segunda-feira, outubro 27, 2025

CÉU E INFERNO (Tengoku to Jigoku)



“Mas aqui, lenta e inexoravelmente, Kurosawa nos mostra algo completamente diferente. Ele sugere que, a despeito de tudo, o bem e o mal são o mesmo, e que todos os homens são iguais.”
Donald Richie (em Os Filmes de Akira Kurosawa)

Curiosamente, no início de minha cinefilia, eu custei a me encantar pelo cinema japonês. Claro que os primeiros filmes que vi foram de Akira Kurosawa, mas mesmo assim o cineasta não me encantava. E aí eu passei a generalizar, achando que não gostava de cinema japonês. Mas aí comecei a ver uns animes incríveis e pensei: acho que só gosto mesmo dos animes e não dos live-actions. Eis que conheço Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi e as coisas mudam e muito. Passo a vê-los como monstros sagrados do cinema e meu interesse pelo cinema japonês vai crescendo (inclusive na época que os filmes de terror japoneses passaram a se tornar muito populares), mas ainda faltava eu me encantar por Kurosawa. E por mais que eu tenha adorado OS SETE SAMURAIS (1954), só visto recentemente, nada me deixaria preparado para CÉU E INFERNO (1963), um dos melhores filmes que vi na vida. Ou seja, como fui estúpido. Que os deuses do cinema me perdoem.

E tem mais: cheguei a CÉU E INFERNO por causa da existência do remake de Spike Lee, LUTA DE CLASSES, lançado neste ano. Ou seja, precisei ainda de um empurrãozinho de um filme americano para perceber que não tinha visto uma das maiores obras-primas do cinema, que por sua vez foi derivada/inspirada num romance americano de Edward McBain, também conhecido como Evan Hunter, que é como está creditado no filme de Spike Lee. A relação de Kurosawa com o cinema e a literatura americanas sempre foi forte, e por isso havia muitos críticos dele no Japão: o achavam ocidentalizado demais.

Falando em cineasta atraído pelos Estados Unidos, não acredito que tenha sido uma coincidência eu ter visto CÉU E INFERNO num espaço de tempo tão próximo da revisão de PARIS, TEXAS, de Wim Wenders, no cinema. Digo isso, pois a cena de encontro cara a cara dos personagens de Toshiro Mifune e Tsutomo Yamazaki guarda muitas semelhanças com a cena do reencontro de Travis com sua ex-mulher, em especial nos momentos em que, separados por um vidro, o rosto dos dois personagens se une, como duas faces da mesma moeda. (Sobre seus pontos em comum, mesmo antes da prisão do sequestrador, tanto o sequestrador quanto o empresário agora arruinado se veem obrigados a perambular sozinhos pelas ruas. O homem mau por não poder gastar o dinheiro do resgate sob o risco de ser pego pela polícia; o homem bom por não ter mais como trabalhar.)

No caso do filme de Kurosawa, há uma acentuação do aspecto humanista, e do quanto também o diretor estava disposto a frisar aspectos econômico-sociais, a destacar a barreira social gritante da sociedade japonesa do pós-guerra: por mais que Gondo (Mifune) seja um homem rico e que faz uma boa ação que sacrifique todo seu patrimônio e Takeuchi (Yamazaki) seja o pobre que comete o crime e paga com a pena capital, há algo de muito trágico e muito triste na história de Takeuchi, e Kurosawa apresenta isso sem se aprofundar no personagem e em seus dramas. Falando de maneira simplista, um é o herói, ainda que de início seja alguém prestes a cometer um golpe, e o outro é um vilão, o sujeito que não apenas sequestra uma criança, mas também mata pessoas viciadas em drogas para atingir suas metas. Seu ponto de partida para o sequestro: o ódio nascido da diferença de classes. 

