domingo, fevereiro 28, 2021

DEPOIS A LOUCA SOU EU



A primeira vez que senti um ataque de pânico acho que foi quando eu voltava de uma viagem, lá pelo início de 2007. Nem lembro que viagem foi, na verdade. Mas lembro de outra ocasião, no início do mesmo ano, dessa vez dentro de uma sala de cinema, quando via DIAMANTE DE SANGUE. Forte taquicardia e provável queda de pressão, que só não foi pior pelo fato de eu me sentir mais ou menos seguro, dentro de uma sala escura. O dia mais crítico, porém, aconteceu dentro de uma sala de aula, no meio de uma explicação que eu dava aos alunos do turno da noite. Acho difícil explicar o que senti, além da aceleração dos batimentos cardíacos, da queda de pressão e da sensação de que ia morrer. Pedi licença à turma e me dirigi à sala da diretora. Ela notou que eu não estava nada bem, e falou para eu ir ao posto de saúde que ficava ali vizinho à escola. 

O médico foi atencioso e deixou claro que se tratava de transtorno de ansiedade, que aquilo que eu tinha experienciado se tratava de um ataque de pânico. Deu-me um atestado de 15 dias, falou pra eu fazer caminhadas todos os dias pela manhã por uma hora e recomendou uma ida a um especialista o quanto antes. As caminhadas foram boas e me ajudaram bastante, mas os dias seguintes não foram fáceis. O antidepressivo que um psiquiatra prescreveu não foi nada positivo e até chegou a ocasionar uma convulsão. O tal remédio (Clo) parecia que ia explodir o meu cérebro. Ainda assim cheguei a passar meses usando. 

Depois do ocorrido, fui a um outro médico, dessa vez um neurologista, que me receitou o Rivotril. Os primeiros dias com esse remédio são como o paraíso na Terra para quem sofre de ansiedade. A paz de espírito que ele traz não tem igual. Até tive uma mudança positiva no meu modo de socializar, senti-me menos tímido, mais corajoso, e por causa disso até tive uma certa crise de identidade. Fiquei me perguntando quem eu era: seria eu o cara tímido e antissocial ou o novo sujeito, um pouco mais tranquilo e à vontade com a vida? Percebi também que o problema já vinha de muito tempo. Isso justificava as fugas frequentes de ambientes sociais com muita gente, a sudorese quando dirigia, as preocupações extremamente antecipadas de como eu ia voltar para casa etc.

Ao ver DEPOIS A LOUCA SOU EU (2019), de Julia Rezende, me senti tão bem ao ver que não estou sozinho e que é possível, inclusive, rir de muita coisa desagradável, que até tive coragem de escrever esses parágrafos acima, de natureza tão pessoal. Apesar de tudo, nunca me faltou senso de humor e valorizo muito os tipos peculiares de senso de humor, algo que, certamente, Tati Bernardi, a autora do livro que deu origem ao filme, tem, além da coragem de expressar suas desventuras publicamente em crônicas e livros. Além do mais, é sempre um prazer ver um novo filme de Julia Rezende. Ela me chamou a atenção principalmente com PONTE AÉREA (2015), mas depois vi que seus timing para a comédia em MEU PASSADO ME CONDENA - O FILME (2013), sua continuação (2015) e outros trabalhos de humor mais incomum como COMO É CRUEL VIVER ASSIM (2018) e este novo filme, são uma prova viva de que estamos diante de um de nossos cineastas mais talentosos.

No caso de DEPOIS A LOUCA SOU EU, Julia tem, além do próprio talento na direção, a presença brilhante de Débora Falabella como a protagonista. Débora é uma das melhores e mais subestimadas atrizes em atividade no Brasil. Uma pena que este filme, tão fácil de ser compreendido e abraçado por muitos que sofrem de transtorno de ansiedade (ou que conhecem amigos e familiares com o problema), esteja chegando em tempos pandêmicos. E também sabemos que a pandemia vai fazer crescer ainda mais o que já é um problema gigante no mundo inteiro.

No filme, Débora interpreta uma espécie de alter-ego mais exagerada de Tati Bernardi, Dani, uma mulher que desde criança já tem problemas. Na história, ela é levada para uma benzedeira e depois para um ritual um tanto assustador. E há algo de fundamental importância para o filme, que é a relação de Dani com sua mãe, Silvia (Yara de Novaes). A relação entre as duas, a hiper-proteção que ela sofre, assim como os próprios problemas de ansiedade da mãe, são motivos tanto de riso quanto de choro, em diferentes momentos. Essa relação problemática mas também afetuosa entre as duas é um elemento de grande força do filme.

