sábado, maio 17, 2025

TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE (All the President's Men)



No início de minha cinefilia, uma das sessões que mais me deu prazer foi a de ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA (1990), no saudoso Cine Fortaleza. Lembro que fiquei encantado com o clima do filme, com o tom da fotografia, com o aspecto mais adulto do enredo. Inclusive, é um filme que seria interessante rever. Na época, acho que já sabia dos filmes de paranoia e política que o diretor Alan J. Pakula havia realizado na década de 1970. Havia visto A TRAMA (1974) na televisão, mas até hoje não vi KLUTE – O PASSADO CONDENA (1971), apesar de seu cartaz tão atraente. E só agora há pouco terminei de ver TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE (1976), de um BluRay da Warner que meu amigo Zezão havia me emprestado há séculos e acho que deve até ter se esquecido.

Senti vontade de ver finalmente o filme ao ouvir por esses dias um episódio antigo do Podcast Filmes Clássicos (um achado, esse podcast!), sem medo de spoilers ou coisa do tipo. E meu retorno ao filme neste momento (retorno, pois cheguei a comer a vê-lo meses atrás, ou anos) foi ótimo pois pude perceber com mais atenção certos detalhes, seja a fotografia do "Príncipe das Trevas" Gordon Willis, que valoriza tanto a escuridão quanto a profundidade de campo na redação do jornal, sejam as interpretações magistrais de Robert Redford e Dustin Hoffman (principalmente Hoffman, com seu estilo mais elétrico). É também admirável a montagem, de Robert L. Wolfe, parceiro de Sam Peckinpah, e que em TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE consegue fazer com que um filme que se passa num jornal consiga ganhar ares de suspense intenso, graças a cortes espertos e escolhas muito inventivas.

O grau de verdade que eles passam para a história é incrível e vendo os extras sobre os bastidores da produção, tudo fica ainda mais impressionante. O idealizador do projeto é Robert Redford, que leu o livro e ficou interessado em fazer um filme protagonizado não pelas pessoas que trabalharam com Richard Nixon e foram implicadas, mas com o próprio ofício, com a investigação dos dois. Assim, Redford e Hoffman passaram um tempo junto com os verdadeiros jornalistas de modo a ficarem mais parecidos com eles. Houve também todo um interesse em fazer o mais próximo possível de uma rotina de um jornal, muito diferente do que Hollywood até então mostrara. Alan J. Pakula foi escolha de Redford, ele entraria depois da escolha dos atores. Foi escolhido por seu estilo mais clássico. E também, muito provavelmente por seus dois thrillers de paranoia que fizeram história.

Ficar um bocado perdido com tantos nomes e tantas conexões que os jornalistas ligam faz parte dessa sensação de estar buscando uma agulha num palheiro. É fascinante ver como era aquele mundo pré-internet, com dados tendo que ser buscados em cada pequeno documento, como cartões de biblioteca, em cada declaração pessoal sequer dita com todas as palavras por testemunhas temerosas de denunciar o maior escândalo da história da política americana, o que levou Richard Nixon a renunciar. Achei também interessante mostrar os dois repórteres investigadores como homens solteiros totalmente devotados a seu ofício, quase não dormindo, com tanta coisa para ser investigada, tantas peças para montar um quebra-cabeças que demora até a fazer sentido quando a narrativa vai chegando a princípio para o editor-chefe do jornal, vivido por Jason Robards.

TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE foi indicado ao Oscar de melhor filme no mesmo ano de TAXI DRIVER, de Martin Scorsese, REDE DE INTRIGAS, de Sidney Lumet, ROCKY, UM LUTADOR, de John G. Avildsen, e ESTA TERRA É MINHA TERRA, de Hal Ashby. Foi um ano incrível. O filme de Pakula e Redford ganhou em quatro categorias: melhor ator coadjuvante para Jason Robards, melhor roteiro adaptado para William Goldman, melhor direção de arte e melhor edição de som. Inclusive, como vi em som DTS-HD, fiquei impressionado com esse trabalho em especial.