A primeira hora do filme se passa quase que completamente na sala da imponente casa de Gondo. E tudo até ali é perfeito e a encenação naquele espaço é excencialmente cinematográfica (apesar de podermos lembrar do teatro), com uma janela scope que mais nos aflige e aprisiona do que amplia os espaços. É uma primeira parte tão boa que até lamentamos um pouco quando ela acaba. Se bem que por primeira parte, diria que ela de fato acaba quando toda a cena do trem, com a negociação com o lugar da entrega do dinheiro ao sequestrador, tem fim.

A partir daí Kurosawa nos apresenta a um novo filme, por assim dizer, ao “inferno”, aos bairros chineses e ao submundo dos traficantes e viciados em heroína. Antes disso, havíamos sido apresentados ao “céu”, ou seja, à casa de Gondo, que depois de ter perdido tudo para o sequestrador, agora se esforça para permanecer na casa. Nesta segunda parte do filme, somos convidados a acompanhar os esforços da polícia, como um ente coletivo, para conseguir de volta o dinheiro do sequestro e prender o sequestrador. A certa altura, o espectador é apresentado ao personagem do criminoso, assim como somos apresentados ao oposto da opulência da casa de Gondo: o que vemos ali é um ambiente habitado por viciados em drogas vivendo em condições sub-humanas.

Também somos brindados com uma cena que acontece numa espécie de danceteria que denuncia os vários anos de dominação americana no pós-guerra, o quanto o Japão ficou ocidentalizado, inclusive no comportamento. A mão de Kurosawa na condução deste thriller é tão acertada que por vezes nos pegamos segurando alguma coisa, como se estivéssemos num carro em movimento. E para chegar até esse resultado, houve ações pensadas de maneira milimétrica, com o uso de muitas câmeras para a cena do trem, com o posicionamento de câmeras que enfatizam o alto e o baixo em diferentes momentos, com a escolha de lugares diferentes para filmar a cena na casa de Gondo. Sinto que o ideal é ver e rever este filme várias e várias vezes.   

Visto no box em BluRay Kurosawa Essencial (a imagem tá tinindo de linda!) e ainda contém diversos extras incríveis, como entrevistas com Kurosawa e um making of que nos faz gostar ainda mais do filme. Se é que isso é possível.

+ TRÊS FILMES

BEATING HEARTS (L’Amour Ouf)

Gilles Lelouch é um cineasta com uma experiência maior na comédia. E talvez isso tenha sido positivo para que BEATING HEARTS (2024), possivelmente seu maior e melhor filme, seja algo menos pesado do que se poderia esperar de uma história de violência e paixão. O filme começa com o personagem de François Civil e seus parceiros de crime enfrentando a morte numa briga de gangues. Esse desfecho do prólogo antecipa a tragédia que veremos nas próximas 2h30, quando voltaremos no tempo e conheceremos os adolescentes Clotaire e Jackie. Ele, um rapaz violento e desinteressado nos estudos; ela, uma garota fã de The Cure e mais centrada. Quando está com ela, o rapaz violento fica doce e passa a ver sentido na vida. Uma pena que depois ele acaba aceitando o convite para entrar na máfia. Os atores mais jovens (Malik Frikah e Mallory Wanecque) funcionam melhor que a versão adulta (Civil e Adèle Exarchopoulos), mas é na versão adulta que eu me peguei mais emocionado, especialmente em duas cenas finais. E principalmente pelo fato de a narrativa lutar contra o fatalismo, ou apresentar uma realidade alternativa e feliz para aqueles personagens, como se um deus que se enamora e tem misericórdia desse casal de amantes. O filme é pulsante, tem muita música e é uma história de amor das mais bonitas do cinema recente.

