelly) é uma garota especialista em doces (na verdade, sua empresa é mais sofisticada do que apenas uma doceria). Ela fica bastante incomodada quando uma ex-colega dos tempos de escola chega para trabalhar em seu mesmo espaço profissional. Estranhas coisas começam a acontecer e Maria passa a achar que é essa mulher, Verity (Rose McEwen), que, de alguma maneira, está fazendo algo para lhe prejudicar. Ao longo do episódio sabemos alguns motivos. A melhor parte é o embate final entre as duas. Pode não ser dos melhores episódios da série, mas é bem interessante como uma variação de À MEIA LUZ, O BEBÊ DE ROSEMARY e outros filmes sobre gaslighting.

Hotel Reverie

Segundo mais longo episódio desta sétima temporada, "Hotel Reverie" parece uma mistura de A ROSA PÚRPURA DO CAIRO com o belo "San Junipero" (olha ele de novo!). Mas aqui não é a personagem do filme que sai da tela, mas uma atriz que invade a realidade de um filme clássico, a partir de uma nova tecnologia que permite que um ator consiga contracenar com personagens de inteligência artificial gerados a partir de conceitos dos filmes-alvo. A ideia então é abraçada pela atriz vivida por Issa Rae, cansada de fazer papéis secundários em grandes produções e de trabalhar como protagonista apenas em filmes indie. No filme dentro do filme, ela conhece a personagem que não sabe que é uma personagem (Emma Corrin), até que em algum momento essa falta de consciência é quebrada. Em algum momento este pequeno filme, que não é tão pequeno assim, começa a cansar, mas gosto do epílogo, embora não goste tanto assim da conclusão da situação das duas mulheres dentro da nova versão do filme dentro do filme. De todo modo, é sempre bom ver uma boa ideia sendo desenvolvida. E ideias não têm faltado a Charlie Brooker.

Plaything

Um dos mais interessantes desta nova temporada, este "Plaything" já começa intrigante, com o personagem de Peter Capaldi se deixando prender numa loja simples e numa civilização avançada o suficiente para capturar pessoas que têm ficha criminal com um exame de DNA imediato. Mas isso é o de menos: o mais importante surge no depoimento do personagem na delegacia, que nos levará para sua juventude, quando teve contato com uma criação de inteligência artificial com visual de videogames antigos. Muito legal o tom retrô, afinal, boa parte da trama se passa mais ou menos nos anos 1990. Dos episódios da série, é o que mais se aproxima de um cyberpunk. O diretor David Slade já havia comandado um episódio especial da série-antologia: "Bandersnatch" (2018), que ouvi dizer que estaria saindo da Netflix, sem que os demais saiam. O que me pareceu um bocado estranho.

Eulogy

Este é um dos mais melancólicos episódios de BLACK MIRROR, e que bom que a série pôde contar com um ator tão bom quanto Paul Giamatti. Aqui ele é um homem solitário que recebe a visita de uma moça que fala sobre o falecimento de uma ex-namorada dele. A lembrança dessa mulher logo traz um impacto grande no protagonista. Como aqui se trata de BLACK MIRROR, a tecnologia está aí para perturbar, mas também para nos deixar muito empolgados com a criatividade da história. A ideia da filha da mulher falecida é criar, a partir de memórias de quem a conheceu, a partir de um equipamento chamado "eulogy", capaz de fazer com que a pessoa busque numa foto borrada que seja a memória daquele momento. É também uma história de dor imensa e de reconexão com um passado que a pessoa até então queria esquecer. É como se fosse a um pequeno filme sobre um reencontro amargo com um amor perdido.

