terça-feira, julho 25, 2017

EU MATEI LÚCIO FLÁVIO

Quem achou LÚCIO FLÁVIO - O PASSAGEIRO DA AGONIA, de Hector Babenco, um filme sangrento, precisa pensar duas vezes ao ver esta espécie de espelho quebrado chamado EU MATEI LÚCIO FLÁVIO (1979), dirigido por Antônio Calmon e estrelado e produzido por um dos sujeitos mais importantes do cinema brasileiro, Jece Valadão, aqui brincando com sua persona de homem viril, conquistador, malandro e pronto pra briga.

Mariel Mariscott de Matos, o lendário personagem protagonizado por Valadão é um homem que acredita estar do lado da lei. Desde o início, ele aparece como salva-vidas em uma praia. O filme faz questão de mostrar não só seus feitos heroicos, como também de pintá-lo como alguém merecedor de todas as glórias, alguém que se olha no espelho e se acha o tal. Se não o filme em si, mas a narrativa.

Há uma cena em que vemos Mariel fazendo sexo com a mãe de um menino que ele salva (Maria Lúcia Dahl), ao som de "Divina comédia humana", de Belchior. A cena, por mais que pareça deslocada ou em tom de sonho, não é nada perto das tantas situações inacreditáveis que vemos ao longo da narrativa por vezes truncada de EU MATEI LÚCIO FLÁVIO.

Não demora para que Mariel fique famoso e seja convidado para integrar a polícia. E naquele momento de ditadura militar, o lema "bandido bom é bandido morto" era mesmo levado a sério. Tanto que não há problema nenhum quando o protagonista elimina qualquer criminoso, como na antológica cena da farmácia, que conta com uma cena em que uma mulher, uma jovem Maria Zilda, é estuprada com um revólver.

Esse cinema de direita estava na moda nos anos 1970. Clint Eastwood fazia sucesso como o detetive Dirty Harry em PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL e suas continuações e Charles Bronson personificava a figura do vigilante como ninguém em DESEJO DE MATAR e suas demais continuações, consideradas por alguns como espetáculo trash.

O que vemos em EU MATEI LÚCIO FLÁVIO não é muito diferente do que fizeram esses astros e/ou diretores americanos. Apenas há uma consciência mais explícita do tipo de dramaturgia menos realista, do senso de humor todo especial, da violência que explode por todos os lados e das condições bem menos privilegiadas de fazer cinema no Brasil, e de viver no Brasil também. Percebe-se a influência dos filmes e das séries americanas, mas àquela altura o cinema brasileiro podia fazer muito bem o seu próprio exploitation de crime.

Incomoda um bocado as cenas de Valadão com várias mulheres, de vez em quando. Elas parecem não ter outra função a não ser enfatizar a masculinidade de Mariel. Na trama, fica confuso saber quem é quem. A personagem feminina que interessa é a prostituta e viciada em drogas vivida por Monique Lafond. Aliás, algumas das melhores cenas do filme envolvem o encontro dos dois. Talvez por isso Calmon tenha optado por deixar as demais personagens femininas sempre à margem, quase insignificantes.

E até agora nem falamos de Lúcio Flávio, embora sua participação seja importante para dar uma conclusão à história. Diferente de MATEI JESSE JAMES, de Samuel Fuller, se é que é possível comparar os dois, o filme de Calmon não apresenta uma morte covarde. O que temos aqui é um jogo aberto, uma guerra entre dois adversários que estão, inclusive, na mesma prisão. E o impressionante é o quanto, a essa altura, o filme já tenha incomodado bastante no quesito violência. O que EU MATEI LÚCIO FLÁVIO faz com "Lady Laura", de Roberto Carlos, no modo como ele a contextualiza na história, é quase um pecado. Se bem que Júlio Bressane já havia feito algo até mais perturbador ao som de uma canção do Rei em MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA dez anos antes. Viva a liberdade!

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