THE MASTERMIND

Não é o primeiro filme de Kelly Reichardt sobre foras-da-lei. Desde seu primeiro longa, RIVER OF GRASS (1994), que ela já mostrava seu fascínio por histórias de crimes. Mas sua visão do ponto de vista dos criminosos é mais sutil, além de muito humana. Lembro que quando saiu FIRST COW (2019) alguém chegou a dizer que se tratava do mais delicado heist movie já feito. Até porque, ainda que haja um suspense nas cenas do roubo do leite, o foco maior é a relação de amizade e colaboração entre dois homens. No caso de THE MASTERMIND (2025), a diretora opta por focar na decadência do personagem de Josh O’Connor, um homem casado e com dois filhos pequenos, filho de um juiz, que tem a ideia de roubar quatro quadros de um museu de arte. Para tal, contrata três colegas com pouca experiência no ramo e o resultado já deixa claro o amadorismo do grupo. A narrativa tem um andamento que faz lembrar tanto o cinema da Nova Hollywood (destaque para a fotografia que remete à época) quanto o filme noir francês, tão envolvente quanto lento, para os padrões do cinema de gênero de Hollywood, ainda que atraente o suficiente para agradar plateias maiores do que o filme possivelmente alcançará. Sorte de quem o vir. Saindo longe da vulgaridade, Reichardt nos apresenta a novos heróis fracassados.

O BRILHO DO DIAMANTE SECRETO (Reflect dans un Diamant Mort)

Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada, a de ver O BRILHO DO DIAMANTE SECRETO (2025), quarto longa-metragem do casal Hélène Catet e Bruno Forzani, na telona. Eles têm se especializado em fazer um trabalho de homenagem aos filmes de gênero europeus das décadas de 1960/70, mas com pouco interesse na trama e muito interesse na construção de imagens incríveis. Logo, é embarcar na viagem sem precisar entender muito e ser feliz, com tanto diamante/vidro estilhaçado, ângulos de câmera inusitados, violência gráfica exacerbada e por isso mesmo pouco agressiva, e temos Fabio Testi encabeçando o elenco. Ele que fez vários westerns spaghetti e protagonizou um dos meus gialli favoritos, O QUE VOCÊS FIZERAM COM SOLANGE?, de Massimo Dellamano. Mas a maior homenagem aqui é a PERIGO: DIABOLIK, de Mario Bava, que por sua vez é adaptação do quadrinho Diabolik. Aqui o que seria o personagem Diabolik é uma mulher e se chama Serpentik, adversária misteriosa de um espião, que agora vive aposentado, mas relembrando seu passado. Mas isso é ficção ou é um filme? Ficção e realidade se confundem deliciosamente na nossa cabeça. Cena favorita: Serpentik entra num bar e enfrenta um grupo de homens. Trata-se de uma cena que até poderia se comparar com as de KILL BILL, mas é ainda mais inventiva em seus detalhes. O que falta no casal belga em construir cenas de ação perfeitamente coreografadas, sobra em saber usar a montagem a seu favor.

domingo, outubro 12, 2025

A LEI DOS MARGINAIS (Underworld U.S.A.)



A minha peregrinação pela obra de Samuel Fuller está em ritmo muito mais lento do que gostaria. Poderia até dizer que é que sua obra não me traz o mesmo impacto de outras peregrinações recentes, como foi o caso de Abel Ferrara, Fritz Lang e Brian De Palma, para citar aprofundamentos nas obras de diretores iniciadas de 2020 para cá, ma a verdade é que hoje entendo por que Fuller é tão querido pelos críticos: porque ele se torna mais fascinante à medida que pensamos nele, em seus filmes, em seus personagens trágicos. Mas sei também que os tempos são outros e que também tem me faltado tempo para escrever. E sei também que estou vivendo um dos melhores momentos de minha vida, e por isso não posso reclamar. Vamos seguindo, agora iniciando os filmes dos anos 1960 de Fuller, com A LEI DOS MARGINAIS (1961), um filme que, confesso, não foi dos que mais me envolveram.

Curioso como Fuller seguia seu próprio caminho nas décadas em que mais trabalhou: as de 1950 e 60. Nos anos 1950, ele poderia estar fazendo filmes semelhantes aos noir produzidos em grande escala, mas acabou fazendo apenas ANJO DO MAL (1953). Até podemos classificar CASA DE BAMBU (1955) e O QUIMONO ESCARLATE (1959) também nessa categoria, mas eles fazem parte daquele fascínio do diretor pelo mundo asiático.