USS Callister – Into Infinity

Acho engraçado que eu tenha tão pouca lembrança de "USS Callister", episódio da quarta temporada (2017) de BLACK MIRROR. Resolvi encarar esta continuação desse episódio sem rever o anterior e achei absolutamente fascinante. Não sei se melhor, mas talvez seja. Talvez porque a personagem de Cristin Milioti (PALM SPRINGS) seja tão boa e de tão fácil simpatia por parte do espectador que seu carisma é quase o bastante. Temos ela como duas personagens: a original, que trabalha na empresa Infinity, e a sua clone, que está presa numa nave espacial junto com outros clones. "USS Callister - Into Infinity" ainda traz um interessante flashback do dia que os personagens de Jesse Plemons (o inventor) e Jimmi Simpson (o dono da companhia) se conhecem. É interessante notar que esta temporada explora muito bem universos alternativos. Acontece com "Plaything", com "Hotel Revery", um pouco com "Eulogy" e finalmente com "USS Callister - Into Infinity". E isso não chega a ser uma novidade na série de Charlie Brooker. Há, inclusive, uma referência mais uma vez a "San Junipero" (2014), um dos mais celebrados da série, aqui aparecendo como nome de um hospital. De certa forma, parece ser uma obsessão de Brooker apresentar personagens presos em circunstâncias cruéis: talvez o pior/melhor exemplo seja o de "White Christmas" (2014).

domingo, julho 20, 2025

DREAMS (Drømmer)



Aproveitar a melancolia deste domingo para falar de um filme que tem algo de melancólico e de meditativo, mas também de positivo na percepção do viver intensamente as paixões, da valorização dos sentimentos. DREAMS (2024), de Dag Johan Haugerud, é sobre isso e muito mais. É um filme muito falado, o que pode incomodar o público que não gosta muito de ler legendas, mas é uma fala tão boa, e ainda com a vantagem de ser também cinema de ótima qualidade e grande sensibilidade. Além do mais, os diálogos são fluidos e dinâmicos. DREAMS faz parte de uma trilogia sobre intimidade física e emocional. É o terceiro dos três a ser lançado e o grande vencedor do Urso de Ouro em Berlim em 2025. Os demais filmes são SEX e LOVE, também de 2024.

Foi uma alegria poder descobrir o cinema deste realizador, cujos filmes, exceto os dessa trilogia, estão inéditos em nosso circuito (penso eu). DREAMS conta, de maneira muito delicada, o despertar da paixão de uma adolescente por uma de suas professoras. Achei de cara muito agradável que o filme seja verborrágico, sem falar que a narração da garota não é redundante. Isso, inclusive, fica explícito na cena em que a professora reza um "Pai Nosso" em seu apartamento. Ou seja, as imagens e a narração podem até andar em paralelo, mas não dizem a mesma coisa. 

Além do mais, ouvir a voz da narradora é como saborear um livro que não conseguimos largar. Mais ou menos como os próprios escritos da jovem protagonista indo parar nas mãos da avó e da mãe. O filme pode ser dividido em três partes bem visíveis: a primeira começa quando a jovem Johanne (Ella Øverbye), 17 anos, lê um livro que descreve a paixão de um personagem por outro e ela sente um impacto físico em seu corpo. Logo em seguida, ela vê essa professora, cujo nome é parecido com o seu, Johanna (Selome Emnetu), pela primeira vez, e não consegue parar de pensar nela em momento nenhum de seus dias, até a cena do fechar da porta. Esse seria o fim do primeiro ato.

O segundo ato é o que se passa alguns meses após os eventos do primeiro e que se utiliza de flashbacks e de muita conversa para aprofundar a importância agora dos escritos de Johanne sobre sua experiência de paixão. Aliás, essa obsessão nos é apresentada de maneira tão intensa que é como invadíssemos o universo interior da personagem, quase como se estivéssemos fazendo algo errado, de tão íntimos que são aqueles seus pensamentos e sentimentos, que ela demoraria a contar para alguma pessoa. O terceiro ato funciona como uma conclusão para a história, com mais um salto temporal.

