
Aproveitar a melancolia deste domingo para falar de um filme que também tem algo de melancólico e de meditativo, mas também de positivo na percepção do viver intensamente as paixões, da valorização dos sentimentos. DREAMS (2024) é sobre isso e muito mais. É um filme muito falado, o que pode incomodar um público que não gosta muito de ler legendas, mas é uma fala tão boa, que é como se estivéssemos lendo um livro delicioso, e ainda com a vantagem de ser cinema também de ótima qualidade e grande sensibilidade. Além do mais, esses diálogos são fluidos e dinâmicos. DREAMS faz parte de uma trilogia sobre intimidade física e emocional. É o terceiro e o grande vencedor do Urso de Ouro em Berlim. Os demais filmes são SEX e LOVE, do mesmo ano.
Foi uma alegria poder descobrir o cinema deste realizador, cujos filmes excetuando os dessa trilogia estão inéditos em nosso circuito (penso eu). Este DREAMS conta, de maneira muito delicada, o despertar da paixão de uma adolescente por uma de suas professoras. Achei de cara muito agradável que o filme seja verborrágico, sem falar que a narração da garota não é redundante. Isso, inclusive, fica explícito na cena em que a professora reza um "Pai Nosso" em seu apartamento.
Além do mais, ouvir a voz da narradora é como saborear um livro que não conseguimos largar. Mais ou menos como os próprios escritos da jovem protagonista indo parar nas mãos da avó e da mãe. O filme pode ser dividido em três partes bem visíveis: a primeira começa quando a jovem Johanne (Ella Øverbye), 17 anos, lê um livro que descreve a paixão de um personagem por outro e sente um impacto físico em seu corpo. Logo em seguida, ela vê essa professora, cujo nome é parecido com o seu, Johanna (Selome Emnetu), pela primeira vez, e não consegue parar de pensar nela em momento nenhum do dia, até o instante do fechar da porta. Esse seria o fim do primeiro ato.
O segundo ato é o que se passa alguns meses após os eventos do primeiro e que se utiliza de flashbacks e de muita conversa para aprofundar a importância agora dos escritos de Johanne sobre sua experiência de paixão. Aliás, essa obsessão nos é apresentada de maneira tão intensa que é como invadíssemos o universo interior da personagem, quase como se estivéssemos fazendo algo errado, de tão íntimos que são aqueles seus pensamentos e sentimentos, que ela demoraria a contar para alguma pessoa. O terceiro ato funciona como uma conclusão para a história, com mais um salto temporal.
Uma coisa que me pegou muito no filme foi o guardar, foi o ato da personagem fazer questão de contar em palavras a sua experiência de estar apaixonada pela professora: seus atos, suas aflições, o medo de ser descoberta até mesmo quando sonha com a professora, seus pequenos momentos de alegria ao estar com a pessoa que ama, ainda que seja apenas por um breve toque no corpo.
Mais adiante, o filme foca também nas discussões entre mãe, avó e até uma editora de livros sobre a força de seus escritos e sobre a própria vida, sobre a menina estar vivendo tão intensamente, que a avó chega a dizer que queria ter vivido mais, queria ter tido mais parceiros etc. Nesse sentido, vejo DREAMS também como um filme sobre a força das palavras. Não apenas como um meio de guardar recordações, mas também de mexer com o leitor.
