segunda-feira, fevereiro 15, 2021

RIFKIN'S FESTIVAL



O início de minha relação com o cinema de Woody Allen foi de achar seu trabalho um tanto pretensioso, já que era um exemplar bem explícito de um tipo de cinema destinado a intelectuais burgueses. Ou nem tão burgueses assim. Depois, comecei a gostar, a amar, a me identificar com sua persona cheia de neuroses e manias. E aos poucos a gente vai se apegando mais e mais, principalmente quando entramos em contato com alguns de seus trabalhos mais brilhantes.

Infelizmente ele não está mais em sua fase brilhante. Mas tenho defendido seus últimos trabalhos, inclusive por terem, em sua maioria, me trazido muito prazer. Começar a ver o filme com aquele jazz e as letras brancas de fundo preto com o elenco em ordem alfabética nos créditos, isso já traz uma sensação de familiaridade muito agradável. Mas essa familiaridade tem muito a ver com nossa relação de afeto com seus filmes, que costuma vir de boas experiências. 

Desde CRIMES E PECADOS (1989) que vejo todos os seus filmes no cinema, só tendo perdido de ver dois, NEBLINA E SOMBRAS (1991), que acredito não ter sido exibido em Fortaleza (vi em uma gravação da Rede Globo posteriormente), e IGUAL A TUDO NA VIDA (2003), que cometi a besteira de baixar da internet e depois não fui ao cinema para revê-lo, até por não ter curtido tanto o filme. De todo modo, para mim e para muitos cinéfilos, ter um filme novo do Woody Allen todos os anos era um alento e uma alegria.

Infelizmente RIFKIN'S FESTIVAL (2020) - visto em um momento especial, por conta da pandemia, em casa mesmo - é uma de suas obras menos inspiradas. Provavelmente o filme mais apático dele desde VOCÊ VAI CONHECER O HOMEM DOS SEUS SONHOS (2010). Ainda assim, é um filme que merece ser visto com atenção, já que se trata de seu primeiro trabalho após os ataques duros que ele sofreu com as acusações da filha adotiva Dylan Farrow e o posterior cancelamento por parte de alguns atores e atrizes que trabalharam com ele, especialmente em seu trabalho anterior, UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK (2019), que também foi um filme difícil de ser lançado, por causa da quebra de contrato com a Amazon, entre outros problemas.

É até possível sentir uma ponta de tristeza e de desencanto em seu alter-ego, agora vivido por Wallace Shawn. Aos 77 anos, Shawn é o ator mais velho que ele traz para representar sua conhecida persona. Antes disso, ele havia trabalhado com Larry David, em TUDO PODE DAR CERTO (2009). Com David a coisa funcionou melhor pois pareceu uma mescla do estilo de dois gênios da comédia. Com Shawn, o protagonista parece mais patético, e seu drama, tanto de estar sendo traído pela esposa, quanto o de estar se apaixonando por uma médica espanhola bem mais jovem que ele, é um pouco difícil de conseguir nossa solidariedade/simpatia.

Assim, o que mais importa não é o quadrado amoroso Shawn/Elena Anaya e Gina Gershon/Louis Garrel, mas as homenagens que Allen faz aos seus ídolos do cinema, em especial os do cinema europeu. Em determinado momento do filme, o protagonista é meio que ignorado na mesa de um restaurante enquanto fala que prefere o cinema europeu ao americano. E as homenagens vão em forma de cenas que saem de delírios do personagem, de perturbações de sua mente.

Essas homenagens aparecem em preto e branco e com diferentes janelas de aspecto de filmes clássicos de Bergman (o único que tem três filmes homenageados), Buñuel, Welles, Lelouch, Truffaut, Fellini. Mas não deixa de ser um pouco incômodo ver que Allen escolhe filmes um pouco óbvios dos realizadores, dando a impressão de ter um conhecimento limitado do cinema europeu. Ainda assim, essas homenagens são bem divertidas e certamente vão passar batido para quem não conhece os filmes. O diretor de fotografia Vittorio Storaro comparece novamente de forma brilhante com sua luz, tanto nas imagens em preto e branco quanto nas cores bonitas da cidade de San Sebastian.

É uma pena que essa preocupação formal talvez tenha prejudicado seu sentimento. É como se seu protagonista estivesse indiferente ao que acontece em sua vida. Na cena em que Gershon diz o quanto se sente realizada na cama quando está com Garrel, isso pouco parece doer nele. O mesmo ocorre quando vemos sua despedida da personagem de Anaya, a mais interessante do filme. De certo modo, isso acabou me deixando duplamente triste, tanto pela incapacidade do filme de fazer doer, quanto por esse personagem não se importar com a solidão e o fracasso sentimental e profissional. Pelo menos, isso nos leva a pensar,  e só um autêntico autor é capaz disso, mesmo em suas obras menos inspiradas.

+ TRÊS FILMES

OS MELHORES ANOS DE UMA VIDA (Les Plus Belles Années d'Une Vie)

Eu já não tinha gostado muito do filme mais célebre de Claude Lelouch, UM HOMEM, UMA MULHER (1966). Acho que tem o seu charme, mas me parece vazio, como vazios parecem seus personagens. Essa vacuidade se repete nesta segunda sequência, OS MELHORES ANOS DE UMA VIDA (2019), desta vez trazendo os personagens na idade da decadência física - ainda que a personagem de Anouk Aimée ainda esteja bela e elegante, o personagem de Jean-Louis Trintignant sofre com a perda da memória e a dificuldade de mobilidade. O que ainda teima em ficar em sua memória são as lembranças do grande amor de sua vida (Aimée). A opção de Lelouch em fazer também uma espécie de homenagem ao seu mais famoso filme e aos seus personagens numa espécie de grande videoclipe pode até ter o seu mérito (talvez acentuar a beleza de Aimée, a juventude, aquela fotografia em preto e branco linda...), mas o resultado final é desanimador. Ainda assim, vale ver. Nem que seja pela participação especial de Monica Bellucci.

A GAROTA DA PULSEIRA (La Fille au Bracelet)

Neste filme uma das coisas que menos importa é saber se a garota vivida por Mélissa Guers (estreante) é culpada ou inocente do assassinato da amiga. Um dos maiores méritos de A GAROTA DA PULSEIRA (2019), de Stéphane Demoustier procurar nos rostos as emoções, às vezes difíceis de supor, tanto nas cenas de tribunal quanto fora, onde a garota cumpre prisão domiciliar com a tornozeleira eletrônica. No tribunal também se enfatiza a tendência da sociedade em fazer julgamentos morais, principalmente levando em consideração códigos de conduta próprios de outras gerações. Embora a presença de Chiara Mastroianni seja discreta e muito bem-vinda, Roschdy Zem, que faz o pai da garota, é muito mais presente importante para a narrativa.

O AMOR DE SYLVIE (Sylvie's Love)

Muito bonito este O AMOR DE SYLVIE (2020), de Eugene Ashe, que emula os romances da Velha Hollywood, com talvez a diferença apenas de ser dirigido por um cineasta negro ativista e protagonizado por pessoas negras, o que traz uma perspectiva relativamente nova se compararmos com os filmes so white da época. A trilha sonora é de dar gosto, com vários clássicos americanos. E há a história de amor do casal principal, cheia de obstáculos. Tessa Thompson é apaixonante e Nnamdi Asomugha é bem carismático e elegante. Até um "The End" no final usam para manter o charme de outrora, e também para nos aproximar do cinema que era feito nos Estados Unidos naquela época. Um cinema nada inclusivo, é sempre bom lembrar.

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