segunda-feira, janeiro 24, 2022

19 CURTAS BRASILEIROS



Mais uma leva de pequenos textos sobre curtas-metragens brasileiros importantes, vistos recentemente por ocasião das eleições de melhores do ano das associações brasileira e cearense de críticos de cinema.

A GENTE ACABA AQUI

Acho que este é um dos casos de título de filme que combina perfeitamente em ser usado no final. Fica aquela sensação que geralmente sentimos quando estamos diante da morte de alguém que amamos, quando viramos meio que filósofos da existência. E o modo como a diretora Everlane Moraes finaliza A GENTE ACABA AQUI (2021), depois de apresentar em curtos minutos um velório em uma família humilde, faz toda a diferença. No mais, há também um cuidado com a montagem muito discreta, mas também muito bonita, alternando o pai-nosso com o cortejo fúnebre.

MUXARABI

Documentário focado em um único personagem pode ter o risco de apostar as fichas em uma única pessoa e a coisa não funcionar. Felizmente o personagem escolhido em MUXARABI (2021), Eudes, o Bonitão, um homem que trabalha com metalúrgica no bairro do Jangurussu, em Fortaleza, e que inventa algumas coisas com ferro nas horas vagas, acaba por se mostrar bem interessante. Na sua simplicidade, Eudes fala de sua visão de mundo, deixa escapar saudades de amores do passado, e encontra no trabalho satisfação para viver. Natália Maia e Samuel Brasileiro pontuam os silêncios de modo a trazer momentos de reflexão e de emoção para Eudes, e esses pensamentos parecem surgir naquele exato instante, sem que ele se dê conta. Como o próprio Eudes fala sobre inspiração no trabalho, as coisas (os pensamentos, as ideias) simplesmente vêm.

PRAIA DOS CRUSH

Muito bom ouvir o nosso sotaque em produções dramatúrgicas locais. Neste PRAIA DOS CRUSH (2021), a diretora Marieta Rios começa sua história de maneira simples, a partir da necessidade de conversa entre duas jovens mulheres. A partir daí temos uma discussão em um grupo feminista sobre aceitações em relacionamentos, tanto hétero quanto homossexuais. Em seguida, o filme segue para um caminho mais criativo, numa festa, que exibe melhor os dotes da cineasta na construção de atmosfera em ambientes fechados e movimentação de câmera e cresce na cena da conversa sobre tatuagem.

SEBASTIANA

Um conto sobre as emoções de uma menina, SEBASTIANA (2020), de Claudio Martins, é uma animação indicada para um público infantil que chegou a ser exibida em vários festivais internacionais. Na história, Sebastiana é uma criança que, desde bebê, tem o dom de fazer chover sempre que está chorando. Logo a história corre o vilarejo e a menina passa a ganhar fama de bruxa ou de maldita pelos beatos e beatas. O salto da primeira infância para a fase escolar ajuda a dar uma perspectiva da própria menina, dos seus próprios sentimentos, e não o de terceiros, e isso torna o filme mais interessante em sua segunda metade.

ZÉ TARCÍSIO, TESTEMUNHA

A arte (do cinema) como meio de apresentar e glorificar outra arte. Por mais que ainda seja muito pouco apresentar o artista plástico Zé Tarcísio em apenas 26 minutos, esse tempo é aproveitado, tanto para ouvirmos seus depoimentos (sobre sua arte, sobre a censura nos tempos da ditadura), quanto para conhecermos algumas de suas obras mais famosas, sendo uma delas uma performance muito curiosa chamada "Anjo na Contramão", do tempo em que ele tinha um visual mais andrógino e andava de sutiã com asas numa bicicleta. Seu conceito de arte, então, ultrapassou e muito os espaços de museus. Inclusive, o tempo do diretor Delano Gurgel Queiroz em ZÉ TARCÍSIO, TESTEMUNHA (2021) também inclui silêncios que fornecem respiros muito bem-vindos.

BANZO

Curta doloroso que radiografa pequenos momentos de uma mãe pobre: a preocupação com a conta para pagar, o paradeiro do filho, a depressão, a tentativa de seguir em frente. A trama de BANZO (2021), de Rafael Luan, é desenvolvida de maneira simples, a iluminação escura ajuda a acentuar o clima de tristeza, as cenas das conversas com a amiga são rápidas mas também funcionais e representativas da dor e do desalento da protagonista. A edição com seus hiatos bem trabalhados é também um destaque.