A LEI DOS MARGINAIS chega num momento em que o film noir já é considerado morto pelos historiadores, e antecipa o filme policial mais sujo que estaria mais presente no cinema da Nova Hollywood. É uma história de vingança que começa de maneira muito simples, mas que vai se tornando mais intrincada quando o personagem de Cliff Robertson sai da prisão para se vingar do pai, assassinado pela máfia. E eu confesso que comecei a perder um pouco o gosto nesses momentos do filme: as intrigas que o personagem cria para fazer com que seus inimigos matem a si mesmos.

O que mais me pegou no filme foi uma cena em que o interesse amoroso do personagem (Dolores Dorn) pede ao protagonista em casamento. Nesse momento, o sangue sobe de raiva no espectador (subiu em mim, ao menos), mas é aí que vemos o quanto essa personagem é herdeira das heroínas do cineasta, lembrando Jean Peters em ANJO DO MAL, Shirley Yamaguchi em CASA DE BAMBU, Barbara Stanwyck em DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957) e principalmente Andie Dickinson em NO UMBRAL DA CHINA (1957), um de seus filmes mais devastadores, especialmente quando pensamos na personagem feminina. Também há uma cena de fazer suar frio em A LEI DOS MARGINAIS: a do atropelamento de uma criança. Nos extras do box O Cinema de Samuel Fuller há um entusiasmado comentário de Martin Scorsese sobre o filme e um pouco sobre o diretor também. Quem tiver de posse dessa mídia física, vale muito conferir.

Um livro que tenho acompanhado ao longo dessa peregrinação pela obra de Fuller é Samuel Fuller, de Phil Hardy, que acredito estar fora de catálogo, mas é possível encontrar em cópias em PDF. É uma dessas cópias que tenho lido. E acho interessante a classificação que o autor fez das obras do cineasta, dividindo por temas: “um sonho americano”, “jornalismo e estilo”, “uma realidade americana”, “Ásia” e “a violência do amor”. Claro que esses temas podem e se interrelacionam entre si e A LEI DOS MARGINAIS é enquadrado no tema “uma realidade americana”, assim como outros vistos, como BAIONETAS CALADAS (1951), TORMENTA SOB OS MARES (1954), PROIBIDO! (1959) e outros dois que pretendo ver e/ou rever: MORTOS QUE CAMINHAM (1962) e PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963).

Na trama de A LEI DOS MARGINAIS, o herói, de modo a se vingar do pai, assassinado pela máfia, faz jogo duplo entre o FBI e a máfia. Ele não tem uma ética de bem e mal, não tem interesse em fazer o bem, porque acha que os mafiosos são um mal para a sociedade, mas por pura vontade de satisfazer o seu ímpeto de vingança, de fazer valer seu ódio acumulado de anos. Ainda assim, ele salva Dolores, a leva para casa, mas não a vê como alguém que seja boa o suficiente para casar com ele. Pelo menos, não a princípio, não quando ele percebe sua própria estupidez, sua própria imbecilidade. Seu interesse em salvar Dolores está mais associado em conseguir alguém para dedurar os mafiosos e conseguir mais informações, e isso fica explícito na cena de sexo entre os dois, quando ele a seduz enquanto a questiona. O fim do herói não é um fim tão heroico assim, no fim das contas, mas ao menos ele havia alcançado algo próximo de uma honradez.

+ TRÊS FILMES

CLOUD – NUVEM DE VINGANÇA (Kuraudo)