+ TRÊS FILMES

VITÓRIA

Fernanda Montenegro está maravilhosa como uma senhora idosa e muito frágil que ousa filmar os crimes acontecendo na janela de seu apartamento, uma vez que ninguém parece querer fazer nada a respeito (dos tiroteios, do tráfico de drogas, das crianças pegando em armas). Quando até a polícia é corrupta, o que fazer? Embora tenha gostado do resultado, fiquei me perguntando como seria se Breno Silveira tivesse conseguido tocar o projeto. A morte precoce de um diretor tão sensível é muito triste. Mas Andrucha Waddington faz, sim, um belo trabalho em VITÓRIA (2025), sabendo colocar a câmera nos locais certos para nos deixar em estado de aflição até numa simples passagem para o outro lado da rua da personagem de Fernandona. Mas a cena que mais me tocou acontece no final, depois que a protagonista passa por todo o sufoco e abraça a amiga vivida por Linn da Quebrada. Que lindo que é aquela cena. Alan Rocha, como o repórter investigativo, também está muito bem. Parece ser um personagem saído dos filmes americanos de jornalismo. E falo isso como um elogio.

OSTENDE

É difícil ver TRENQUE LAUQUEN (2022) e não ficar interessado na filmografia pregressa de Laura Citarella. E vendo os títulos que ela já realizou, este OSTENDE (2011) foi o que mais me chamou a atenção: primeiramente por também trazer Laura Paredes, certamente uma das melhores atrizes da Argentina e provavelmente da América Latina, e depois por também ser uma história ambientada numa cidade pequena e com um plot de suspense, mas aquele tipo de suspense mais cheio de poros, de respiros, mas com uma clara influência de Hitchcock, em especial de JANELA INDISCRETA. Na trama, Paredes é uma jovem mulher que espera o namorado num hotel à beira-mar e enquanto isso percebe o comportamento estranho de certos hóspedes, principalmente de um homem velho que está junto a duas mulheres mais jovens. Destaco pelo menos duas cenas: uma em que a protagonista está em seu quarto e ouve barulhos estranhos no quarto ao lado, e outra, em que ela persegue o velho e uma das mulheres, com a câmera fazendo um jogo interessantíssimo de foco e desfoco. Há um momento também especialmente incômodo, mas acredito que é proposital, que é a do longo monólogo do atendente da lanchonete e sua ideia para um filme. Citarella economiza na trilha sonora, o que confere ao filme até um mistério maior, e utiliza a música de forma pontual e acertada. OSTENDE não está no mesmo nível de TRENQUE LAUQUEN, mas é bem possível que a obra-prima da realizadora não existisse se não fosse a experiência dela com este trabalho de 2011.

QUEM A VIU MORRER? (Chi L'ha Vista Morire?)

Dos dois gialli de Aldo Lado este segue um padrão mais próximo do estabelecido nos anos de ouro do subgênero. E talvez por isso eu ainda prefira A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO (1971), seu trabalho anterior, bem mais inventivo e original, da estrutura à premissa. Este tem também o seu charme e há uma semelhança com a trama de INVERNO DE SANGUE EM VENEZA, de Nicolas Roeg, que só seria lançado no ano seguinte. Nos extras do box Giallo Vol. 8 há um comentário muito interessado de um crítico americano em que ele faz um rápido mas muito curioso paralelo entre os dois filmes. Em QUEM A VIU MORRER? (1972), George Lazenby é um escultor divorciado cuja filha pequena vai visitá-lo em Veneza. Logo essa menina será vitima do mesmo assassino (ou assassina) de crianças que mata uma menina no prólogo. O fato de ser um assassino com roupas de mulher acaba lembrando PSICOSE, e o filme vai seguindo uma linha natural de deixar pistas e personagens para imaginarmos quem é o assassino. Diferente do filme de Roeg, este não é exatamente um filme sobre luto: há um gosto maior pelo gênero, pela fixação nas mortes e no mistério e na construção cênica do que nos sentimentos dos personagens, ou mesmo no terror em si. A personagem de Anita Strindberg (NO QUARTO ESCURO DE SATÃ) é bem subaproveitada, quase como se não soubessem o que fazer com ela.

domingo, maio 04, 2025

PROIBIDO! (Verboten!)