Uma coisa que me pegou muito no filme foi o guardar, foi o ato da personagem fazer questão de contar em palavras a sua experiência de estar apaixonada pela professora: seus atos, sua descrição encantada de partes específicas do corpo da mulher desejada, suas aflições, o medo de ser descoberta até mesmo quando sonha com a professora, seus pequenos momentos de alegria ao estar pertinho da pessoa que ama, ainda que seja apenas por um breve toque no corpo.

Mais adiante, o filme foca também nas discussões entre mãe, avó e até uma editora de livros sobre a força de seus escritos e sobre a própria vida, sobre a menina estar vivendo tão intensamente, que a avó chega a dizer que queria ter vivido mais, queria ter tido mais parceiros etc. Nesse sentido, vejo DREAMS também como um filme sobre a força das palavras. Não apenas como um meio de guardar recordações, mas também de mexer com o leitor.

Vendo o filme, e sobre o guardar e o sentimento de paixão que vem junto com esse ato, lembrei deste poema de Antonio Cícero:

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.


+ TRÊS FILMES

JOVENS AMANTES (Les Amandiers)

A princípio pensei se tratar de um trabalho sobre a experiência com um homem abusador, como THE SOUVENIR, de Joanna Hogg, mas este belo filme semi-autobiográfico sobre a juventude da diretora Valeria Bruni Tedeschi se iniciando na atuação no teatro e a vivência com seus colegas é mais uma narrativa coral, embora haja uma personagem que se destaque mais. Há, sim, um relacionamento no mínimo complicado da protagonista com um colega viciado em heroína, mas há também os dramas dos demais jovens da escola de teatro, na década de 1980, quando a AIDS chegou demolindo estruturas e destruindo vidas. Em JOVENS AMANTES (2022), Louis Garrel interpreta Patrice Chéreau, mais lembrado hoje como o diretor do excelente A RAINHA MARGOT, aqui com a missão de iniciar os jovens calouros na montagem de uma peça de Tchekhov. A jovem Nadia Tereszkiewicz (vista em O CRIME É MEU, de François Ozon) está ótima como a menina frágil, rica e disposta a ajudar o colega viciado por quem se apaixona. O filme tem uma cadência gostosa e trata seus personagens com carinho, passando sentimentos mais de amor do que de traumas daquele momento importante de sua vida. A propósito, tenho achado curioso alguns filmes franceses da safra de 2022 só estarem chegando ao circuito brasileiro neste ano: é o caso também de ENTRE DOIS MUNDOS, estrelado por Juliette Binoche.

AUCUN REGRET

Quando gostamos muito de um diretor e vamos começando a gabaritar sua filmografia, é uma alegria quando descobrimos que ainda temos algumas obras suas para ver. No caso de Emmanuel Mouret, ele tem sete curtas listados no IMDB. Um deles é este, feito após o delicioso ROMANCE À FRANCESA (2015) e que traz um sabor dos filmes da Nouvelle Vague, especialmente de Rohmer e de Truffaut. Na trama de AUCUN REGRET (2016), Aurélie (a bela Katia Miran) é uma jovem que conhece um rapaz na universidade e sua amiga diz que ele tem má reputação. Ou seja, ele tem por hábito sair com as meninas e logo depois desaparecer, deixando-as na mão quando se apaixonam. A história é muito simples, mas também fácil de ser identificável. Sem falar que há uma beleza de dar gosto quando os dois estão em seus momentos de intimidade, com um cuidado especial para o uso da luz.

TRÊS AMIGAS (Trois Amies)