Décimo filme de Kiyoshi Kurosawa que vejo e fico feliz que de vez em quando o nosso circuito abre uma brecha para um ou outro filme seu. CLOUD – NUVEM DE VINGANÇA (2024) foi um dos três que ele dirigiu no ano passado. Aos 70 anos de idade, Kurosawa está com uma energia de menino de 20. Este novo filme é bem surpreendente. Não tinha lido nada a respeito, mas esperava um horror sobrenatural. E ele começa mais ou menos assim, com uma das cenas mais assustadoras do cinema de gênero contemporâneo. Mas depois o filme vai se transformando em outra coisa, não parando de nos surpreender. Na trama, Yoshii é um jovem que decide largar o emprego para se dedicar a comprar e revender coisas. Sua maior diversão é olhar a tela do computador e perceber que teve o tino para o negócio, que seu lucro foi imediato. Yoshii não se importa se a bolsa que compra é de grife ou falsificada; se está passando por cima de colecionadores apaixonados de uma boneca para oferecer mais e vender com um preço bem mais caro. Até que as coisas começam a complicar para ele e ele passa a ser perseguido. Uma das graças do filme é nos fazer ficar do lado, ou talvez torcendo, ainda que o verbo não seja bem esse, por alguém que na verdade é o grande vilão. Inclusive, uma das coisas que não me fez amar o filme foi o aspecto pouco sutil com que Kurosawa ataca o capitalismo. Mas é, sim, um belo filme e um herdeiro de PULSE (2001), seu melhor trabalho (entre os que vi), não pelo caráter sobrenatural, mas pelo interesse pelo mundo virtual.

ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS (Ernest Cole: Lost & Found)

Diferente de EU NÃO SOU SEU NEGRO (2016), um filme carregado de muita raiva (e com toda a razão), ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS (2024) é carregado de muita melancolia por parte do diretor Raoul Peck. E de certa forma isso é totalmente coerente com o espírito do personagem, pelo menos em sua trajetória de solidão e despatriação, quando sai de uma África do Sul vivendo seus mais brutais e covardes momentos do Apartheid, para viver nos Estados Unidos. Em seu país, ele criou um rico trabalho fotográfico que denuncia as violências cotidianas sofridas pela população negra – casas destruídas, assassinatos durante protestos, ofensas gratuitas nas ruas, além do que já se sabe sobre o regime, o de separação total de espaços e de humilhação e desamparo de quem não é “europeu”. Um dos momentos mais tristes do filme é quando Cole compara a violência na África do Sul e nos Estados Unidos, especialmente no sul, como o Mississipi: em seu país, ele tinha medo de ser preso; nos Estados Unidos, ele temia levar um tiro. Ou seja, a “terra da liberdade” tão propalada não era bem assim para os negros. O documentário é composto de fotos de Cole e narrado com texto seu, complementado com texto escrito por Peck. Os poucos depoimentos são fundamentais para a conclusão do filme.

O APRENDIZ

Uma pena eu não ter visto O APRENDIZ (2024), de Ali Abbasi, quando foi exibido (rapidamente) nos cinemas no ano passado. Mas poder ver na telinha não perdeu sua força, não. É de fato um filme incrível, um retrato da criação de um monstro. Se o jovem Donald Trump (Sebastian Stan) aprendeu as regras do jogo que ditam seu jeito de viver e de governar e desgovernar até hoje com o advogado inescrupuloso vivido por um assombroso Jeremy Strong, o monstro que esse advogado cria é até difícil de descrever com palavras. A trama do filme se passa principalmente nos anos 1970 e 80, quando Trump ainda era um rapaz fascinado pela vida dos milionários e vivia de cobrar de porta em porta o aluguel dos imóveis do pai. Conhecer Roy Cohn muda sua maneira de pensar e agir e aumenta sua ambição. Com a ajuda das trapaças e do jogo sujo do advogado, ele alcança uma riqueza ainda mais impressionante se pensarmos como era a Nova York nos anos 1970, bastante decadente. Algumas cenas memoráveis: a lição inicial de Cohn, a festa regada a sexo e drogas, a negociação sobre o casamento com Ivana Trump (Maria Bakalova), o encontro com o advogado doente, as duas cenas em paralelo que dizem muito de quem é Trump: um sujeito incapaz de ver a vida além da superficialidade do corpo e da acumulação de dinheiro. Todos os atores envolvidos estão incríveis, mas Strong e Stan estão monstruosos de tão bons.

sábado, outubro 11, 2025

O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM (The Last American Virgin)



Ando tendo interesse em rever certos filmes vistos em meu período pré-cinefilia, quando eu não sabia quem era o diretor do quê, ou ainda não tinha feito minha escolha em me dedicar mais ao cinema. Naquela época, a Globo e o SBT disputavam a audiência do público, e, consultando na internet, vi que O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM (1982) foi exibido pela primeira vez no SBT em novembro de 1988 no Cinema em Casa, poucos meses antes de meu ano oficial como cinéfilo.

