sábado, fevereiro 08, 2025

A ESTRADA PERDIDA (Lost Highway)



Os significados de A ESTRADA PERDIDA (1997), ou pistas para o que veríamos a seguir, já começam nos empolgantes créditos de abertura, que mostram a imagem de uma estrada escura, um carro trafegando por essa estrada em que só é possível ver cerca de um metro adiante; todo o resto está envolto em escuridão. A canção que toca durante os créditos é “Deranged”, de David Bowie. As primeiras palavras da inspirada canção dizem: “Funny how secrets travel”, ou seja, “engraçado como os segredos viajam”. Mais à frente, o eu lírico diz que está “deranged”, louco.

Se a pessoa que sai da sessão do filme não sai louco, geralmente sai completamente desnorteado, mas também imensamente maravilhado com o salto que David Lynch dá em sua filmografia, por mais que só alguns episódios de TWIN PEAKS (1990-1991) ou de TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER (1992) já fossem imensos como cinema e como uma imersão em universos muito estranhos, mas não deslocados de sentimentos reais. E é por isso que eu amo tanto Lynch: ele é um cineasta que fala de paixões, de desejos, de falhas humanas, de tentativas de vencer, mesmo que através do esquecimento, os maiores pecados e as grandes desgraças das vidas de seus heróis.

Não me recordo se cheguei a rever por completo A ESTRADA PERDIDA depois da única vez que tive a honra (e o impacto gigantesco) de vê-lo no cinema, no dia 31.12.1997, numa mostra de melhores do ano organizada pelo Cinema de Arte, no hoje extinto Studio Beira-Mar. Não acreditei naquilo que estava vendo. Era Lynch sendo ainda mais Lynch, transgredindo mais e trazendo a noção de sonho para dentro de sua narrativa de maneira muito mais perturbadora e inquietante. 

A ESTRADA PERDIDA é uma espécie de filme de terror noir, talvez até mais angustiante que CIDADE DOS SONHOS (2001), sua obra-prima maior e filme-irmão, no sentido de que a nova vida que o protagonista (Bill Pullman) ganha após assassinar a esposa é tão confusa e atormentada quanto a que ele já levara, por mais que coisas aparentemente boas apareçam pelo caminho, como seu sucesso com as mulheres e o encontro com uma femme fatale extraordinária, uma loira vivida por Patricia Arquette, aqui em papel duplo.

Isso porque, diferente do filme de 2001, não temos o gostinho do novo amor nascendo. Além do mais, em CIDADE DOS SONHOS já começamos a história pela vida feliz da protagonista e de como ela conhece um grande amor. Já em A ESTRADA PERDIDA, quando uma Patricia Arquette loira diz "Você nunca me terá", depois da cena de sexo no deserto, aquilo representa bem mais do que apenas um fora: trata-se da realidade que fere como faca, da mulher da sua vida que foi morta e não mais voltará. Se CIDADE DOS SONHOS une o horror à tragédia, usando também o registro melodramático, aqui ele traz um tom mais seco para o destino de Fred Madison/Pete Dayton. Além do mais, A ESTRADA talvez seja mais enigmático, porque a vida de Pete Dayton parece mais real. Quando o saxofonista vivido por Bill Pullman sai de cena e se transforma no jovem mecânico de automóveis encarnado por Balthazar Getty, esse novo mundo é tão real quanto o anterior. Tanto que esses dois mundos se interconectam de forma mais concreta.

O uso de homenagens explícitas à obra-prima de Robert Aldrich A MORTE NUM BEIJO, é uma sacada e tanto. É como se Lynch pegasse emprestado o mundo criado por Aldrich e moldasse à sua poética, tornando tudo ainda mais sombrio. Lendo o texto de Heitor Romero para o livro Neo-Noir – Filmes Essenciais, da Versátil, foi que percebi o quanto o filme do Lynch também é devedor de uma dobradinha de clássicos de Fritz Lang, que vi em 2020: UM RETRATO DE MULHER e ALMAS PERVERSAS, filmes com o mesmo elenco principal, mas com uma distribuição de funções, por assim dizer.

Claramente também lembramos de UM CORPO QUE CAI, de Alfred Hitchcock, pela mudança da cor do cabelo da atriz: sai a morena do início, com seus segredos, mas aparentemente mais inocente, e entra em cena uma femme fatale quase típica. O próprio Lynch já havia usado essa homenagem a UM CORPO QUE CAI em atrizes interpretando personagens distintas em TWIN PEAKS, quando Sheryl Lee surge como a prima de Laura Palmer em determinado episódio. Outra comparação hitchcockiana que faço é com PSICOSE, já que aqui também temos a “morte” do protagonista com cerca de 30 minutos de projeção. E assim como aconteceu comigo durante muito tempo com PSICOSE, a lembrança das cenas de A ESTRADA PERDIDA era muito maior até o momento da transformação na penitenciária.

Quero destacar mais uma vez um fato, que eu já devo ter mencionado aqui antes: David Lynch é um dos poucos diretores que me faze sentir medo. Na revisão, já estava preparado, mas da primeira vez que vi o filme no cinema, a imagem de Robert Blake, com aquela maquiagem branca no rosto me deu muito medo. Ele é o chamado “homem misterioso”, o personagem mais enigmático da trama e que ainda utiliza uma câmera para filmar sua vítima. Na cena em que ele diz estar na casa de Madison, há uma cena em que o saxofonista adentra a escuridão da casa e depois dali ele sai modificado. Então, a princípio, é como se o homem misterioso fosse uma espécie de demônio, mas depois ele mais parece uma personificação do inconsciente.