Sou entusiasta do cinema de Emmanuel Mouret desde que vi FAÇA-ME FELIZ! (2009) numa divertida sessão no Varilux, com o público gargalhando a valer. Era uma comédia que lembrava LEVADA DA BRECA e outras screwball comedies, mas já aproximava a persona de Mouret com Woody Allen, algo que foi aumentando no trabalho seguinte, A ARTE DE AMAR (2011). Suas obras posteriores buscaram equilibrar o humor com o drama, até incorporar o melodrama a sua poética. Este TRÊS AMIGAS (2024) é o filme de que menos gostei do realizador, mas ter visto com sono não ajudou muito, é verdade. Aqui temos o filme que ele mais usa mulheres comuns, por assim dizer: a maior parte dos demais trabalhos dele trazia uma ou mais beldades. É também um filme bastante despojado plasticamente, algo que não se esperava depois de vermos CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022), seu trabalho anterior, bastante sofisticado na forma e também caprichado nos diálogos. TRÊS AMIGAS, assim como outras obras de Mouret, fala de traição, de triângulos amorosos, de medo de magoar o outro, de insegurança, das complexidades nos relacionamentos. É um filme que tem certa leveza, mas suas personagens estão quase sempre angustiadas, insatisfeitas, incompletas. Uma das amigas mais chegadas é amante do marido da outra; uma delas quer acabar com o casamento porque parou de amar o marido (o narrador do filme, o ótimo Vincent Macaigne); uma delas acredita que o segredo de seu casamento é ela fazer de conta que ama o marido; e por aí vai. Então, até há momentos de riso, mas dá saudade dos filmes mais felizes de Mouret, ou mesmo de melodramas mais carregados, como UM NOVO DUETO (2013) ou MADEMOISELLE VINGANÇA (2018). Não ficou um gosto muito bom para mim, mas quem sabe numa revisão eu passo a gostar mais, dadas as circunstâncias em que o vi.

quarta-feira, julho 16, 2025

SUPERMAN



Fiquei feliz quando a Giselle trouxe a proposta de vermos SUPERMAN (2025) no sábado. No estado em que eu estava na sessão de quinta-feira, e com a desvantagem de ser em 3D horroroso que atrapalha a beleza das cores vivas da fotografia, ficaria difícil pra mim fazer um julgamento justo do filme, não importando se eu estava vendo no IMAX. E de fato é um belo trabalho de James Gunn, agora como líder da reformulação da DC no cinema. Ele já havia trabalhado para a DC/Warner com o ótimo O ESQUADRÃO SUICIDA (2021), que trazia seu humor característico e anárquico, de modo a desfazer o equívoco que foi o filme de David Ayer. Saiu da Marvel com o pé direto, com o lindo GUARDIÕES DA GALÁXIA – VOL. 3 (2023) para assumir uma baita responsabilidade, já que os fãs do Homem de Aço são exigentes. Ele tinha três públicos para satisfazer, além de si mesmo: os fãs dos quadrinhos da DC, os cinéfilos e o público em geral, que embarcou e muito com o clássico SUPERMAN – O FILME, de Richard Donner. A julgar pela boa recepção da Giselle, que se encaixa mais na terceira categoria, o filme de Gunn foi um sucesso.

Acredito que poderia ser mais redondo e as partes que deveriam causar mais emoção poderiam ser mais emocionantes, como o beijo final com Lois ou a cena da chegada da Gangue da Justiça no país fictício oprimido que representaria muito provavelmente a Palestina, atualmente sofrendo o genocídio perpetrado por Israel. Gunn faz uso muito bom de seu estilo para sair do lugar comum de uma filmagem mais clássica, como quando evita o uso do campo-contracampo e faz muito o movimento de câmera nos diálogos entre os personagens, causando uma sofisticação que agrada aos olhos. E essa sofisticação ele traz também para as cenas de luta, mesmo as mais longas, como no embate do herói com seu principal nêmesis físico, o Ultraman, que lá no final saberemos quem ou o que se trata.

Falando em vilão, Nicholas Hoult está ótimo como Lex Luthor, o grande arqui-inimigo do Superman, que já foi encarnado por atores como Gene Hackman, Kevin Spacey e Jesse Eisenberg em outras versões do herói para o cinema. Hoult faz o clássico vilão que fala demais, como nos quadrinhos pré-revolução dos anos 1980 nos quadrinhos. A intenção, acredito, é trazer um ar retrô que aproxime essa versão de 2025 com os anos de sua criação, no final dos anos 1930 e posteriores. Esse aspecto mais expositivo pode incomodar um pouco, mas é só comprar e aceitar a ideia e encarar esse tipo de diálogo mais como homenagem do que como sátira. Até porque percebe-se o interesse de Gunn em trazer o máximo de dignidade ao herói.

