quinta-feira, dezembro 24, 2020

TOMMASO



Como ainda não terminei de ver os filmes de Fritz Lang, posso dizer que Abel Ferrara foi o meu grande companheiro durante os dias de pandemia. Foi muito feliz da minha parte escolhê-lo para aprofundar o conhecimento sobre sua obra. Tinha muitas lacunas e a revisão de praticamente todos os seus filmes foi essencial para ir compreendendo sua poética. Dentre os longas, ficou faltando eu ver alguns poucos documentários feitos nos anos 2000 e 2010 e dois filmes de ficção para a televisão produzidos nos anos 1980.

Graças à sua inquietação, só neste ano tivemos dois novos filmes dele, o dream-like SIBÉRIA (2020), exibido em Berlim, e o documentário SPORTIN' LIFE (2020), exibido em Veneza. Os dois fizeram parte da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Aliás, foi ótimo poder, pela primeira vez, acompanhar a Mostra, ainda que nesse modelo "novo". Os dois filmes mostraram o quanto Ferrara está disposto a se despir ainda mais em seus novos filmes, a fazer uma espécie de terapia através da arte, a confrontar seus demônios interiores.

O mesmo pode ser dito de TOMMASO (2019), que antecipa muito SIBÉRIA, já que mostra um diretor de cinema, vivido por Willem Dafoe, parceiro de Ferrara desde GO GO TALES (2007), trabalhando no projeto sobre um homem chamado Clint que vai parar em um lugar deserto e gelado para conhecer mais de si mesmo, talvez na mesma proporção que foge do mundo. Porém, se SIBÉRIA me pareceu um filme de difícil penetração, TOMMASO é muito mais acessível, além de ser ainda mais um retrato das dificuldades vividas pelo cineasta.

Chega a ser divertido ver as óbvias relações autobiográficas que o filme faz com a vida do realizador , seu passado de uso pesado de álcool e drogas, sua batalha para permanecer sóbrio, suas ligações com o catolicismo e com outras religiões. Mas há especialmente um interesse em tratar de um desejo reprimido em um casamento com uma mulher mais jovem (Cristina Chiriac, a bela esposa de Ferrara).

O que ele faria de maneira muito mais intensa em SIBÉRIA aqui se mostra de forma mais discreta e pontual, que são as cenas com chaves de sonho, que surgem de vez em quando ao longo da narrativa. Aliás, fica a dúvida em algumas cenas sobre se é sonho, delírio ou realidade. Em determinado momento, ele vê a filhinha pequena (Anna Ferrara, filha de Ferrara) ser atropelada para, logo em seguida, ver que aquilo não passava de um delírio, provavelmente fruto do medo da perda. O mesmo pode valer para uma possível perda da esposa, a suposta traição, que ao final fica a dúvida se teria de fato acontecido ou seria fruto de paranoia e insegurança.

Ele tem consciência que casou com uma mulher bem mais jovem e fala sobre isso quando desabafa com amigos do AA ou com outras pessoas de sua convivência, como a professora de italiano, por exemplo, ou mesmo uma aluna de teatro de quem ele se aproxima e beija no carro. O desejo e a sexualidade do personagem aparecem tanto nas cenas oníricas (como a da moça nua oferecendo café) quanto na própria beleza e sensualidade natural das jovens alunas do grupo de teatro.

TOMMASO foi o primeiro filme de ficção de Ferrara desde PASOLINI (2014), também feito em parceria com Dafoe, e é que continha uma carga de catolicismo ainda mais forte. O curioso da cena de Dafoe na cruz em TOMMASO é que o ator já esteve na cruz em sua representação de Jesus em A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO, de Martin Scorsese. Pareceu ser uma feliz coincidência. Se é que existem coincidências.

Gosto muito de como as cenas mais realistas funcionam bem. Destaque para a cena com o paquistanês bêbado. Tommaso desce para calar a boca do sujeito, que está incomodando sua filha e esposa, gritando na rua. Ele estaria disposto a dar um soco no sujeito, mas consegue dialogar com o homem, e parece se sentir bem com isso. É uma cena bonita. Assim como são bonitas, algumas ligeiramente dolorosas, as cenas de intimidade com a esposa, seja fazendo o almoço, seja reclamando que a mulher não se lembrou dele na hora da refeição. As cenas de sexo frustrado também se destacam nesses momentos de intimidade.

É a tal coisa: não adianta sentir saudade do Ferrara louco e genial da década de 1990, talvez o seu auge criativo. Afinal, o novo Ferrara, sóbrio e disposto a conhecer a si mesmo, cavando fundo nos problemas e no quanto errou no passado, é também bem-vindo. Que bom que ele tem encontrado apoio para a realização de seus filmes na Europa. Ainda assim, ao que parece, seu próximo filme, ZEROS AND ONES, ainda sem data de lançamento, terá produção americana, embora seja com locação na Itália, seu novo lar.

Agradecimentos à Paula, que viu o filme comigo em esquema de distanciamento social. 

+ TRÊS FILMES

A VOZ SUPREMA DO BLUES (Ma Rainey's Black Bottom)

A semelhança deste filme com UM LIMITE ENTRE NÓS, de Denzel Washington vem de suas origens teatrais, mas também do fato de Washington estar como produtor e Viola Davis ser uma das protagonistas, a personagem-título. Sua Ma Rainey é impressionante em sua busca de dignidade durante um processo de gravação. Mas quem rouba mesmo o filme para si é Chadwick Boseman, que deixou sua melhor performance para o final e nos deixou também na dúvida sobre o quão alto ele chegaria se continuasse vivo por mais algumas décadas. Em A VOZ SUPREMA DO BLUES (2020), de George C. Wolfe, ele interpreta um trompetista cheio de paixão e que ambiciona ter sua própria banda, galgar sucesso na música, por mais que lhe atormente o passado. Dizem que é um filme que cresce à medida que pensamos nele, e eu não duvido. Há um trabalho admirável de atuação, principalmente. Sem falar no quanto é simbólico e bem-vindo nesse novo momento do black power na arte e no comportamento.

MOSQUITO

O cinema português anda com um vigor impressionante. Aqui temos um drama de guerra passado em Moçambique em que o protagonista se perde de seu pelotão e faz uma verdadeira viagem ao inferno em território desconhecido. MOSQUITO (2020), de João Nuno Pinto, é crítico ao orgulho colonialista dos portugueses e ao próprio absurdo da guerra. Isso se mostra tanto nas cenas de Zacarias (João Nunes Monteiro) em postos de oficiais portugueses quanto nos demais encontros que o herói tem ao longo de sua jornada. Gosto do final, tanto pelo impacto quanto pelo gesto simbólico.

PALM SPRINGS

Variação muito bacana e bonita de FEITIÇO DO TEMPO. Aliás, depois de ver tantas variações do filme, fico pensando se a obra supostamente original também não seria uma variação de outra. Enfim, o que há como diferencial em PALM SPRINGS (2019), de Max Barbakow, principalmente, é ter um segundo protagonista para compartilhar o viver o mesmo dia forever and ever, no que há de céu e no que há de inferno. Gostei da atriz (Cristin Milioti), de olhos expressivos e grandes, e sem fazer esforço para sensualizar. Ainda assim, cria uma química muito legal com o personagem do Andy Samberg. Há uma cena com o J.K. Simmons que é ao mesmo tempo engraçada e comovente. Porém, como é uma obra bem dinâmica, o aspecto sentimental fica um pouco mais de lado em prol do bom humor.

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