“At the most basic level, Fuller’s films revolve around the themes of war and marriage, reciprocity of hate and reciprocity of love”.
Peter Wollen em
Samuel Fuller (editado por David Will e Peter Wollen)

Curioso que só agora, lendo esse trecho acima do livro-ensaio de Wollen sobre Samuel Fuller, que comecei a perceber o quanto o casamento também é um tema caro ao cineasta. No caso de PROIBIDO! (1959), isso fica mais evidente. Afinal, a trama é sobre um soldado americano que, durante um tiroteio na Alemanha ainda não vencida pelos aliados, se abriga numa casa e é salvo por uma mulher alemã, por quem se apaixona e deseja se casar, apesar de todo o tabu existente entre relacionamentos entre americanos e alemães na época. A opinião geral é que todo alemão seria necessariamente um nazista. Outros filmes de Fuller que tratam do casamento de forma mais explícita: O BARÃO AVENTUREIRO (1950), CASA DE BAMBU (1955), NO UMBRAL DA CHINA (1957) e RENEGANDO O MEU SANGUE (1957).

O que chama a atenção logo de cara em PROIBIDO! é que se trata de um filme de guerra de Fuller que se passa na guerra que ele próprio lutou, a Segunda Guerra: em seus trabalhos de guerra anteriores, ele optou por lidar com outros conflitos, como a Guerra da Coreia (CAPACETE DE AÇO e BAIONETAS CALADAS, 1951), da Indochina (NO UMBRAL DA CHINA), a guerra fria dentro de um submarino (TORMENTA SOB OS MARES, 1954) ou a situação de um país dominado por outro no pós-guerra, retratado no excelente CASA DE BAMBU (1955).

Assim, temos agora Fuller, que por mais que tenha feito muitos filmes de guerra era contrário à política armamentista americana e considerava a guerra uma espécie de insanidade organizada, falando sobre um tema que o distanciaria um pouco das acusações de ser um fascista. A história se passa nos dias finais da guerra, e depois no período de ocupação americana na Alemanha, quando líderes da resistência nazista ainda tentaram fazer um grupo para incitar um novo levante, a organização Werwolf. De certa forma, acaba sendo mais confortável para Fuller lidar com essa relação entre americanos e alemães do que lidar com o comunismo ou com a simpatia a um soldado confederado, como é o caso de RENEGANDO MEU SANGUE.

A primeira trama de PROIBIDO! gira em torno do relacionamento entre um soldado (e depois ex-soldado) americano com uma mulher alemã, o que era algo considerado "verboten", ou seja, proibido. Para os americanos, aquela mulher só queria se aproveitar das boas condições do jovem americano, não seria um relacionamento nascido do amor. E em determinado momento também passamos a pensar assim também, o que é curioso pois tira o filme de uma aparente simplicidade de abordar uma paixão proibida. Tanto que depois essa questão é deixada de lado na segunda metade do filme, mais focada na política e nesse grupo de neonazistas.

Gosto de como Fuller utiliza cenas reais enxertadas em seu filme, dando tanto um ar de realismo e um tom documental, quanto deixa claro a produção modesta do filme, já que Fuller havia deixado a Fox e também age como produtor aqui. PROIBIDO! é menos virtuoso do que DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957), seu trabalho anterior, mas tem uma cara muito própria. Além do mais, PROIBIDO! é um dos primeiros filmes a tratar do Julgamento de Nuremberg, inclusive trazendo imagens de arquivo do próprio julgamento e dos campos de concentração nazistas.