Nessa época, esses filmes eram comentados na sala de aula e entre os amigos do bairro no dia seguinte. Havia um efeito muito maior de grande audiência, já que até o videocassete ainda não era tão popular assim em certas camadas da sociedade. Eu mesmo só compraria o meu tocador e gravador de fitas em 1992, com o dinheiro das primeiras férias da CABEC, a primeira empresa que trabalhei com carteira assinada – na época que vi o filme na TV, eu era bolsista do Banco do Nordeste (então BNB) e ainda estudante do ensino médio.

Essas comédias mais picantes começaram a ser veiculadas na televisão e faziam muito sucesso, por razões óbvias. Não é que o acesso à pornografia fosse tão difícil assim – as bancas de revistas ofereciam até que muitas opções, sem falar que certas revistas acabavam caindo em nossas mãos através dos amigos do bairo –, mas não havia essa facilidade que a era da internet trouxe, e, antes, que as locadoras de vídeos traziam. Além do mais, nessa época eu era menor de idade e não podia entrar ainda nos cinemas adultos, por assim dizer. Por isso, quando a televisão trazia opções nesse terreno era uma festa. 

Falo isso, mas O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM está muito longe de ser pornografia. Ainda mais visto em retrospecto. Mas era, sim, um estimulante para quem estava com vontade de ver erotismo nas telas e, principalmente, para quem estava com os hormônios “tinindo”. E havia todo um apelo para os mais espectadores mais jovens, que poderiam se identificar mais com histórias protagonizadas por personagens em idade escolar.

O filme dirigido pelo israelense Boaz Davidson hoje é um pequeno clássico que marcou a minha geração por seu apelo erótico e pelas diversas cenas ainda muito engraçadas, mas também, e eu diria, principalmente, por seu final, devastador. Nesse sentido, O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM seria o oposto de A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN, realizado três anos depois, tanto por ter uma produção mais modesta, quanto pela vontade de parecer mais duro e realista ao mostrar o protagonista apaixonado quebrando a cara, vendo uma chance de finalmente conquistar sua amada e depois ver ser sonhos naufragarem. (Não sei o quanto o filme contribuiu para meu pessimismo quanto à realização de um namoro bem-sucedido, mas acho que não.)

Enquadra-se numa série de “pornochanchadas” americanas produzidas na era pré-AIDS, e que hoje não são mais feitas em Hollywood. O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM é também um documento do início dos anos 1980, com direito a uma trilha sonora que traz U2, The Commodores, Devo, The Police, Blondie e tantos outros nomes famosos da música. Inclusive, a faixa "Oh No", dos Commodores, combina bem com a pedrada levada pelo rapaz.

A primeira terça parte do filme o coloca entre os mais divertidos títulos da década, com destaque para a cena do encontro dos três rapazes com as três meninas na lanchonete; em seguida, dos três com a promessa de sexo com uma fogosa mulher latina; e, por fim, a cena dos três transando com uma prostituta barata, que culminaria com outras cenas divertidas envolvendo o chato contraído na relação sexual sem camisinha. O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM oferece o mel e o fel. E tem mais: para quem é um fã de David Lynch e de TWIN PEAKS, podemos ver Kimmy Robertson já antecipando seu papel de loirinha tonta – na série de Lynch e Frost ela é a secretária do xerife. (Algo me diz que Lynch gostou desse filme.)