ENTRE O PASSADO

Uma avó que morreu. Uma mãe que reaparece. Um filho que sofre o sentimento de abandono. Larissa Estevam constrói de maneira sensível o diálogo entre mãe e filho e faz sentimentos diversos aflorarem. Em uma sociedade machista é mais fácil culpar a mãe que abandona o filho do que o pai. Mas também é muito mais simples se solidarizar com o filho, com a mágoa que ele carrega ao longo de toda a jovem vida. Revirar esse turbilhão de emoções em pleno velório da matriarca não é fácil, mas ENTRE O PASSADO (2021) consegue lidar muito bem com tudo isso.

SAUDADE DOS LEÕES

Documentário que traz um misto de alegria e melancolia. A alegria vem, é claro, do fato de as festas no Lions serem uma alegria para os frequentadores e um espaço bastante democrático e gratuito. A melancolia vem com a chegada da pandemia e o perigo de fechamento do estabelecimento e o consequente impedimento de futuras festas. A estrutura de SAUDADE DOS LEÕES (2021), de João Paulo Magalhães, é simples, como documentário com depoimentos, mas o resultado é muito bom. Gostei de ver o amigo e colega de faculdade Carlos Augusto, que costumava discotecar lá, entre os principais entrevistados.

RUA ATALÉIA


André Novais Oliveira já é um dos maiores cineastas brasileiros. Seus curtas-metragens chamam a atenção pela sensibilidade e inventividade desde sua estreia com o excelente FANTASMAS (2010). Aqui ele, claramente, ou melhor, à luz de fósforos, faz sua homenagem à mãe, falecida em 2018. As imagens de RUA ATALÉIA (2021) foram captadas em 2011 e mostram um momento em que falta luz na casa de sua família e André filma aquele momento, em especial o close-up do rosto da mãe, como se explicitando uma vontade de eternizá-la. Há também o carinhoso momento do pai e da mãe olhando fotos do passado e comentando. Ressignificar esse registro em arte é a tarefa de André.

STONE HEART

Foi-se o tempo em que a animação brasileira era bem pobrezinha. A evolução tecnológica nos colocou em pé de igualdade com a maioria dos países mais desenvolvidos com as técnicas. E as animações mais adultas, principalmente essas despidas de diálogos, procuram ter um discurso construído a partir de metáforas, de situações que acontecem na narrativa e nos personagens. Em STONE HEART (2021), de Humberto Rodrigues, a trama se passa em um futuro destruído, com uma humanidade transformada em seres de pedra. Um desses seres tem sua humanidade devolvida a partir do contato com uma flor, uma única flor nascida do nada.

TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO

Criou-se um subgênero nos documentários (em curtas-metragens, principalmente) que tratam de memórias de infância como flagrante ou prova da evidência da personalidade de seu narrador. Em geral o diretor ou diretora. Em TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO (2020), Juliana Antunes recolhe imagens em VHS de sua infância que já apresentam seus primeiros flertes com meninas, suas preferências, e isso é mostrado com um senso de humor muito interessante, já que as imagens são mesmo flagrantes do desejo da garota, como as cenas na igreja. Fico imaginando o repertório de imagens que crianças dos dias de hoje terão para construir filmes como este no futuro próximo.

TERRA NOVA

Atualmente filmes que lidam com problemas sócio-econômicos têm me comovido mais. E TERRA NOVA (2021), de Diego Bauer, nos coloca no olho do furacão da situação de miséria e caos do Brasil de 2020, em pleno cenário pandêmico em Manaus, cidade que ainda sofreria bastante no ano seguinte. O trabalho de Diego Bauer é admirável. Herdeiro do neorrealismo italiano, mas com uma dramaturgia essencialmente brasileira, ele conta a história de duas moças que sofrem com a falta de dinheiro em casa. Uma delas acabou de ser demitida e a outra é uma atriz que está sem dinheiro e que luta para conseguir o auxílio emergencial. O filme funciona lindamente tanto nos interiores quanto nos momentos em que as irmãs (ou amigas?) se dirigem de bicicleta até a agência da Caixa Econômica. O curta tem 20 minutos, mas eu passaria horas acompanhando essas duas personagens.

PERTO DE VOCÊ

Muito interessante acompanhar estes filmes nascidos do período da pandemia. Aqui acompanhamos a situação grave acontecendo no país como pano de fundo (cada ato ou palavra perpetrada por Bolsonaro + o terror da Covid 19), ao mesmo tempo em que vemos a angústia do jovem Cássio Kelm (o diretor), em processo de transição de gênero, vivendo no mesmo apartamento que o pai. Ele fica se perguntando como contará ao pai e se questiona se o homem, viúvo, já não percebera suas mudanças ou prefere fazer de conta que não vê. PERTO DE VOCÊ (2021) é um curta relativamente longo, mas tão bem conduzido que não se percebe a meia hora passar.