+ TRÊS FILMES

ANTÔNIO BANDEIRA – O POETA DAS CORES

Um caso de filme que adota uma estrutura tradicional de documentário e que por isso fica refém de seu conteúdo. E acaba fazendo com que gostar ou não dependa de nosso interesse por artes plásticas, pela história do artista ou até mesmo pelo contexto histórico em que seu drama acontece. Eu não conhecia Antonio Bandeira de ouvir falar; muito por minha ignorância em pintura, e por isso o filme preenche uma boa lacuna. Mas ANTÔNIO BANDEIRA – O POETA DAS CORES (2024), de Joe Pimentel, chega a incomodar um pouco o excesso de tom laudatório em torno do artista, como se fosse um vídeo institucional. Gosto das partes em que vemos (ouvimos, melhor dizendo) sobre sua chegada na França do imediato pós-guerra, assim como acho curioso seu trabalho artístico, ainda que não tenha simpatizado muito com os textos do artista, talvez por serem muito conscientes de sua grandeza.

SEM CHÃO (No Other Land)

Eu diria que SEM CHÃO (2024), do coletivo formado por Yuval Abraham, Basel Adra e Hamdan Ballal, é mais um filme necessário do que exatamente bom em seus aspectos formais e artísticos. E é necessário não apenas por mostrar as atrocidades que o Estado genocida de Israel faz com o povo palestino, mas por trazer visibilidade quando há tão pouca. Não adianta os telejornais falarem de guerra quando o que existe nem é uma guerra, mas um extermínio cruel. O filme vencedor do Oscar de melhor documentário (e isso sim foi bom para dar visibilidade ao trabalho) nem chegou a mostrar o horror dos últimos anos em Gaza, já que o que é apresentado é de filmagens até 2023 e em um território de nome Masafer Yatta, que consiste num habitado (ou que era habitado) por vilarejos palestinos. Ao lado deles, alguns colonos israelenses do outro lado de uma cerca, vendo e depois "participando" do massacre de famílias, que são primeiro desprovidas de casa e depois de outras necessidades básicas. SEM CHÃO pode até não mudar a realidade do que está acontecendo, mas pode ajudar a somar ao tanto de indignação que já existe diante de tanta desumanidade.

AS CORES E AMORES DE LORE

Acho que os momentos que mais me interessaram em AS CORES E AMORES DE LORE (2024) foram aqueles em que a pintora Eleonore Koch, em entrevista ao diretor Jorge Bodanzky, busca, como numa sessão de terapia, encontrar respostas nem sempre fáceis para as perguntas, como por exemplo, a escolha por não ter casado ou suas confidências sobre os amores da juventude ou da vida anterior à velhice. Gostei mais da vida do que da arte, a pintura em si, embora ter explorado esse aspecto também seja fundamental, já que a pintura foi a razão de viver da mulher. Também gosto de como Bodanzky faz um cruzamento da vida de Koch com a vida de sua mãe, que foram contemporâneas e viveram na Alemanha, sendo que ambas tiveram que fugir e se exilar no Brasil por causa da caça aos judeus pelos nazistas. É um filme que parece incompleto, que demorou tanto a ser feito que é como uma pintura cujo artista resolve finalizar depois de muito olhar para ela, muito mexer nela. O que não quer dizer que não tenha um bom epílogo.

sábado, maio 03, 2025

THUNDERBOLTS*



Os anos 2000 foram gloriosos para a Marvel. Até porque a editora vinha de uma quase falência e se reergueu quando passada para mãos que souberam muito bem o que fazer. Da equipe criativa, o grande nome da companhia que fez acontecer foi Brian Michael Bendis, que comandou os títulos dos Novos Vingadores, do Demolidor, da Jessica Jones (Alias) e do Homem-Aranha Ultimate, além de comandar sagas que foram geralmente mal-aproveitadas no cinema e na televisão, como Invasão Secreta, Dinastia M, Guerra Civil e Reinado Sombrio.