Já a Lois Lane de Rachel Brosnahan (da série MARAVILHOSA SRA. MAISEL) é um acerto e tanto. Não só por tirar a personagem o máximo possível de donzela em perigo para um lugar de agente da ação, como também porque ela faz embates com o próprio Superman/Clark Kent. Aliás, trazer o Superman mais como Clark Kent do que como Kal-El, embora muito pouco caracterizado como seu disfarce, o aproxima mais de um ser terreno e próximo dos valores de alguém deste planeta, mais de valores que transcendam os valores americanos, já que ele não se vê como cidadão americano e não tem que seguir ordens do presidente dos Estados Unidos. Essas e outras questões têm tornado o filme bem pouco querido pela extrema direita, que o chama de Superman Woke.

No mais, vale destacar a presença de outros coadjuvantes que roubam a cena: o cãozinho Krypto, todo feito em CGI, mas que parece um cão de verdade; o Sr. Incrível, vivido por Edi Gathegi, que é o personagem mais cool do filme; Isabel Merced como a Mulher-Gavião, apesar de aparecer pouco; e Sara Sampaio como a agente dupla Eve Teschmacher, personagem, aliás, criada originalmente para o filme de Richard Donner, mas que depois seria incorporada nos quadrinhos.

Ah, e antes que eu me esqueça, David Corenswet manda muito bem como o novo Superman. Imprime um tipo de bondade que às vezes se confunde com ingenuidade, como deixa claro numa das conversas que ele tem com Lois. Essa repaginação do Superman depois de uma tendência às sombras de Zack Snyder é muito bem-vinda. Não que eu prefira um ao outro, mas pela necessidade de mudança mesmo. E Gunn sabe o que faz, embora precise estar menos engessado no próximo filme.

+ TRÊS FILMES

JURASSIC WORLD – RECOMEÇO (Jurassic World – Rebirth)

Há uma cena em JURASSIC WORLD – RECOMEÇO (2025), de Gareth Edwards, que define bem o seu espírito: é quando a personagem de Scarlett Johansson, que vive uma mercenária especialista em missões perigosas, aceita o acordo de ir até à ilha proibida dos dinossauros pela soma incrível em dinheiro proposta pela empresa farmacêutica que pretende usar DNA dos dinos para criar remédios. A cena em si é ruim do ponto de vista da dramaturgia, mas pra esse tipo de filme isso não importa muito. A questão é que ela funciona como uma metáfora para o topa tudo por dinheiro de Hollywood em se aceitar projetos assim, que não apresentam nada de novo e que também não funcionam como boas aventuras com cenas assustadoras. Tudo é reciclado sob desculpa de homenagem ao original de 1993 de Steven Spielberg, até a trilha memorável de John Williams. O filme, enquanto foca na preparação para a missão do grupo principal, demora a engrenar. Melhora um pouco quando entra em cena uma família que está fazendo um passeio por águas próximas às da ilha proibida. Há, inclusive, uma homenagem interessante a TUBARÃO. Essa família traz também um alívio cômico que o grupo principal não havia conseguido até então. Em alguns momentos o filme parece produzido por uma IA, de tão sem humanidade que é. Há uma certa covardia por parte do diretor (ou de quem o comandou) em não fazer cenas um pouco mais gráficas do ataque dos dinossauros aos humanos e há uma ineficiência em saber recriar cenas do anterior em outro contexto. De todo modo, a gente entende que há um senso de moral necessário para esse tipo de produção, como punir os maus (e os coadjuvantes com pouca função) e salvar os bons, inclusive uma criança. Enfim, mais um filme sem alma para esta franquia.