Tanto que chega a ser mais importante do que a relação de Dani com seus namorados (destaque para a relação com o psicanalista Gilberto, vivido por Gustavo Vaz), bem como a sua carreira profissional. O encontro com o Rivotril e depois com outras drogas (depois de experimentar outras alternativas) é essencial para que compreendamos sua necessidade de se sentir mais forte diante do mundo. Também somos apresentados aos efeitos colaterais da droga (não são nada legais) e ao posterior uso descontrolado para aguentar principalmente as situações que envolvem o trato social - imagina só uma pessoa que tem problema de ansiedade tendo que lidar com a ida a um talk show visto por milhões de pessoas!

Diante do cenário de pandemia, em que as pessoas têm, com toda razão, motivo mais do que compreensível para não ir ao cinema, DEPOIS A LOUCA SOU EU deve encontrar um público muito maior quando puder ser visto nos streamings. Além de ser um filme que traz luz para um problema de muitos, é daquelas obras que aquecem o coração, pois seu senso de humor é muito bem mixado com a melancolia, com as situações difíceis da protagonista. Rir é o melhor remédio, mas rir com um sentimento de solidariedade é melhor ainda.

+ TRÊS FILMES

EU ME IMPORTO (I Care a Lot)

Difícil não fazer uma comparação deste filme com GAROTA EXEMPLAR, de David Fincher, tanto pelo suspense meio Supercine (que em Fincher é muito mais sofisticado, claro), quanto pela presença novamente de Rosamund Pike como uma mulher capaz de coisas inacreditáveis. Logo no começo de EU ME IMPORTO (2020), de J Blakeson, senti uma raiva imensa da personagem. De deixar o sangue intoxicado. Afinal, aprisionar velhinhos em asilos contra a vontade deles e tomar suas fortunas é algo que não estamos acostumados a ver nem nos piores vilões. Por isso qualquer antagonista para a personagem de Pike seria bem-vindo, por pior que fosse do ponto de vista moral. E assim damos as boas vindas ao personagem de Peter Dinklage. Gosto de como o filme desafia uma moral mais comumente esperada nos filmes convencionais de Hollywood. Afinal, pouco sabemos da maldade que rola nas grandes fortunas e no modo como elas são construídas. Indicado ao Globo de Ouro na categoria melhor atriz em comédia ou musical.

MONSTER HUNTER

Não sou exatamente um fã de Paul W.S. Anderson, mas este filme me surpreendeu positivamente. MONSTER HUNTER (2020) é simpático e simples no modo como une os personagens de Milla Jovovich e Tony Jaa para enfrentar os monstros. Mais uma vez inspirado em um videogame, tudo leva a crer que se transformará em uma nova franquia do diretor com sua esposa/musa. Aliás, ela continua magnífica como heroína de ação. Mas confesso que me dá um pouco de preguiça de imaginar continuações deste filme, por mais que tenha me agradado seu estilo básico e uma postura "nem aí" com o uso de CGI pouco caprichado por todos os lados. Em determinado momento, quis lembrar de TROPAS ESTELARES, mas vi que não tinha motivo eu fazer esse tipo de comparação. O trabalho de W.S. Anderson é mais herdeiro de produções B. E por mais que isso faça com que os monstros não assustem, não prejudica o clima de sessão da tarde.

MALCOLM & MARIE

Zendaya está ótima neste filme, embora, assim como sua personagem carrega um background pesado de experiências com vício em drogas, a atriz vem de uma série em que também interpreta uma personagem parecida. Junte-se ao fato de estar trabalhando com o mesmo Sam Levinson, o criador de EUPHORIA (2019-?), temos aqui certo grau de semelhança, embora no filme tenhamos uma mulher mais inteligente e com raciocínio agudo, com suas inseguranças também, mas quem não as tem? O filme é geralmente descrito como uma grande D.R. de quase duas horas de duração e é mais ou menos isso mesmo, embora outras discussões interessantes (inclusive sobre cinema) apareçam. Na trama, John David Washington é um cineasta que volta com a namorada (Zendaya) de uma pré-estreia aparentemente bem-sucedida de seu filme. MALCOLM & MARIE (2021) mal nos dá trégua com tanta briga dos dois, mas é tudo feito com tanta elegância que é bonito de ver. Para o bem e para o mal, já que eu costumo gostar mais de filmes mais intensos e dolorosos no que se refere às rachaduras de um relacionamento. A propósito, fico me perguntando se o filme existiria se não fosse a pandemia, com a necessidade de lidar com uma equipe limitada e apenas dois atores em cena. A experiência é interessante, o filme é elegante (o preto e branco é lindo!) e tem muito a dizer.

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