Na trama, Lawrence Monoson é Gary, um jovem entregador de pizza e estudante secundarista que se apaixona por Karen (Diane Franklin). É paixão à primeira vista. Mas acontece que quem chega junto primeiro é o amigo conquistador de Gary, o loiro Rick (Steve Antin), o que deixa Gary arrasado. Tanto que ele tenta impedir a noite em que Rick vai (supostamente) tirar a virgindade de Karen, o que acaba acontecendo de uma forma ou de outra. Em paralelo, os dois, mais o amigo gordinho (e sempre o que pagava as contas) David (Joe Rubbo) se encontram para aventuras com as meninas.

Revi o filme recentemente com a Giselle, na noite em que estreamos nosso “cinema em casa” em nosso apartamento, após (re)vermos A ESPIÃ, de Paul Verhoeven. E, no dia seguinte, quando comentei brevemente sobre o filme no Facebook (e depois no Letterboxd), acabei sabendo de amigos (especialmente do Rodrigo Pereira) muitas informações curiosas a respeito, como o fato de que a clássica comédia é na verdade uma refilmagem de SORVETE DE LIMÃO (1978), do mesmo diretor israelense, e escolhido pelo país para representar Israel na corrida pelo Oscar de filme estrangeiro. Conforme informado, os dois filmes, a produção israelense e sua refilmagem americana, são muito parecidos em sua condução narrativa, apesar de haver as diferenças óbvias de geografia, tempo e cultura.

O filme israelense fez tanto sucesso que gerou sete sequências, sempre com os mesmos atores, e esses filmes eram possíveis de ser encontrados nas locadoras brasileiras, que os vendiam com títulos roubados de sucessos americanos. Um deles até chegou a ser lançado nas locadoras como O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM 2.

+ TRÊS FILMES

O BOM MARIDO

Não sou dos maiores conhecedores da obra de Antônio Calmon, mas, sem saber que era dele por muitos anos, fui fã de ARMAÇÃO ILIMITADA (1985-1988), série da Globo que embalou minha adolescência e me fez ser admirador da Andrea Beltrão até os dias de hoje. Quanto a seu trabalho no cinema, gosto muito de seus dramas criminais EU MATEI LÚCIO FLÁVIO e TERROR E ÊXTASE, ambos de 1979. Um ano antes Calmon fez essa comédia aparentemente despretensiosa, O BOM MARIDO (1978), que nem parece ter um roteiro, de tão debochada que é. Ela está entre as “pornochanchadas” cujas cenas aparecerem no documentário HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA, de Fernanda Pessoa. O sempre incrível Paulo César Peréio é o sujeito que quer ganhar dinheiro com um empresário alemão fabricante de pinicos, usando sua esposa (Maria Lúcia Dahl) como meio de fechar o negócio: a ideia era deixar com que a própria esposa fizesse sexo com o gringo. Mas as coisas começam a dar errado quando o tal alemão resolve usar um atalho para chegar à casa de Petrópolis do negociante brasileiro e quando os empregados resolvem fazer uma festa sem a presença do patrão. O resultado é uma zona muito da divertida, rendendo muitas risadas. O filme pode ser dividido em duas partes, bastante perceptíveis, sendo que a segunda talvez até tenha gags mais eficientes e inspiradas, quando o casal agora tem por alvo um velho milionário japonês bem-dotado. A cena da sauna é impagável, assim com as cenas de sexo ao som de David Bowie e do Sidney Magal. E mais: tem uma cena de intimidade ao som de “Let Me Roll It”, do Paul McCartney. Deu até vontade de soltar um “chupa, Paul Thomas Anderson”! No mais, o filme funciona como um documentário comportamental da sociedade brasileira da época, e feito num momento em que as comédias não tinham medo de parecerem de mau gosto: havia tanto a necessidade de diálogo com o público de todas as classes sociais, quanto um interesse em debochar do país que até já havia passado do tal “milagre econômico” e vivia em situação economicamente mais difícil. A própria questão do penico é um indicador de crítica ao governo. Algumas cenas até pouco importantes são incríveis no quanto se apresentam representativas da sociedade da época e falam muito a quem esteve vivo naquele período, como quando o casal Peréio/Dahl chega a um bar para fazer um telefonema. Só acho que o filme começa a ficar menos interessante perto do final, mas não quer dizer que não seja uma comédia brasileira essencial.