F1 – O FILME (F1 – The Movie)

Não curto muito Fórmula 1, assim como não sou entusiasta de nenhum esporte. Até tentei ver algumas corridas nos anos 90, e buscar entender o que estava acontecendo, mas sentia dificuldade, em parte por alguma incapacidade das várias câmeras darem conta de captar de forma inteligível para mentes menos observadoras. No caso de F1 – O FILME (2025), há a voz do narrador nas corridas e há uma edição bem rápida e dinâmica, de modo que nos deixa ligados o suficiente para não nos cansarmos em suas mais de 2h30 de metragem. Brad Pitt está ótimo como o cinquentão que teve seu auge nos anos 90 e que é convidado pelo dono de uma das equipes (vivido por Javier Bardem, sempre ótimo, mas aqui em modo mais de pura diversão) a integrar o grupo como um dos dois pilotos de corrida. O outro é um jovem cheio de si que logo se vê ameaçado pela persona cool do piloto com histórico de fracasso, mas com segurança e interesse em dar o melhor para a equipe, inclusive ajudando na questão da melhoria dos carros, tidos como umas latas velhas. Vale muito ver o filme numa tela IMAX, afinal trata-se de um trabalho feito para exibição nesse tipo de sala e a bela fotografia de Claudio Miranda, que já havia trabalho com Joseph Kosinski em TOP GUN - MAVERICK (2022). Não é filme para se ficar dias pensando a respeito, mas é divertido e melhor do que o trailer dava a entender, até por conta da questão da idade do personagem de Pitt, que acaba sendo essencial para a própria trama. Na trilha sonora, vários clássicos do rock ajudam a trazer animação para a trama e a trilha sonora de Hans Zimmer é ótima.

PREMONIÇÃO 6 – LAÇOS DE SANGUE (Final Destination – Bloodlines)

Lá em 2011, quando saiu PREMONIÇÃO 5, a franquia já demonstrava sinais de cansaço e era aquele tipo de diversão que só chegava ao cinema por causa dos efeitos 3D. Já tinha cara de produção direto para vídeo. A New Line trazer de volta a franquia, tomando de assalto várias salas classe A em todo mundo (aqui estreou na IMAX), é uma prova de que a Warner acreditava no poder da nostalgia. Embora a cena inicial de PREMONIÇÃO 6 – LAÇOS DE SANGUE (2025) seja boa, a protagonista, quando acorda do pesadelo e vai até sua família, não é boa o suficiente para segurar a narrativa, que nem existe. O resultado é sonolento, aborrecido e as cenas mais gráficas são fracas. Ainda assim, são as cenas de morte que nos acordam do sono, especialmente quando surgem de maneira mais inesperada. Os diretores Zach Lipovsky e Adam B. Stein vieram de produções para a TV da Disney e de um filme pouco conhecido chamado ABERRAÇÕES (2018).

domingo, julho 06, 2025

JUNE E JOHN (June & John)



Os últimos dias não têm sido fáceis. Sinto falta de escrever: a última vez que consegui produzir um texto maior foi no dia 15 de junho. O restante do mês foi como se eu estivesse sendo atropelado por um trem, com o perdão da hipérbole. E tudo ficou mais tenso com o internamento de minha mãe. Aliás, escrevo neste momento na enfermaria, do lado dela, mesmo sabendo que serei interrompido daqui a pouco.

Desses dias que tenho passado aqui, desde o dia 23 de junho, revezando principalmente com minhas irmãs e meu sobrinho, um momento que me deixou especialmente feliz ontem foi quando a Giselle subiu para visitar minha mãe por uns minutos. A Giselle tem uma energia incrível, uma alegria contagiante e eu fiquei muito feliz ao ver minha mãe surpresa, feliz e sorrindo quando a viu. E, mais ainda, ao ouvir as palavras de fé e de esperança que minha noiva trouxe a ela, emprestando um pouco de sua fortaleza à minha mãe, que esteve bem mais lúcida e melhor ao longo do dia, mas também bastante sonolenta e sem expressar um sorriso sequer.

