sábado, agosto 10, 2024

ARMADILHA (Trap)



Quem diria. ARMADILHA (2024) já é o 16º longa-metragem de M. Night Shyamalan. O cineasta que ainda tem como auge de popularidade um filme do século passado, O SEXTO SENTIDO (1999), e que começou a aumentar a quantidade de haters a partir mais ou menos de A VILA (2004) e A DAMA NA ÁGUA (2006), ao mesmo tempo que foi conquistando defensores e fãs mais ardorosos justamente nesse momento, começou a ser mais benquisto por uma parcela maior de espectadores desde A VISITA (2015). Shyamalan também fez uma carreira muito interessante na televisão, sendo voz fundamental em obras como WAYWARD PINES (2015-2016) e SERVANT (2019-2023).

Aliás, SERVANT tem tudo a ver com este novo filme. Pois foi nesta série que o cineasta deu espaço a sua filha Ishana Night Shyamalan, que havia trabalhado como assistente de direção do pai em TEMPO (2021), dirigiu seis episódios da série, alguns dos melhores e mais bem cuidados no uso de câmera e direção de arte, e estreou no cinema como diretora de longa-metragem este ano com OS OBSERVADORES, filme que a maior parte da crítica não curtiu, mas de que gostei muito. Muito mesmo.

Em ARMADILHA, Shyamalan se mostra novamente um paizão, ao dar espaço agora para sua filha mais velha, Saleka Shyamalan, cantora e compositora de música pop/r&b. Para o novo filme do pai, ela compôs 14 canções. Eu, como pouco apreciador da música pop do novo milênio, acho tudo monocromático e sem graça, mas quem tem que dizer se a música é boa ou não é a nova geração, os jovens que estão mais sintonizados com o zeitgeist. Mas o que conta aqui nessa história de pai que faz de tudo pelas filhas, e que pode receber as mesmas reclamações que Francis Ford Coppola recebeu quando escalou Sofia para O PODEROSO CHEFÃO – PARTE III, é que ARMADILHA é também a história de um pai que faz de tudo por sua filha.

O problema é que esse pai é um serial killer. E justamente no dia que ele resolve estar com a jovem adolescente (Ariel Donoghue) no show de seu ídolo, a cantora pop Lady Raven (Saleka Shyamalan), ele se vê preso numa força-tarefa da polícia para prender o “Açougueiro”, como é chamado o assassino que deixa suas vítimas em pedaços usando um cutelo. Inclusive, no momento em que ele está com a filha, uma de suas vítimas estava amarrada num local secreto. Outra coisa que deixa claro neste trabalho de Shyamalan é que ele passa um pouco longe da violência gráfica, embora esbanje na construção de suspense e tensão. Se bem que o diretor não é tão famoso pela violência mesmo. Seu filme mais violento talvez seja BATEM À PORTA (2023).

Nesse sentido (e também na questão da nudez), ele guarda certo distanciamento de Brian De Palma, o cineasta com quem se aproxima em ARMADILHA. Aliás, eu diria que na falta de De Palma, percebo no novo filme de Shyamalan uma aproximação muito grande com o cineasta mais hitchcockiano da Nova Hollywood. Pra começar, a produção conta com três países, o que lembra a fase tardia de De Palma. Além do mais, toda a longa parte que se passa no show pop lembra bastante OLHOS DE SERPENTE, com aquela câmera que perscruta o ambiente, com o olhar nervoso do protagonista vivido por Josh Hartnett, que esteve em DÁLIA NEGRA e que aqui aparece em registro bem diferente.

O assassino tem visões de uma senhora idosa que o assombra, e que mais tarde saberemos ser sua mãe e isso facilmente nos remete a PSICOSE, inclusive na dualidade do personagem, que se divide numa vida dupla de bombeiro e pai de família atencioso e de assassino serial. E assim como o filme de Hitchcock, este aqui é redondinho, uma delícia de assistir, sem parecer ter uma barriga ou um problema eventual de ritmo, que de vez em quando acomete certos filmes de Shyamalan.

O final nos faz pensar no mundo atual, em que a atenção pela família esconde os aspectos sombrios de certas pessoas. Além do mais, há uma ambiguidade e até uma simpatia pelo assassino muito interessante, e que é também uma marca hitchcockiana. (Queria muito saber a opinião de De Palma sobre este filme.)

