quarta-feira, dezembro 23, 2020

DOMICÍLIO INCERTO



Quem entrou em contato com os curtas de Davi Mello, em especial os dois anteriores, A BORDO (2015) e AS VIAJANTES (2019), sabe que está diante de um cineasta no mínimo muito talentoso. Não sei se o meu gosto pelo cinema fantástico contribui para eu ter gostado tanto desses filmes, mas para qualquer gênero que se disponha a fazer é bom que haja talento.

Com a pandemia, Davi Mello, de São Paulo, trocou cartas com a amiga Deborah Perrotta, em Turim, Itália. Mas não cartas usuais. Aliás, as cartas usuais, elas já têm uma aproximação com a arte em si. Lembro de minha professora de Literatura Portuguesa falando que a melhor coisa do período barroco em Portugal foram cinco cartas de amor de uma freira.

O que Davi Mello e Deborah Perrotta fazem em DOMICÍLIO INCERTO é arte com as palavras, mas também com as imagens. Aproveitando o ócio, a angústia e os tantos pensamentos que vieram à mente nos primeiros meses da pandemia, os dois trocaram vídeo-cartas. Ou cartas-vídeo. E adotaram um estilo de fluxo de consciência muito parecido com o de uma das autoras citadas, Virginia Woolf, mas também o de filme-ensaio de linha mais experimental como os de Agnès Varda.

Aliás, bastou eu pensar em Varda, nas semelhanças com o cinema dela, que Davi Mello logo a cita em determinado momento, ao falar de batatas. E assim como se fala de batatas, se fala da infância, de livros, do olhar a janela do outro e flagrar uma intimidade, da transitoriedade da vida e dos fantasmas que vivem nos filmes, da relação de estranheza com o próprio rosto, de se perguntar como nosso mundo será quando passar essa pandemia. Enfim, é um misto de filosofia e poesia. Essa liberdade do fluxo livre de pensamentos só não se torna uma bagunça pelo cuidado e carinho com que percebemos como esse projeto é tratado.

Como sou um amante tanto de palavras quanto de imagens achei uma delícia ver este média-metragem de pouco mais de 40 minutos, que até poderia ser um longa se os realizadores resolvessem continuar a brincadeira por mais tempo. Mas o que há de bonito no média é essa espécie de rebeldia com o modelo comercial estabelecido: ao mesmo tempo que necessita de um tempo maior para ser visto (como um longa), é com frequência pouco visto pelo grande público, menos do que os curtas até. E por isso, com frequência, muitos deles se tornam pequenas joias escondidas.

+ TRÊS CURTAS

À BEIRA DO CAMINHO MAINHA SOPROU A GENTE

Curtindo demais essa leva de curtas que lidam com afetos, com proximidades com o cotidiano e com a intimidade, embora também tratem de algo tão relevante quanto a compreensão e aceitação por parte dos pais (no caso, da mãe) de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. As duas personagens/diretoras de À BEIRA DO CAMINHO MAINHA SOPROU A GENTE (2020), Bruna Barros e Bruna Castro, falam com poesia da relação que têm entre si, dos pequenos gestos, da fragilidade (o filme começa com uma delas dizendo o quão fácil é pra ela chorar). É filme de feridas abertas, mas é também de celebração da vida.

SE ALGO ACONTECER... TE AMO (If Anything Happens I Love You)

Bom a Netflix trazer esses curtas como alternativas diferentes para o público do canal. Este aqui tem um apelo emocional bastante forte, que remete a alguns curtas da Pixar, mas com um conteúdo talvez mais adulto. A história de SE ALGO ACONTECER... TE AMO (2020), de Michael Govier e Will McCormack, sem diálogos, e apostando na força das imagens, conta a história de um casamento abalado pela falta que faz a filha de um casal. A conclusão e o motivo do título do filme é o que pega mais forte o espectador. Ainda assim, esperava me emocionar mais. Talvez tenha visto com a mente muito inquieta.

NIMIC

Tenho um respeito grande Yorgos Lanthimos desde que ele me fez sentir medo no cinema com O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO (2017). Além do mais, os outros filmes dele que vi são no mínimo interessantes com sua estranheza bela. Contar a história de um curta como NIMIC (2019), mesmo que o comecinho dela, é praticamente um spoiler. Se bem que, no caso deste filme, contar um pouco que seja pode até não ser exatamente o que acontece. Temos um homem casado e com filhos (Matt Dillon) e temos uma mímica. O uso de lentes olho de peixe como em A FAVORITA (2018) contribui com o estranhamento, assim como o som do violoncelo surgindo de maneira solene traz uma carga de gravidade às situações domésticas.

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