Por isso, para retomar meus textos para o blog, e escrevendo do celular mesmo, escolho, dentre os filmes vistos recentemente, JUNE E JOHN (2025), de Luc Besson. Isso porque a personagem de June (vivida por Matilda Price) é um pouco do que a Giselle representa pra mim, no sentido de se acordar mais para a beleza do mundo real, e não só a beleza, mas também os aspectos mais sombrios até então invisíveis, e sair um pouco do torpor e do automatismo cotidiano. June tem “essa pressa de viver” descrita por Belchior em “Coração Selvagem”. E também guarda um segredo.

Nunca fui grande fã de Besson - e acho que a maioria dos cinéfilos não é -, mas de vez em quando um filme dele mexe comigo, como aconteceu com NIKITA – CRIADA PARA MATAR (1990) e JOANA D’ARC (1999). Dos mais recentes, gosto de LUCY (2014) e VALERIAN E A CIDADE DOS MIL PLANETAS (2017). E uma coisa que dá para perceber em suas obras é sua opção por destacar mulheres jovens, belas e fortes. June ajuda a trazer fortaleza a John, mas também carinho, amor e excitação em vivenciar aventuras.

O que me encantou em JUNE E JOHN foi o quanto ele é uma representação não só do amor louco, da paixão ardente, mas também de libertação. Da libertação do jovem funcionário de um banco (Luke Stanton Eddy) que vive uma vida à base de remédios para ansiedade e muita solidão. Até o dia que ele encontra, justo num daqueles dias que dá tudo errado, numa estação de metrô, uma jovem mulher de cabelos vermelhos chamada June. Não dá tempo de pegar o telefone dela, mas ele consegue contornar esse problema com a ajuda da internet e de muita força de vontade.

Vejo June como uma espécie de versão espelhada da femme fatale dos noirs dos anos 1940/50, ou seja, ela é a mulher que representa a destruição da vida do rapaz. Mas uma destruição bem-vinda, no caso, já que para renascer é preciso morrer, ainda que simbolicamente. O filme rende também muitas risadas e muita diversão, especialmente quando vira um road movie, e esse rir é também uma porta de entrada para outras emoções que virão na terça parte final. Acho especialmente linda a cena do casamento.

JUNE E JOHN também retrata a situação da Los Angeles dos dias atuais, lotada de sem-tetos vivendo nas mesmas calçadas onde se erigem arranha-céus de megamilionários. Nesse sentido, o filme também funcionará no futuro como um documentário sobre esse tempo.

Quanto à história principal, a história de amor entre o jovem comedido John e a promessa de felicidade June, é tão simples quanto bela. As cenas finais, em Las Vegas e no deserto do sudoeste americano, são lindas demais. E o filme sabe acabar no momento certo. Para além da estética publicitária e de videoclipe, Besson aqui está todo coração. E é uma coisa linda demais de ver. Tão belo quanto o sorriso de Matilda Price, tão deliciosamente incerto quanto a estrada que atravessa o deserto cheio de Joshua Trees.

Texto dedicado a meu grande amor, Giselle.

+ TRÊS FILMES

LEVADOS PELAS MARÉS (Feng Liu Yi Dai)

