segunda-feira, janeiro 31, 2022

SPENCER



Não sou dos maiores fãs de Pablo Larraín. Costumo não gostar de seus filmes, ou de gostar bem menos do que talvez deveria. Falo isso pois, depois de ver SPENCER (2021) fico com a sensação de que deveria olhar com mais carinho para sua obra. Mas isso pode ficar para depois. Vamos nos deter agora neste belíssimo acerto que é esta obra que faz uma bela dobradinha com JACKIE (2016), seu primeiro filme em língua inglesa e com elenco hollywoodiano. No caso de SPENCER, ele poderia ter escolhido apenas atores ingleses. Colocar Kristen Stewart, uma americana nascida em Los Angeles, como a Princesa Diana, pode ter soado como uma provocação para os britânicos.

O fato é que Kristen é fantástica e já vem provando isso desde um bom tempo. Única atriz americana a ganhar o César (por ACIMA DAS NUVENS, de Olivier Assayas), a moça, que tem feito escolhas muito acertadas, seja em filmes mais arthouse, seja em produções de puro entretenimento, ainda teve a coragem de encarar a interpretação de uma personagem real tão querida e tão lendária na história da sociedade ocidental. Porém, diferente de DIANA, a biopic mais convencional estrelada por Naomi Watts e dirigida por Oliver Hirschbiegel, a opção de Larraín é, como esperada, bem mais ousada.

Como aconteceu com JACKIE, SPENCER tem provocado divisões entre os espectadores e críticos. Estou na categoria dos amantes do filme, que considero uma das obras mais representativas da opressão que uma pessoa sente em determinado ambiente. Li comparações por aí com O BEBÊ DE ROSEMARY, de Roman Polanski. E, de fato, há sim na obra um clima de opressão que muito lembra o de filmes de terror de famílias ou grupos satanistas que perturbam a mente de uma pessoa até fazê-la perder a insanidade.

A Diana de Larraín/Stewart sofre alucinações, vê aparições de Ana Bolena, a esposa do rei Henrique VIII que foi decapitada por ordem do próprio marido, e ainda vê em Ana Bolena alguém de mais sorte, pois teve apenas de perder a cabeça para se livrar da família. Além disso, Diana sofre de bulimia, e por isso a cena da balança, quando todos os membros da festa de natal da família real precisam ganhar três pounds (1,36 Kg) para demonstrar sua satisfação com o banquete, parece não apenas uma forma de potencializar a opressão, mas também um símbolo de transformação de uma pessoa em mercadoria – dado o modelo da balança.

Os simbolismos dessa opressão são muito claros, mas talvez por isso mesmo tão eficientes: as cortinas do quarto, a casa da família Spencer em ruínas, o arame farpado, o aviso de silêncio na cozinha, o colar de pérolas, os vestidos devidamente escolhidos para os dias específicos. E há o uso da música de Jonny Greenwood como potencializador do estado de perturbação mental da personagem, tornando o filme uma espécie de horror psicológico (o que é aquela cena da “sopa de pérolas”, ao som de um quarteto de cordas?). E há, do ponto de vista visual, a fotografia de Claire Mathon (de RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS) em tons esmaecidos, remetendo tanto a outras obras de Larraín quanto aos tons de imagem de vários filmes britânicos do período.

Para não dizer que não falei de flores, há também personagens que contribuem para momentos de alegria e conforto de Diana, como seus dois filhos pequenos e uma de suas camareiras, Maggie, vivida por Sally Hawkins, desde já uma das personagens mais amáveis já representadas no cinema recente. Ela é puro amor em um ambiente extremamente carregado de toxicidade. A cena da conversa de Diana com ela nas escadas e depois a caminhada na praia são enternecedoras.

A história se passa em 1991, dez anos após o histórico casamento, que chegou a ser televisionado para todo o mundo (eu era muito pequeno, mas tenho lembranças nubladas desse dia na tevê). Então, entre o casamento em 1981 e a morte de Diana em 1997, há muita história para contar. Mas história não é exatamente o interesse de Larraín. Pelo menos, não no sentido mais convencional. O interesse maior é na construção de uma atmosfera sinistra o bastante para incomodar uma personagem bem construída, o interesse é contar um período muito curto, o natal daquele ano de 1991, e as tentativas muitas vezes rebeldes de Diana de fugir daquele ambiente. A fuga aparece tanto no começo quanto no final do filme. Parece ser o único caminho possível e lógico a tão sensível pessoa.

+ DOIS FILMES

O GRITO DAS LEOAS (La Colline où Rugissent les Lionnes)

Filme que lida com a amizade de três jovens garotas habitantes de uma área rural de Kosovo que se veem aprisionadas naquele espaço. A própria diretora de O GRITO DAS LEOAS (2021), Luàna Bajrami, aparece como a amiga kosovar expatriada, um papel coadjuvante, mas que funciona para fazer um contraste com a situação das meninas, que sequer conseguem vagas na universidade, enquanto que a outra pode fazer livremente o trânsito Paris-Kosovo e ainda se achar em situação de desvantagem em relação às três. Acho que o filme se perde no quesito história, mas se a intenção é focar mais nos momentos entre elas, sem tanta preocupação em seguir um desenvolvimento narrativo melhor arranjado, O GRITO DAS LEOAS consegue bons momentos, especialmente por conta da expressividade das jovens atrizes e a beleza dos cenários.

CHARUTO DE MEL (Cigare au Miel)

E o filme de estreia da meia-irmã do nosso cineasta brasileiro Karim Aïnouz se mostra melhor do que os do realizador. CHARUTO DE MEL (2020) é muito sensível ao tratar da feminilidade de uma jovem filha de argelinos vivendo na França, que sofre tanto com a pressão dos pais, muito tradicionais, quanto com a da própria sociedade francesa, mais liberal. Ou seja, para os pais, ela tem que aparentar ser uma menina virgem; para os franceses, uma garota mais livre. Ao sair da sessão, ficamos com mais um exemplar da agressividade da sociedade patriarcal frente à mulher, mas também temos uma história de força de uma jovem dividida, encontrando seu próprio lugar. O fato de se passar em meados da década de 1990 também ajuda a dar ao filme um ar belamente catártico, inclusive por causa das canções-rock que tocam nas festas.

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