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Não podia deixar de escrever com um pouco mais de reflexão sobre este que foi um dos filmes que mais me pegou neste ano. Foi meu primeiro contato com este clássico moderno, relançado nos cinemas em cópia remasterizada. Posso lamentar não ter visto muito antes, já que é obra essencial de nosso cinema, mas também posso festejar o fato de ter visto nesta cópia linda, restaurada, e numa sala de cinema de projeção gloriosa, a sala 2 do Cinema do Dragão.
IRACEMA – UMA TRANSA AMAZÔNICA (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, é uma tijolada, um soco no estômago, um suco de realidade cruel, em que pessoas são vendidas como escravos, mulheres vendem seus corpos por uma mixaria e a crueldade dos poderosos é quase aceita por aqueles que não têm a quem recorrer. Dá para entender porque o governo do Brasil da época censurou a obra, que é incrível ter sido feita. Como foi filmada em 16 mm, talvez isso tenha trazido mais leveza no processo de realização.
Hoje funciona mais ainda como documentário, mas antes era um misto muito bem-sucedido de ficção e documentário, já que as pessoas que fazem parte da trama são as próprias habitantes das regiões amazônicas, inclusive a protagonista, Edna de Cássia, que não tem outro trabalho no currículo além deste marcante papel, de Iracema, em que contracena com Paulo César Pereio, brilhante como sempre, aqui vivendo Tião Brasil Grande, um caminhoneiro que ganha a vida carregando madeira da Amazônia, às vezes madeira que não pode ser vendida a não ser ilegalmente.
Era o Brasil do "ame-o ou deixe-o", o Brasil do "milagre econômico", e numa região que talvez fosse mais esquecida que o próprio Nordeste do país. Um filme inacreditável em vários aspectos. Tião dialoga muito bem hoje com essa classe da elite econômica neoliberal (e bolsonarista), que acredita no discurso individualista, na tal meritrocracia. Em determinada cena, ele, gaúcho, de óculos escuros e mais ou menos bem-arrumado para aquela área do Brasil, fala que só não vence na vida quem não tem cabeça, que a oportunidade existe igualmente para todos. Enquanto isso, as pessoas que carregam madeira para ele são quase todos pretos, quase todos pardos, e todos, certamente, muito pobres.
Quando ouvimos isso da voz de Paulo César Pereio é como se estivéssemos ouvindo num tom de ironia, mas sabemos, ou saberemos com muito mais certeza ao longo do filme, que seu personagem é tão cruel quanto os demais homens brancos que passam por aquela região. Enquanto isso, vemos Iracema como alguém que fica entre uma tentativa de sair daquele lugar, principalmente quando conhece Tião e tenta se segurar nele, e depois quando a vemos em estado de decadência, perto do final, desdentada, desgrenhada. Inclusive, Tião não a reconhece, diz que a conheceu diferente antes. Ela ali, perto da estrada numa casa pobre, junto a outras prostitutas, pedindo dinheiro e bebendo cachaça para talvez esquecer um pouco sua condição.
A Iracema de Bodanzky e Senna seria o oposto da Iracema de José de Alencar. Longe da personagem de aspecto glorioso e de força monumental, a Iracema apresentada aqui é a Iracema do Brasil real, do Brasil escondido dos veículos de comunicação da época, especialmente daqueles que queriam vender a imagem do país com o do crescimento econômico, do “pra frente Brasil”, do país do futuro. Iracema e Edna de Cássia se confundem, se misturam; diferente de Pereio, que faz o elo com a ficção, dada sua persona já estabelecida no cinema.
IRACEMA – UMA TRANSA AMAZÔNICA apareceu na eleição da Abraccine – Associação Brasileira dos Críticos de Cinema na posição de número 22, tendo texto escrito para o livro 100 Melhores Filmes Brasileiros escrito por Cesar Zamberlan. Depois reapareceria na publicação seguinte da Abraccine, Documentário Brasileiro – 100 Filmes Essenciais, na posição de nº 50, com texto de Márcio Sallem. Ambos os textos enfatizam uma indignação com o que é visto na tela, com o que Bodanzky e Senna conseguem extrair dos entrevistados, com o quanto o projeto faraônico da rodovia Transamazônica foi também um projeto de destruição da vegetação e dos povos daquela região, além do roubo de terras, queimadas etc. Iracema seria a representação mais cruel dessa pessoa que, ao migrar para a cidade grande, no caso Belém, e começar uma vida de prostituição, ainda menor de idade, acaba como alguém totalmente à deriva, totalmente despida de dignidade.