As ideias para os Vingadores que ele teve para os dois títulos dos maiores super-heróis da Terra, que funcionavam como eixo para os demais títulos, inclusive do Capitão América de Ed Brubaker e o Thor e o Homem-Aranha, ambos de Straczynski, entre outros, foram as mais utilizadas nos filmes dos estúdios Marvel. E continuam sendo, conforme pudemos atestar neste THUNDERBOLTS* (2025), assinado por um nome pouco conhecido, Jake Schreier, de CIDADES DE PAPEL (2015). 

E que bom que desta vez a Marvel acertou, e justo quando menos esperávamos algo minimamente interessante, depois do horrível resultado de CAPITÃO AMÉRICA – ADMIRÁVEL MUNDO NOVO, o filme que daria um restart nessa parada estratégica da companhia. O último resultado realmente positivo havia sido com GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, dirigido pelo cara que foi para a Distinta Concorrência. Agora o chefe de criação do estúdio precisou repensar muita coisa depois de ter pisado no freio e arriscou, quem diria, um filme sobre depressão. O que é algo que vai na direção contrária do tom geralmente mais engraçadinho do Universo Cinematográfico Marvel.

Não que não haja momentos para fazer rir, mas eles são eclipsados pela dor dos personagens, por seus traumas, que chegam, inclusive, a uma mente não muito saudável, que é de um personagem muito importante dos quadrinhos da Marvel dos anos 2000, e que aparece de maneira criativa em THUNDERBOLTS*. Como tenho percebido nas críticas que muitos estão evitando dizer quem é o personagem, então, vou tentar evitar algum spoiler, mas posso adiantar que, para quem gosta do personagem, e de como ele também veio de uma ideia genial de Bendis para os Vingadores, embora não tenha sido uma criação sua, o resultado no filme é muito satisfatório.

Não acredito que a escolha do diretor para o filme tenha sido pensando em sua obra pregressa. É possível que a Marvel tenha desistido de queimar muitos autores que são tolhidos de suas obsessões em prol de um filme para a indústria e em vez disso optam por uma pessoa que dê conta do recado, sendo comandado pelas rédeas dos produtores. Talvez o que conte mais seja o roteiro, que conta com a presença de Kurt Busiek, grande mestre das HQs, de obras como a longeva Astrocity e a marcante minissérie Marvels. Ou seja, é a Marvel do cinema precisando se render ao talento dos roteiristas dos quadrinhos até no resultado para o cinema.

Afinal, a fonte pode secar se as mais novas histórias da Marvel (dos quadrinhos) não se tornarem tão atraentes e boas quanto foram nos anos 2000, que ainda é, como pode se ver neste filme, a maior inspiração para a criação desses filmes – para os anos 2010, a Marvel ainda pode beber na fonte de quadrinhos do Surfista Prateado, do Imortal Hulk e do Gavião Arqueiro, se forem espertos o suficiente.

As cenas de ação de THUNDERBOLTS* são boas e não apelam para a montagem picotada, valorizando as cenas de combate corporal. Porém, os diálogos não ficam muito atrás: na verdade, eles são a base de sustentação do filme, são de onde saem as aflições de Yelena Belova, John Walker e do personagem de Lewis Pullman, entre outros. Ao que parece, filmes como os da franquia John Wick têm mostrado que aquele estilo de ação picotada não está mais sendo apreciada pelos espectadores, que querem assistir as lutas. Nesse sentido, Florence Pugh está mandando muito bem, assim como Sebastian Stan e Wyatt Russell.

Esses atores, inclusive, além do já citado Lewis Pullman, que faz o Bob, conferem um tipo de “realidade” que é muito bem-vindo a um subgênero de filme geralmente escapista. Não que você saia do cinema deprimido, como se sai com BATMAN, de Matt Reeves, esse sim um filme depressivo: THUNDERBOLTS* estaria mais naquele meio termo, em que somos lembrados dos demônios interiores, que nos arrastam para lugares terríveis da mente e até para a morte, em casos crônicos, mas que há no ar algo de doce. E está aí a força deste filme aparentemente mais modesto da Marvel: saber lidar com os tormentos da vida real, transferindo-os para personagens de um mundo colorido. Em certo momento, temos a impressão de estarmos vendo um filme de horror.

