terça-feira, fevereiro 09, 2021

PAJEÚ



I fear that I'm ordinary
Just like everyone
To lie here and die among the sorrows
Adrift among the days
(Billy Corgan, "Muzzle”)

Sermos esquecidos. Esse é um dos temores da humanidade. Não à toa tentamos ser lembrados através de nossos descendentes, nossas realizações artísticas e científicas, ou de qualquer outra natureza. Shakespeare procurou eternizar o seu amor através de sonetos, deixando muito claro esse temor do esquecimento, da terra cobrindo o corpo e também o espírito. Também não queremos ser esquecidos pelos nossos amigos e familiares. Quando ouvimos sobre pessoas que são encontradas mortas semanas após a morte, sozinhas, é difícil não sentir uma ponta de tristeza. O esquecimento seria a solidão elevada à enésima potência.

E se isso ocorre com pessoas, pode ocorrer com coisas que geralmente costumam ter uma vida bem mais longa, como riachos, por exemplo. PAJEÚ (2020), de Pedro Diógenes, trata desse riacho. Mas não só. A relação de investigação que a jovem professora de ensino fundamental faz sobre o riacho que foi renegado pela cidade de Fortaleza e transformado em esgoto a céu aberto e reservatório de lixo também tem uma estreita ligação com seus sentimentos mais íntimos, o mal estar que tem consumido seu espírito, tirado seu sono, trazido pesadelos, afastado-a de seus amigos.

Fiquei impressionado e também bastante tocado com este filme que tanto é uma dolorosa reflexão sobre o esquecimento, quanto sobre a relação existente entre a angústia de uma moça frente a algo inexplicável e a falta de conhecimento e respeito de uma cidade diante de um de seus riachos mais importantes, o Pajeú do título, que serviu de base para a construção da cidade.

É possível ampliar essa alegoria para a própria construção do Brasil, desde a colonização até os dias de hoje, com o descaso e o desrespeito com a natureza e o meio-ambiente. Mas o que me tocou particularmente foi quando a protagonista Maristela (Fátima Muniz) começa a fazer essas perguntas sobre o medo de ser esquecido. Isso cala fundo e deixa as pessoas desnorteadas, trazendo seriedade e preocupação para seus rostos, antes sorridentes.

Essas cenas em que ela faz perguntas às pessoas trazem o documentário para a ficção e essa contaminação, em vez de atrapalhar, traz mais verdade à obra que já havia brincado com o fantástico. Há uma espécie de monstro que aparece nas águas poluídas do riacho, como que um fantasma insatisfeito e tentando se comunicar com a protagonista.

Há também um personagem que traz muito carinho para o filme. O amigo próximo de Maristela, Yuri, vivido por Yuri Yamamoto, hoje mais famoso por seu papel em INFERNINHO ( 2018), dirigido por Diogenes em parceria com Guto Parente. Ele é essa representação do afeto e está preocupado com a saúde mental da amiga, que tem evitado socializações. Ainda assim, ele a convence a ir a um karaokê, espaço que surge onírico nas vezes em que é representado. E também espaço de melancolia, especialmente na linda cena final, uma das mais belas do cinema brasileiro recente.

PAJEÚ talvez seja a maior chance de encontrar a voz autoral de Pedro Diogenes, cineasta que quase sempre esteve envolvido em projetos coletivos e talvez por isso tenhamos ficado sem saber o seu grau de importância em filmes como ESTRADA PARA YTHACA (2010), NO LUGAR ERRADO (2011), COM OS PUNHOS CERRADOS (2014), O ÚLTIMO TRAGO (2016) e o já citado INFERNINHO. De uma forma ou de outra, sua contribuição para o engrandecimento do cinema cearense contemporâneo é algo a nos deixar felizes e gratos.

+ TRÊS FILMES

DENTE POR DENTE

Há filmes cuja existência é difícil de entender. No caso de DENTE POR DENTE (2020), de Pedro Abrantes e Júlio Taubkin, já se trata de um filme problemático a partir do roteiro. Mas, como nem todo filme depende de roteiro para se fazer gostar, DENTE POR DENTE tem seus méritos, e é mais um exemplar de filme brasileiro que usa o gênero fantástico para falar de problemas sociais. Nem sempre funciona. Ainda que no cartaz a presença de Paolla Oliveira e Renata Sorrah dê a entender que suas presenças são próximas do protagonismo, não é o que acontece. A câmera segue o tempo todo Juliano Cazarré em uma jornada que lembra a de alguns filmes noir clássicos.

O PROFETA DA FOME

Depois de sua fase mais gloriosa (1964-1969), José Mojica Marins aceitou trabalhar como ator neste filme de Maurice Capovilla, cineasta da turma do Cinema Novo - por isso há um tom de crítica social mais marcadamente característico do movimento. Mas há uma linha mais transgressora, tanto pela escalação de Mojica (inclusive como meio de arrecadar uma bilheteria melhor), quanto por brincar com a chamada "estética da fome". Em O PROFETA DA FOME (1970), o próprio herói, o fakir vivido por Mojica, percebe que a fome é também um negócio. É um filme que pode ser divido em duas partes: a primeira parte, no circo, e a segunda que tem aquela cena memorável com um cantador e que vai levar o protagonista para um outro tipo de circo. Mas a minha cena favorita é uma no circo, com uma plateia ávida para ver uma pessoa comendo gente. Ah, e foi uma boa o Paulo César Pereio ter dublado o Mojica. Ficou ótimo! A voz do Pereio é um dom.

BARÃO OLAVO, O HORRÍVEL

Júlio Bressane brincando com o gênero horror. E "brincar" talvez seja a palavra certa, já que os filmes realizados de maneira rápida neste mesmo ano parecem ter um viés bem descompromissado. Ele já era o intelectual que sabemos que é hoje, e a partir dos filmes posteriores isso se tornaria mais explícito, mas aqui a intenção é talvez se aproximar do cinema de Mojica. Só acho que não consegue, pois a influência da Nouvelle Vague francesa se apresenta de maneira mais forte. A história de BARÃO OLAVO, O HORRÍVEL (1970) não interessa muito, assim como não interessam os atos e as consequências dos personagens, como o próprio Barão, que tem por hábito transar com cadáveres. Até por isso, a parte que eu mais gosto é a mais descontraída, com a Helena Ignez nas ruas brincando com a população. Bonito de ver Ignez com Lilian Lemmertz também.

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