+ TRÊS FILMES
A TRANSFORMAÇÃO DE CANUTO
São poucos os filmes que contam histórias indígenas brasileiras que realmente me pegaram. Consigo lembrar de maneira mais forte de EX-PAJÉ, de Luis Bolognesi. Mas gosto de ver que os próprios indígenas estão cada vez mais contando suas histórias, dirigindo seus filmes, fazendo seus roteiros. E como as lendas de nossos povos originários têm um caráter bastante poético, alguns filmes conseguem trazer essa poesia de forma mais enfática, como foi o caso de A FLOR DO BURITI. Este A TRANSFORMAÇÃO DE CANUTO (2023), de Ernesto de Carvalho e Ariel Kuaray Ortega, também é um misto de documentário e ficção, e que faz isso tanto por uma falta de recursos para a construção de um filme inteiramente ficcional, como também para preservar o caráter misterioso da história que se deseja contar, de um homem, Canuto, que teria, segundo a lenda, virado bicho, se transformado numa espécie de onça, décadas atrás, na comunidade Mbyá-Guarani, na fronteira entre Brasil e Argentina. Mais do que a tentativa de se contar a história de Canuto, me chamou muito a atenção as poucas cenas com o avô do personagem de Ariel Kuaray Ortega. De todo modo, não deixa de ser também um alento ver um filme sobre o drama do povo indígena que não foque tanto no genocídio dessas pessoas e no sentimento de impotência que costuma provocar.
SALÃO DE BAILE
Eu não sou exatamente uma pessoa ligada à dança. Quando vou ao Cinema do Dragão e há um grupo de pessoas vendo performances de hip hop, por exemplo, não me animo muito a ver. Assim, quando começou SALÃO DE BAILE (2024), achei que não ia gostar, achei que seria desinteressante. Mas que nada: o que vemos é um universo tão próprio, tão diferente do que estou acostumado a ver, que Juru e Vitã, que assinam a direção, percebendo a necessidade de fazer um trabalho didático para um público maior, fazem isso com muita propriedade e muito amor. Fiquei sabendo com o filme sobre a cena Ballroom, sobre a dança voguing, que nasceu muito antes de Madonna criar seu hit, e do quanto essa cena tem crescido no Brasil nos últimos 10 anos (ou mais). O foco de SALÃO DE BAILE é o Rio de Janeiro e suas adjacências, em especial as comunidades mais pobres. Além do mais o Ballroom é um fenômeno mais ligado às pessoas pretas, e por isso duplamente um instrumento de resistência e de autoconfiança com o próprio corpo, já que é um espaço para as pessoas LGBTQIAPN+. Daí o uso de tratamentos enaltecedores para cada pessoa que se apresenta nas batalhas. Excelente montagem, personagens cativantes e que poderiam render spin-offs, por assim dizer. Enfim, um filme que merece ser mais visto.
PESSOAL DO CEARÁ – LADO A LADO B
A música cearense em seu auge, ocorrido na década de 1970, há tempos precisava de um longa-metragem que procurasse trazer à tona tanto sua glória quanto seus problemas. E o filme de Nirton Venancio nos apresenta a esse momento de efervescência cultural na capital cearense, que trouxe nomes como Fagner, Belchior, Ednardo, Amelinha, Rodger Rogério, Fausto Nilo, Téti, entre outros. O filme tem uma estrutura tradicional de documentários, mas há detalhes em cada depoimento que chama a atenção, como o desforcar e em seguida o focar no LP do Pessoal do Ceará, na mesa de trabalho de Fausto Nilo, um dos principais narradores dessa história, bem costurada. Um dos méritos de Nirton foi o de conseguir trazer peso semelhante para cada pessoa do grupo, sem enfatizar tanto Belchior, que virou um mito antes mesmo de morrer, ou Fagner, que foi o que alcançou maior sucesso comercial. Ou seja, se for para saber mais sobre esses dois artistas, que se veja outro filme, ou leia mais a respeito deles em outras fontes. O filme tem a intenção de tratar do grupo, ou do não-grupo, já que não havia uma coesão entre os artistas. Até porque todos eles tiveram suas próprias histórias de vida difíceis. PESSOAL DO CEARÁ – LADO A LADO B (2024) foi exibido em caráter de teste de público, mas é bem possível que nada seja mudado quando de seu lançamento em circuito neste ano. O resultado final é um filme que tanto provoca interesse àqueles que não conhecem tanto os artistas, quanto traz alegria e saudosismo a quem os conheceu. Além do mais, certos depoimentos expõem o lado cruel da indústria fonográfica no Brasil, mas principalmente certo tom de desencanto da maior parte das pessoas que participaram desse momento tão especial da música popular brasileira.
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