domingo, outubro 30, 2016

ESTRANHOS NO PARAÍSO (Stranger than Paradise)























Acho interessante poder falar de ESTRANHOS NO PARAÍSO (1984), de Jim Jarmusch, como um desses filmes marcantes da aurora da minha cinefilia. Não que eu tivesse tido oportunidade de vê-lo no cinema (na verdade, nem sei ao certo se ele chegou a ser exibido em nosso circuito local), mas ele costumava ser bastante louvado entre a crítica, principalmente da principal revista de cinema da época, a revista SET, lembrando que na virada da década de 80 para 90 a revista era constituída por um time bastante respeitável de críticos.

Aí fui pegar a edição que eu mais gosto, que é a que tem a eleição da crítica para os melhores filmes dos anos 1980, quando 15 críticos da casa votaram e obtiveram no final a vitória de ASAS DO DESEJO, de Wim Wenders. ESTRANHOS NO PARAÍSO nem ficou entre os dez, mas ficou entre os 20. E eu adorava ver as listas individuais. Lá o filme de Jarmusch ficou em terceiro na lista de Antonio Querino Neto e em segundo na lista de Leon Cakoff. Não lembro se já tinha visto o filme na época ou se foi só a partir dessas listas que eu fiquei curioso para vê-lo.

Por isso as duas maiores lembranças de quando eu o vi pela primeira vez, numa daquelas madrugadas na Band, era do meu entusiasmo em estar vendo um filme tão singular, com uma proposta estética diferente de tudo que eu já tinha visto, e dos fade to blacks mais demorados do que o normal, passando uma sensação de estranheza e charme bem próprios. Eu não lembrava mais da história e por isso foi muito bom perceber, agora que o revi na telona, em cópia remasterizada, que ele é muito gostoso e engraçado de ver. Embora tenha algo de incômodo no modo como se comportam os personagens naquele cenário um tanto desolado.

Lendo a crítica presente no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, o texto compara a situação dos três personagens como a de pessoas vivendo em uma espécie de purgatório de onde não conseguem escapar. Mesmo Eva (a ótima Ezter Balint), que é a húngara que chega aos Estados Unidos e se depara com um lugar imerso em tédio, não consegue escapar disso, por mais que ela tente escapar, através de uma atitude mais ativa e mais positiva diante da vida. Ao lado dela, porém, estão dois rapazes imbecis, que mais parecem mortos-vivos, cada um à sua maneira.

O filme pode ser visto como uma crítica ao american way of life, mas acredito que Jarmusch vai além disso. Até em filmes mais recentes o tédio e a falta de sentido na vida aparece em personagens tão distintos quanto o cansado mulherengo vivido por Bill Murray em FLORES PARTIDAS (2005) ou nos vampiros existencialistas de AMANTES ETERNOS (2013). Portanto, o incômodo de estar vivo parece uma tendência no cinema do diretor.

Em ESTRANHOS NO PARAÍSO, porém, há algo que o torna ainda mais único, que é a forma. A forma dá substância ao conteúdo, ao fiapo de trama. O filme é composto de vários planos-sequência filmados em preto e branco granulado, em que a câmera quase nunca sai do lugar. E na maioria das vezes fica confinada em espaços fechados, com os personagens assistindo televisão, principalmente. Mesmo quando eles vão ao cinema, o ar de cansaço ou de frustração com a vida está presente. A não ser pelo olhar bobão do personagem de Richard Edson, melhor amigo do protagonista Willie (John Lurie).

Poderia falar da tendência de alguns filmes mostrarem os personagens masculinos como idiotas, na velha tradição das obras de John Cassavetes – e assim como Cassavetes foi o rei do cinema indie americano nos anos 60-70, poderíamos dizer o mesmo de Jarmusch nos 80-90 –, mas será essa a intenção do diretor? Talvez não. Sentimos no ar um carinho por esses personagens e não um ataque. O ataque pode surgir do julgamento do espectador, o que é natural. Mas isso faz parte da quebra de expectativas que o filme traz em torno de uma história de relacionamentos entre pessoas que se gostam, ainda que à sua maneira.

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