Uma coisa que me chamou a atenção em ARMADILHA foi a fotografia, que me pareceu bem mais despojada do que na maioria das obras do diretor, que pareciam pinturas filmadas, com um cuidado formal maior na construção do quadro. Talvez desta vez Shyamalan tenha se preocupado mais na criação da atmosfera de suspense e tensão e tenha deixado de lado um pouco a beleza visual que lhe é característica. Mas a gente perdoa, pois é um baita filme, sim. Além do mais, a direção de fotografia é de ninguém menos que o tailandês Sayombhu Mukdeeprom, da obra-prima MEMORIA e do recente RIVAIS, entre outros trabalhos de respeito.  

+ TRÊS FILMES

CLUBE DOS VÂNDALOS (The Bikeriders)

Jeff Nichols tem uma especial atração por personagens brancos e ignorantes do meio-oeste americano. Isso pode ser visto com ainda mais clareza neste CLUBE DOS VÂNDALOS (2023), em que o cineasta se detém em pessoas que têm como estilo de vida andar de motocicleta em grupos, beber e conversar. Para enfatizar o ambiente cheio de testosterona a personagem de Jodie Comer se vê logo de início ameaçada por aquele grupo enorme de homens. Assim, ela vai parar na garupa do rapaz por quem se sente atraída, o mais rebelde do grupo, aquele que nem sequer trabalha, o jovem vivido por Austin Butler, ainda em processo de sair do personagem Elvis, que tanto o marcou. CLUBE DOS VÂNDALOS é também uma espécie de triângulo amoroso mais ou menos sutil, já que o personagem de Butler é também disputado e querido pelo líder do grupo de motoqueiros, vivido por Tom Hardy. O filme me cansou um pouco, menos pela narrativa e mais pelos personagens pouco atraentes intelectualmente. Por outro lado, é possível pensá-lo como um convite à reflexão sobre a violência em crescimento em grupos muito masculinizados e em como isso está ainda bastante entranhado na sociedade. E o que antes era visto como algo rebelde e mais à esquerda nos tempos da contracultura, hoje é visto como algo mais próximo de uma extrema direita.

PLANETA DOS MACACOS – O REINADO (Kingdom of the Planet of the Apes)

Confesso que a saída de Matt Reeves do comando da franquia havia me deixado um pouco desestimulado a ver este novo filme. A direção de PLANETA DOS MACACOS – O REINADO (2024) é de Wes Ball, o sujeito que fez a pouco brilhante franquia MAZE RUNNER (2014-15-18). Mesmo assim, o resultado é bom o suficiente para ficarmos interessados na trama e em seus personagens até o fim. Além do mais, como todo bom filme dessa leva dos macacos, temos aqui uma obra que traz discussões políticas relevantes para o atual momento. A trama, agora sem a presença do excelente protagonista César, se passa vários anos após a sua morte, e novos personagens são apresentados. Um deles é o jovem chimpanzé Noa, que vai ter que passar por uma prova de fogo muito maior do que esperava ao atingir a maioridade. No mundo de Noa, há poucos humanos à vista e a maldade dos demais macacos ainda não havia chegado a sua aldeia. Um dia chega, porém. A jovem personagem feminina, Mae (Freya Allan, vista recentemente em A BRUXA DOS MORTOS – BAGHEAD), tem boa presença de cena, embora não consiga roubar os momentos de Noa e do orangotango Raka. Senti falta de cenas de ação melhores, mas o resultado é um feijão com arroz gostoso.

AS BESTAS

Vendo AS BESTAS (2022), de Rodrigo Sorogoyen, lembrava-me vez por outra de PROPRIEDADE, o ótimo filme de Daniel Bandeira que também é um suspense muito tenso, com forte e complexo comentário social. No filme espanhol vencedor do Goya 2023, temos uma situação ainda mais tensa. Na verdade, é tão fácil se colocar no lugar do personagem de Denis Ménochet (PETER VON KANT) que rapidinho estamos vivendo junto com ele todo o terror que ele vem passando. Na trama, esse homem e sua esposa (Marina Foïs, ENORME) são proprietários de uma pequena fazenda na Galícia. O problema é que eles não são benquistos por certas pessoas da vila, em especial os dois irmãos que são seus vizinhos. Há um cuidado que o filme tem com a construção do medo dentro de espaços abertos que hoje é o melhor exemplo de criação do horror nesse sentido que me vem à mente. Além de muita tensão, o filme é carregado de uma desesperança que pode nos contaminar, caso estejamos um pouco mais fragilizados.

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