Eis um filme bem resolvido, bem orquestrado e que funciona tanto como obra à parte quanto mais um tijolinho nesse universo que a Marvel/Disney insiste em manter de pé. E com razão, se julgarmos o hype em torno de QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS, que vem aí em julho. E por falar nisso, não deixe de ficar até a última cena pós-créditos.

+ TRÊS FILMES

UNTIL DAWN – NOITE DE TERROR (Until Dawn)

Que bom que David F. Sandberg voltou para o terror depois de ter dirigido dois filmes do SHAZAM!, (2019, 2023). Ele ainda não é um diretor que tem um grande filme no currículo, mas curiosamente ele tem se especializado, por assim dizer, em adaptações ou continuações ou prequels. Casos de QUANDO AS LUZES SE APAGAM (2016) e ANNABELLE 2 – A CRIAÇÃO DO MAL (2017). Até considero o filme da boneca diabólica seu trabalho mais elegante e eficiente. Mas UNTIL DAWN – NOITE DE TERROR (2025) é bem interessante. Aproveita a ideia do game da Playstation e constrói uma espécie de slasher com uma história de loop temporal. Ou seja, desde o início já me ganha, e até os personagens são bem-desenvolvidos, até onde se pode desenvolver dentro de uma narrativa rápida, embora irregular. Sandberg sabe fazer uma boa conclusão, quando a repetição do loop começava a cansar. Gostei muito da scream queen Ella Rubin, que apareceu discretamente em ANORA. É uma moça que tem presença de cena e que deve ter um belo futuro.

A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (La Plus Précieuse des Marchandises)

O mais bacana de A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (2024), de Michel Hazanavicius, é que é um filme que talvez não funcionasse tão bem se não fosse apresentado assim, em animação, e usando um tipo de traço muito próprio, que enfatiza tanto o tom fabular quanto as imersões na realidade brutal, especialmente quando nos mostra imagens do holocausto. Desde o começo, o tom fabular se destaca, com a bebê surgindo para ser criada pela esposa do lenhador, que demoraria um tanto para aceitar a criança. Depois ficamos sabendo do contexto histórico em que a criança é judia, e portanto odiada pela população daquele vilarejo. Como a a história se passa durante a Segunda Guerra, é possível perceber que o antissemitismo já havia se instalado nas mentes daquelas pessoas. Gosto da conclusão, de como se reflete sobre a natureza verídica ou mítica de certas histórias.

BRUXAS (Witches)

Meu maior interesse pelo documentário BRUXAS (2024), de Elizabeth Sankey, foi pelo passeio pelas (belas) imagens de filmes que mostram a representação de mulheres como bruxas ao longo de várias décadas de cinema (e um pouco até da televisão). Tanto que quando o filme fica mais quadrado e foca na experiência da diretora com depressão pós-parto, a narrativa trava um pouco, perde um bocado da força, por mais que muitas das histórias e depoimentos sejam bem impactantes. De todo modo, gosto de como a terceira parte volta a se conectar com as bruxas e faz isso de maneira muito inteligente, e nos faz perceber o quanto o fato de haver uma alta taxa de suicídio de mulheres no Reino Unido pode estar associado a um passado de séculos de queima e suicídio de mulheres, de perda do papel da mulher como curandeira, enfermeira, parteira e detentora de conhecimentos milagrosos, a partir da chegada dos médicos homens profissionais, na transição do mundo medieval para o período moderno. Quanto às imagens apresentadas, sempre bom quando aparece um filme do Bava, ou uma relação com O MÁGICO DE OZ e outros tantos filmes, principalmente de horror e de fantasia.