AMORES À PARTE (Splitsville)

Dakota Johnson está num ano muito bom, com duas comédias que tratam sobre relacionamentos, mas as duas são completamente distintas em tom e estrutura. Este AMORES À PARTE (2025) é mais (deliciosamente) caótico que AMORES MATERIALISTAS, de Celine Song. E que bom ver que a atriz anda valorizando diretores com uma carreira iniciante, quase desconhecida, como é o caso de Michael Angelo Covino, que faz o papel do marido rico da personagem de Dakota. Covino só tem no currículo mais um outro longa, A SUBIDA (2019), e mais uns curtas. No longa anterior ele também faz parceria com Kyle Marvin, muito provavelmente um de seus grandes amigos também na vida real. Lembremos que um dos melhores filmes protagonizados por Dakota é CHA CHA REAL SMOOTH – O PRÓXIMO PASSO, de Cooper Raiff, diretor independente de comédias agridoces. Aqui ela entra mais uma vez no território do cinema indie, com um diretor que filma pensando na tela grande: há muitos planos gerais e planos que privilegiam espaços maiores que os corpos de seus personagens. Mas é dentro de um carro que o filme começa: quando o personagem de Marvin leva um fora de sua namorada, vivida pela revelação do momento Adria Arjona (a femme fatale de ASSASSINO POR ACASO). Marvin é o grande protagonista deste filme: a história gira em torno dele, seja na dor de cotovelo sofrida por uma jovem mulher que tem o anseio de experimentar mais e mais parceiros, seja pela esposa do melhor amigo (Dakota), uma mulher tão calma quanto sensual, num papel de certa forma recorrente da atriz, mas que continua funcionando bem em suas pequenas variações. AMORES À PARTE tem uma estrutura em capítulos e um gosto pela bagunça que arranca risadas, ao mesmo tempo que faz lembrar um certo espírito dos anos 1970, com a questão do número grande de parceiros e o tema do relacionamento aberto vindo à tona. Mas é também um filme que valoriza os sentimentos, a dor de seus personagens, que sofrem muito, mas nem sempre se comportam como se estivessem lidando com a dor da perda do ser amado. Quanto à nudez, as coisas se inverteram nos últimos tempos: sai a nudez feminina, mais comum em comédias do passado, e entra a nudez masculina. Há cenas que arrancam muitas gargalhadas, como a dos peixes na montanha russa, ou a da briga dos dois homens após uma noite de sexo com a mulher de um deles. Acho os últimos capítulos menos interessantes do que os dois terços iniciais, mas é um filme com muita personalidade e é mesmo um dos mais engraçados do ano, como diz o cartaz.

DOIS É DEMAIS EM ORLANDO

O filme de Rodrigo Van Der Put deve muito à graça de Eduardo Sterblitch, que aqui faz um rapaz que está prestes a entrar de férias e realizar sua viagem dos sonhos, nos parques da Disney, em Orlando. Ele tem uma cabeça de criança num corpo de adulto. Por outro lado, o menino vivido por Pedro Burgarelli demonstra um espírito de adulto desde a primeira cena, recusando-se a entrar na piscina com seus colegas de educação física e tratando a professora como parceira, enquanto assume a função de fotógrafo do campeonato. Os dois personagens de DOIS É DEMAIS EM ORLANDO (2024) têm algo em comum: não têm amigos e preferem estar sós. Por isso quando o destino os coloca juntos no hotel e nos parques, enquanto os pais do menino estão ocupados, surge um conflito, mas sabemos também que surgirá daí uma bela amizade. E o filme desenvolve com muita leveza as situações, desde a confusão com um dentista metido à besta, passando pelos pânicos que cada um deles manifesta dentro dos parques, até a dificuldade de encontrar o pai do garoto e a preocupação com o emprego. Diversão despretensiosa cujo resultado final fica acima das expectativas.