sábado, janeiro 02, 2021

ROMANCE À FRANCESA (Caprice)



"Não seja tão egoísta; seja infiel"
(Caprice)


Com o aparecimento do novo filme de Emmanuel Mouret, LES CHOSES QU'ON DIT, LES CHOSES QU'ON FAIT (2020), na lista dos dez melhores filmes do ano da Cahiers du Cinéma, tem sido objeto de discussão entre alguns cinéfilos essa melhor recepção que os filmes do diretor passaram a receber. Na verdade, pra mim já veio tarde, pois desde FAÇA-ME FELIZ (2009) que eu já me apaixonei pelo cinema dele. Mas esse filme tinha uma ligação maior com as comédias malucas da Velha Hollywood. Pareceu-me um claro herdeiro de LEVADA DA BRECA, de Howard Hawks, mas também do humor físico e de esquetes de Jacques Tati.

Com o tempo e com os demais filmes fui percebendo que Mouret estava se aproximando mais de Allen e de Rohmer. Essa impressão chega forte com este ROMANCE À FRANCESA (2015), que me deixou um gosto amargo no final, e que, com o tempo, foi crescendo em minha memória afetiva. Ainda guardo na memória algumas coisas que me incomodaram, e não sei se isso era proposital, mas no fim das contas isso importa pouco. Ou talvez importe para dizer mais sobre nós do que sobre o filme. 

A primeira cena do filme nos apresenta ao protagonista, Clément (o próprio Mouret), sentado em um banco de praça com seu filho, uma criança leitora voraz. Ele chama o garoto para passear, o menino não quer; nem ir ao cinema. Para ele só interessa a leitura. É fácil pensar que aquele garoto é, de certa forma, parte da personalidade do próprio autor, um pedacinho de seu ego. Assim como é, claro, o próprio protagonista, apaixonado por cinema e por teatro e que chora emocionado vendo algumas peças.

É em uma dessas peças que ele conhece a jovem Caprice (Anaïs Demoustier), uma ruiva simpática que claramente está tentando se aproximar dele. Ele, no entanto, não dá muita bola. Naquele momento, só lhe interessa a peça, e também a atriz da peça, Alicia Bardery (Virginie Efira). De certo modo, ele não se distingue tanto assim de seu filho no quesito "fechar os olhos para a realidade e se importar muito mais com a ficção".

O que o filme traz como uma espécie de fantasia dos sonhos para pessoas desengonçadas como Clément é o surgimento de Alicia, a atriz lá do teatro, em sua vida. Ele é um professor de crianças e quem aparece justamente na escola para contratar seus serviços como tutor do sobrinho é a famosa e querida atriz. Logo os dois começam a se interessar um pelo outro e a estabelecer um belo relacionamento. Como Alicia é uma mulher bonita, elegante, forte, mas também com suas vulnerabilidades, ele se acha em uma posição privilegiada, muito mais do que jamais imaginaria. Até que um dia Caprice volta para sua vida e a revira de pernas pro ar.

É interessante o quanto a personagem da jovem garota pode trazer sentimentos conflitantes. Ela tem algo de muito atraente e libertador, enquanto também é irritante na tentativa de invadir a vida e a privacidade do sujeito. Ela não dá trégua. Muito bonita a primeira cena do beijo deles dois. Mas passar a noite com Caprice se torna um tormento para Clément, que sofre com complexo de culpa. Em uma das várias tiradas do texto, há um diálogo em que Caprice diz a ele para não ser egoísta, propondo que ele seja amante dela, que fique com Alicia como esposa.

O que não dava para imaginar é que a obra, que começa bastante leve, lembrando SÓ UM BEIJO POR FAVOR (2007), nesse sentido, passe a trazer cargas: o peso da culpa, o peso de não saber o que fazer com a vida, mesmo quando a vida parece estar lhe trazendo uma maré de sorte. Aliás, outra tirada que eu adorei no filme, e que me lembra demais Woody Allen em seu pessimismo natural, é quando ele diz: "Quando você está com sorte, algo acontece para compensar."

Não vejo o filme como uma obra sobre traições ou adultério, embora também o seja. A questão se apresenta maior na relação complicada do protagonista com a própria vida, em especial a vida amorosa, sua incapacidade ou dificuldade de ser aquele cara decidido e resolvido que gostaria de ser. Há um personagem coadjuvante, o do diretor do teatro, que fala algo que se aplica muito a isso. Aliás, é curioso ficar percebendo como cada personagem do filme parece uma ramificação do ego do autor. E esse tipo de obra de arte mais confessional muito me interessa.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

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