Vendo o filme, e sobre o guardar e o sentimento de paixão que vem junto com esse ato, lembrei deste poema de Antonio Cícero:
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
+ TRÊS FILMES
JOVENS AMANTES (Les Amandiers)
A princípio pensei se tratar de um trabalho sobre a experiência com um homem abusador, como THE SOUVENIR, de Joanna Hogg, mas este belo filme semi-autobiográfico sobre a juventude da diretora Valeria Bruni Tedeschi se iniciando na atuação no teatro e a vivência com seus colegas é mais uma narrativa coral, embora haja uma personagem que se destaque mais. Há, sim, um relacionamento no mínimo complicado da protagonista com um colega viciado em heroína, mas há também os dramas dos demais jovens da escola de teatro, na década de 1980, quando a AIDS chegou demolindo estruturas e destruindo vidas. Em JOVENS AMANTES (2022), Louis Garrel interpreta Patrice Chéreau, mais lembrado hoje como o diretor do excelente A RAINHA MARGOT, aqui com a missão de iniciar os jovens calouros na montagem de uma peça de Tchekhov. A jovem Nadia Tereszkiewicz (vista em O CRIME É MEU, de François Ozon) está ótima como a menina frágil, rica e disposta a ajudar o colega viciado por quem se apaixona. O filme tem uma cadência gostosa e trata seus personagens com carinho, passando sentimentos mais de amor do que de traumas daquele momento importante de sua vida. A propósito, tenho achado curioso alguns filmes franceses da safra de 2022 só estarem chegando ao circuito brasileiro neste ano: é o caso também de ENTRE DOIS MUNDOS, estrelado por Juliette Binoche.
AUCUN REGRET
Quando gostamos muito de um diretor e vamos começando a gabaritar sua filmografia, é uma alegria quando descobrimos que ainda temos algumas obras suas para ver. No caso de Emmanuel Mouret, ele tem sete curtas listados no IMDB. Um deles é este, feito após o delicioso ROMANCE À FRANCESA (2015) e que traz um sabor dos filmes da Nouvelle Vague, especialmente de Rohmer e de Truffaut. Na trama de AUCUN REGRET (2016), Aurélie (a bela Katia Miran) é uma jovem que conhece um rapaz na universidade e sua amiga diz que ele tem má reputação. Ou seja, ele tem por hábito sair com as meninas e logo depois desaparecer, deixando-as na mão quando se apaixonam. A história é muito simples, mas também fácil de ser identificável. Sem falar que há uma beleza de dar gosto quando os dois estão em seus momentos de intimidade, com um cuidado especial para o uso da luz.
TRÊS AMIGAS (Trois Amies)
Sou entusiasta do cinema de Emmanuel Mouret desde que vi FAÇA-ME FELIZ! (2009) numa divertida sessão no Varilux, com o público gargalhando a valer. Era uma comédia que lembrava LEVADA DA BRECA e outras screwball comedies, mas já aproximava a persona de Mouret com Woody Allen, algo que foi aumentando no trabalho seguinte, A ARTE DE AMAR (2011). Suas obras posteriores buscaram equilibrar o humor com o drama, até incorporar o melodrama a sua poética. Este TRÊS AMIGAS (2024) é o filme de que menos gostei do realizador, mas ter visto com sono não ajudou muito, é verdade. Aqui temos o filme que ele mais usa mulheres comuns, por assim dizer: a maior parte dos demais trabalhos dele trazia uma ou mais beldades. É também um filme bastante despojado plasticamente, algo que não se esperava depois de vermos CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022), seu trabalho anterior, bastante sofisticado na forma e também caprichado nos diálogos. TRÊS AMIGAS, assim como outras obras de Mouret, fala de traição, de triângulos amorosos, de medo de magoar o outro, de insegurança, das complexidades nos relacionamentos. É um filme que tem certa leveza, mas suas personagens estão quase sempre angustiadas, insatisfeitas, incompletas. Uma das amigas mais chegadas é amante do marido da outra; uma delas quer acabar com o casamento porque parou de amar o marido (o narrador do filme, o ótimo Vincent Macaigne); uma delas acredita que o segredo de seu casamento é ela fazer de conta que ama o marido; e por aí vai. Então, até há momentos de riso, mas dá saudade dos filmes mais felizes de Mouret, ou mesmo de melodramas mais carregados, como UM NOVO DUETO (2013) ou MADEMOISELLE VINGANÇA (2018). Não ficou um gosto muito bom para mim, mas quem sabe numa revisão eu passo a gostar mais, dadas as circunstâncias em que o vi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário