Em PALÁCIO DE VÊNUS (1980), de Ody Fraga, um dos vários filmes mostrados em HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA, um velho cliente de um bordel pergunta a uma jovem profissional do sexo vestida de colegial o que mais lhe interessa nas histórias. A garota logo responde, em tom desavergonhado: "as sacanagens".
Eis o ponto de partida deste jogo em que a sensualidade e a liberdade sexual do cinema daquele período dão o tom neste trabalho da cineasta Fernanda Pessoa, em que são discutidos política e comportamento no Brasil dos anos 1970.
Logo em seguida, como que apresentando o "elenco", vemos títulos de alguns dos filmes que serão vistos no projeto. Quem conhece pelo menos um pouco desse cinema já fica salivando. Quem não conhece, fica intrigado e interessado em conhecer. Ou pelo menos deveria.
O fato de esses filmes terem sido realizados durante o regime militar é um prato cheio para as cenas que brincam com a perseguição ao comunismo ou com qualquer ideia contrária à do regime instituído. A Copa do Mundo de 1970 e certos ufanismos servem para mostrar a complexidade deste país cheio de contradições. Quantos sentimentos emanam da cena em que um grupo de jovens canta "Eu Te Amo, Meu Brasil", em DEZENOVE MULHERES E UM HOMEM (1977), de David Cardoso?
Mas o mais interessante, além de ver as cenas que mostram o espírito festivo, galhofeiro e malandro do brasileiro, é perceber como o filme vai se costurando bem em eixos temáticos, às vezes inteligentemente mudados a partir de uma simples fala. Assim, entre os temas, há a mistura de classes sociais, a tortura, o abuso do corpo da mulher, o uso da maconha, a maior visibilidade dos grupos gays, a chegada da discotheque, o divórcio, o aborto, a economia, a agitação feminista, as greves e o início da discussão sobre a anistia aos presos políticos.
Tudo isso visto através de filmes considerados por muitos como menores ou vulgares, mas prontos a serem melhor apreciados ou descobertos. É cinema que se alimenta de cinema e que não tem interesse em ser didático, mas de mostrar uma sociedade de outrora que dialoga com essa em que estamos vivendo.
Texto publicado originalmente no jornal O Povo, de 3 de setembro de 2018. Edição de uma versão maior, publicada na revista Movimento #1.
+ TRÊS FILMES
DUAS ESTRANHAS MULHERES
O primeiro segmento, Diana, é o melhor e mais instigante. Além do mais, Patricia Scalvi é sempre um espetáculo. Aqui ela é uma mulher que fica confusa com a dupla personalidade do marido. Baita história. A segunda história apela mais para a nudez gratuita, mas isso não é nada ruim. E há o surrealismo da trama, que é interessante. John Doo tem o seu carisma também. Direção: Jair Correia. Ano: 1981.
FELIZ ANO VELHO
É um filme sobre a perda, mas é impressionante como a maior perda que eu sinto vendo este filme nem é a perda da mobilidade do protagonista, devido a um acidente, mas a perda do amor de sua vida. E sendo este amor vivido por Malu Mader, esse peso se torna ainda maior. Malu era talvez a mais bela atriz brasileira dos anos 80. E sem precisar se esforçar em nada. As cenas em que ele briga com ela e rompe o relacionamento são muito mais dilacerantes que qualquer cena do acidente. Direção: Roberto Gervitz. Ano: 1987.
STELINHA
Finalmente, depois de anos e anos, consegui ver o famoso STELINHA, premiado em um tempo de vacas magras para o cinema brasileiro. O filme tem uma elegância que briga com a carência de recursos daquela virada de década. A história da cantora decadente que encontra um rapaz jovem e se apaixona é triste e um tanto desoladora. Roteiro ótimo do Rubem Fonseca, direção de arte simples e bonita, interpretações muito boas, direção do feria Faria Jr. Só não gostei das partes musicais. Ainda assim, um belo filme. Direção: Miguel Faria Jr. Ano: 1990.
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