TEREZA JOSÉFA DE JESUS

Depois de ver filmes curtos com ritmos mais pausados e alguns quase contemplativos, encontrei dificuldade de acompanhar a rapidez da montagem e da quantidade de mensagens deste TEREZA JOSÉFA DE JESUS (2021), de Samuel Costa. É um filme que pede uma revisão. Há muita coisa dita em poucos segundos/minutos, mas o principal é o luto. O luto de uma filha, uma poetisa (Juliana), que perdeu a mãe, Tereza. E dentro dos diversos estágios do luto, muito mais é dito, rapidamente, em palavras e imagens.

VOCÊ JÁ TENTOU OLHAR NOS MEUS OLHOS?

Talvez ver este curta de apenas quatro minutos seja um exercício de compreensão do outro - e também de identificação para alguns espectadores, no caso. Em VOCÊ JÁ TENTOU OLHAR NOS MEUS OLHOS? (2021), de Tiago Felipe, vemos fotos em preto e branco de um jovem negro se desnudando para um espelho. Há cortes rápidos, cortes de palavras também, cortes de palavras que podem significar algum tipo de censura da sociedade. A própria pergunta do título pode ser pensada a partir do que é mostrado ou enfatizado também do próprio corpo do rapaz, seja por objetificação, racismo ou hiperexploração da sensualidade.

SE HACE CAMINO AL ANDAR

Desconhecendo a poética de Paula Gaitán (só havia visto EXILADOS DO VULCÃO, 2013) , mas já sabendo da fama de ela ter alguns filmes longos e lentos, fui pego quase que de surpresa com este curta/média que nos convida a reaprender a olhar para uma imagem, apresentada de maneira tão demorada e lenta quanto nos filmes de Tsai Ming Liang. Com a câmera tanto tempo estática na figura de um homem se aproximando, quando ela sai do lugar vemos uma ação quase próxima da violência. Assim como é "violenta" a cena do homem de frente a um carro, em determinado momento. Há em SE HACE CAMINO AL ANDAR (2021) os simbolismos das duas estradas e do homem, dos sons e do modo como ele anda, mas não me acho suficientemente bom para dar conta deles. A mim, me resta uma posição mais de respeito a esse trabalho tão fora do comum.

YAÕKWA - IMAGEM E MEMÓRIA

Tanto Vincent quanto sua esposa Rita Carelli são antropólogos dedicados a fortalecer a identidade indígena no solo dos povos nativos. Em YAÕKWA - IMAGEM E MEMÓRIA (2020), eles apresentam aos Enawenê Nawê imagens de cantos, rituais e brincadeiras que já estavam esquecidos pelos povos atuais, principalmente por causa da morte prematura dos seus antigos líderes. Bem bonito ver todos eles sentados para ver esses registros com o uso do projetor. Vincent procura também ensinar a eles como usar as tecnologias e, a partir disso, passar o ensinamento aos demais. Este é um dos poucos (se não o único) filmes sobre a realidade dos índios que não me deixou triste.

YVY PYTE (CORAÇÃO DA TERRA)

Alguns filmes me dão muito trabalho até mesmo de tecer algumas linhas breves, mas gosto de aceitar o desafio. O que acontece é que certas obras precisam de informações extras para que se tornem um pouco mais completos. Saber, por exemplo, a tribo, no caso, o povo indígena Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Na maior parte da metragem de YVY PYTE (CORAÇÃO DA TERRA) (2020), de Genito Gomes e Johnn Nara Gomes, o que vemos é uma imagem quase estática de um crepúsculo (ou seria aurora?), enquanto ouvimos a fala do xamã Valdomiro Flores, que conta sobre as diferenças ocorridas nos rios e em outras coisas, em comparação com o que vê hoje. Como o curta tem apenas sete minutos, senti um pouco de dificuldade de "me acentar" no clima. Ainda assim, compreendo a importância dessas vozes que, de outra maneira, poderiam ser silenciadas na sepultura.

SEM TÍTULO #7 – RARA

Belo tributo à atriz Setzuko Hara, famosa por protagonizar alguns dos mais emblemáticos filmes de Yasujiro Ozu. SEM TÍTULO #7 – RARA (2021) é um trabalho de edição e reconstrução de imagens de vários filmes com a atriz, incluindo uma canção alegre ao fundo, que mesmo assim traz um tom levemente melancólico. Trata-se do sétimo capítulo da série "Sem Título", de Carlos Adriano, sempre filmes de montagem e, aparentemente, filmes de luto, de memória, de perda. O fato de Hara ter abandonado o cinema logo após a morte de Ozu também é uma informação adicional que passa um sentimento de leve comoção.

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