O último longa de ficção de Jia Zhang-ke havia sido AMOR ATÉ AS CINZAS (2018), um filme que já não havia me conquistado no quesito "importar-se com os personagens". E talvez até por isso, e por aceitar LEVADOS PELAS MARÉS (2024) como um projeto muito mais experimental, aceitei de bom grado o distanciamento para apreciação do filme, que contém cerca de 2/3 de imagens aproveitadas de dois outros títulos de Jia, PRAZERES DESCONHECIDOS (2002) e EM BUSCA DA VIDA (2006), ambos com as presenças de Tao Zhao e Zhubin Li. Eu estava gostando da brincadeira da colagem de filmes para criar uma nova história, e até gostaria que entrassem também cenas de outros filmes do diretor, como UM TOQUE DE PECADO (2013), mas entendo que a tentativa tornaria a colagem mais problemática. Ter uma terça parte final mais amarga com os dois ex-amantes se reencontrando num mundo ainda vivendo sob a pandemia da Covid-19 foi muito interessante. O personagem masculino, com sequelas de um AVC, surge mais frágil nesse momento, em comparação com a personagem feminina, forte o suficiente para participar de uma corrida nas ruas, o deixando "a rua deserta", como diria Caetano Veloso. Pena que essa colagem, por mais interessante que seja, não possui uma liga orgânica suficiente para que essa história de amores partidos seja cruel ou desoladora. O que senti foi mesmo indiferença. E não vejo isso como algo positivo, por melhor que seja rever imagens de filmes de Jia, além de trechos documentais interessantes, como a cena do sujeito que resgata um retrato pintado de Mao Tsé-Tung. De todo modo, LEVADOS PELAS MARÉS funciona como uma ótima apresentação de uma China em constante transformação, sempre alvo de críticas por parte do diretor, mas hoje uma nação digna de admiração pela gigante que conseguiu se tornar no mundo hoje.

AINDA NÃO É AMANHÃ

A opção de Milena Times em AINDA NÃO É AMANHÃ (2024) é contar uma história de maneira simples sobre uma jovem optando pelo aborto, sendo que é uma opção nada fácil, lembrando que o Brasil ainda é um país em que a interrupção da gravidez ainda é crime. Falo em simples, pois não há a intenção de fazer um libelo feminista como UMA CANTA, A OUTRA NÃO, de Agnès Varda; ou um drama extremamente tenso como O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan; ou uma tragédia de dimensões clássicas como 4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS, de Cristian Mungiu; ou uma jornada extremamente delicada, como NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE, de Eliza Hittman. A história de Janaína é mais comum, mais ordinária, no sentido de que acontece o tempo todo no Brasil, só que é algo muito pouco comentado. Na cena em que Janaína conta para a colega de classe que está grávida, ela fica admirada ao saber que a colega também já passou por isso antes. O que a diretora mais destaca em seu filme é a sororidade, é o quanto a mulher mais recebe ajuda de suas amigas e familiares do sexo feminino do que do namorado. Não que o filme vilanize a figura do rapaz, mas no fim das contas essa é uma história em que a mulher é a protagonista. Embora talvez não devesse ter que ser sempre assim.

EVIDÊNCIAS DO AMOR 

Filme divertido que opera (bem) mais na chave da comédia, mas que também pode ser visto como uma história dramática sobre um homem em busca dos motivos por que seu relacionamento se perdeu. Para isso, o destino lhe dá o mecanismo de acessar as memórias a partir da audição de "Evidências", clássico dos karaokês. EVIDÊNCIAS DO AMOR (2024) começa, aliás, num karaokê, em que os personagens de Fábio Porchat e Sandy Leah se conhecem e engatam um namoro. Sobre a natureza fantástica do filme, lembrei-me de CLICK, com Adam Sandler, em alguns momentos, inclusive. A brincadeira em torno da canção é divertida, e, por mais que Porchat e Sandy não tenham tanta química juntos como casal, como eles passam a maior parte do tempo separados, o drama da separação acaba funcionando. (Curiosamente, Porchat funcionou muito bem quando trabalhou como par romântico de Miá Mello nos dois MEU PASSADO ME CONDENA, mas talvez isso se dê devido a uma natureza diferente dos filmes). No caso do filme de Pedro Antônio, há uma leve estranheza que me agrada e me fez ficar interessado do início ao fim - a montagem é acertada, mal se vê o tempo passar. Quando a sessão acabou, teve até coro de espectadores cantando "Evidências" enquanto subiam os créditos.