Rever A ESTRADA PERDIDA foi importante também para que eu percebesse, mais uma vez, o quanto a revisão é importante. Sei que é muito bom nos apegarmos ao primeiro momento em que conhecemos a obra, sem falar que ver no cinema é outra coisa, e infelizmente ninguém de Fortaleza ainda quis trazer a cópia remasterizada para exibição local, mas é essencial rever e perceber mais detalhes, ter mais insights, notar mais obsessões do realizador do "fogo que caminha comigo", que infelizmente se foi mais cedo do que talvez iria, por causa justamente do fogo que tomou conta de Los Angeles no mês passado.

+ TRÊS FILMES

SEVEN – OS SETE CRIMES CAPITAIS (Se7en)

Lembro que na época que vi SEVEN – OS SETE CRIMES CAPITAIS (1995), de David Fincher, pela primeira vez no cinema, cerca de 30 anos atrás (e como o tempo voa, hein), já havia me incomodado bastante com o filme, com o roteiro meio bobo desse assassino que mata as pessoas homenageando os pecados capitais, mas, agora alçado à categoria de clássico, e eu apreciando bem mais o cinema de Fincher, entendi que não gosto do roteiro, das falas, da tentativa de trazer emoção nos momentos mais tensos, da ênfase desnecessária às emoções quase infantis do personagem de Brad Pitt. Do que eu gosto é das imagens, de como Morgan Freeman é sempre ótimo, mesmo com roteiro mais ou menos, e daquela ótima cena de ação, de caça ao assassino no prédio e depois nas ruas, com aquela chuva que parece nunca parar de molhar a cidade. Felizmente Fincher evoluiu no gênero policial, vide seus ótimos episódios de MINDHUNTER (2017-19). Além do mais, o mais recente O ASSASSINO (2023) prova que ele manda bem demais com ação e personagens frios.

UM HOMEM DIFERENTE (A Different Man)

É facilmente perceptível uma divisão do filme em lado A e lado B. Gosto muito do lado A e era aquele tom de ficção científica retrô que havia me ganhado. Inclusive, havia ali uma espécie de paralelismo fácil com A SUBSTÂNCIA. Ambos os filmes oferecem soluções quase milagrosas para determinado problema (o envelhecimento ali, uma deformidade física aqui). Com a entrada em cena do personagem Oswald, UM HOMEM DIFERENTE (2024), de Aaron Schimberg, se transforma noutro filme, mais complexo, talvez, mais reflexivo, mas não necessariamente mais atraente. Não gostei tanto desse afastamento do filme de gênero, mas acho interessante o senso de humor tortuoso por que passa o personagem de Sebastian Stan, de como a narrativa envereda por um tipo de ironia curiosa.

TIPOS DE GENTILEZA (Kinds of Kindness)

Quando conheci o cinema de Yorgos Lanthimos, ficava ainda com o pé atrás em saber se aquilo que estava vendo era de bom gosto, se era grande cinema, ou, como muita gente costuma afirmar, é perda de tempo ou algo do tipo. Foi assim com DENTE CANINO (2009) e com O LAGOSTA (2015), mas, a partir de O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO (2017), com o quanto este filme me fez sentir medo e, consequentemente, respeito, seu cinema passou a ser visto por mim como um dos mais interessantes da atualidade. Tanto que festejei quando o exuberante POBRES CRIATURAS (2023) saiu com o Leão de Ouro em Veneza, mesmo sem ter visto o filme. Assim como festejei o Oscar para a incrível Emma Stone, que retorna como uma das intérpretes principais de TIPOS DE GENTILEZA (2024), que funciona como uma espécie de presente para os fãs do diretor, já que é como se fosse três filmes em um, em suas quase três horas de duração, que passam sem a gente sentir. Pode ser irregular, como praticamente todo filme em segmentos é, mas posso dizer que gostei das três histórias e do quanto cada uma delas é envolvente à sua maneira. O diretor soube, por exemplo, deixar a história menos fácil de acompanhar por último, uma escolha acertada. O elemento em comum das três é um homem chamado R.M.F. Na primeira história ele é a vítima de uma batida de trânsito. Jesse Plemons é "contratado" pelo seu chefe (Willem Dafoe, sem medo de parecer visualmente ridículo) e também uma espécie de amante dominador para matar aquele homem, simulando um acidente. As três histórias tratam de abuso. Na primeira, Plemons se deixa ser dominado por aquele homem mais velho, que manda até no que ele come e lê ou se ele deve ou não fazer sexo com a esposa. Esse é talvez o mais envolvente dos três segmentos. É uma história de amor doentia. Mas o segundo não fica muito atrás quanto à capacidade de nos envolver, lembrando até um episódio do ALÉM DA IMAGINAÇÃO. Neste, Plemons sofre com o desaparecimento de sua esposa (Emma Stone), mas quando ela reaparece, ele começa a perceber certas coisas. Entre as coisas de que mais gostei no terceiro episódio foi o quanto ele é mais enigmático (e violento) e talvez o que mais se aproxima dos filmes gregos de Lanthimos. Aqui temos uma busca por uma espécie de santa capaz de operar milagres inimagináveis e há também uma seita chefiada pelo personagem de Dafoe. Este terceiro segmento foi o que mais me chamou a atenção para os aspectos formais do filme, do quanto o diretor tem cuidado para tornar cada imagem uma pintura, como no momento em que Stone está na casa do ex e toda a paleta de cores fica próxima do marrom. Foi aí que eu percebi que uma revisão de TIPOS DE GENTILEZA, prestando mais atenção na fotografia, também seja uma boa. Até porque este filme, assim como quase todos os trabalhos do diretor, possuem um tipo de humor muito próprio, muito bem-vindo e sombrio. No mais, além do trio Stone-Dafoe-Plemons, o filme ainda conta com a presença ótima de Margaret Qualley, que havia aparecido em POBRES CRIATURAS, mas num papel pequeno.