domingo, julho 27, 2014

NA GARGANTA DO DIABO



Quanto mais conhecemos o cinema de Walter Hugo Khouri, mais o admiramos. NA GARGANTA DO DIABO (1960) era um desses filmes meio que perdidos do diretor, raríssimos de encontrar na internet, até que surge esta cópia dublada em inglês e que a turma faz questão de legendar com muito amor, para a nossa alegria. Engraçado termos que recorrer a uma cópia estrangeira para ter acesso a um filme brasileiro do maior de nossos cineastas.

Bem que podiam fazer o mesmo com A ILHA (1963), seu filme seguinte, que sofre de um problema sério: um áudio muito ruim, sendo muito difícil de entender o que os personagens estão falando. Nem me importaria tanto em ver também em cópia dublada em inglês, embora fosse sentir falta da voz de Eva Wilma. AMOR, ESTRANHO AMOR (1982), por exemplo, tem também como melhor cópia disponível atualmente uma versão estrangeira dublada em inglês.

Mas falemos de NA GARGANTA DO DIABO, um filme que parece o mais estranho da filmografia de Khouri, talvez por ser um filme de época (passa-se na época da Guerra do Paraguai) e com muitas cenas externas, embora as cenas em interiores sejam as de maior força dramática, potencializadas pela excelente fotografia em preto e branco a cargo de Rudolf Icsey, que já tinha um currículo bem extenso na Europa quando aportou no Brasil nos anos 1950, tendo feito parceria com Khouri em outras ocasiões.

Quanto ao belo trabalho de construção de tensão e suspense, o cineasta já havia provado a sua capacidade com a obra-prima ESTRANHO ENCONTRO (1958). Portanto, já era de se esperar uma câmera elegante e um domínio do espaço e dos personagens de fazer inveja aos demais cineastas brasileiros de sua época. Há uma poesia nos enquadramentos e na movimentação da câmera, seja em cenas exteriores, seja nas interiores.

O filme, aliás, se enamora da personagem de Edla Van Steen, atriz que consegue estar melhor e em mais destaque em cena do que Odete Lara, que faz a sua irmã mais velha. Elas duas, o pai e mais um ajudante cego tentam sobreviver em uma casa que já foi saqueada por outros homens que se aproveitaram da guerra para roubar, matar e lucrar. Quando os quatro desertores invadem o lugar, aquele grupo já não tem muito a oferecer. Um desses homens está sendo perseguido, inclusive, por uma tribo indígena, pelo assassinato de um pequeno índio.

Aliás, impressionante como esses elementos são um prato cheio para que se pudesse criar um ciclo de filmes daquele período, envolvendo índios, as maiores cataratas do mundo (Iguaçu), uma guerra sangrenta, desertores, mulheres e homens corajosos ou covardes se enfrentando etc. Diferente dos Estados Unidos, que souberam transformar uma época de sua História em um gênero forte, rico e bem constituído, o western, no Brasil, poucos quiseram se aventurar por essa linha. Pelo menos não nessa geografia.

Como Khouri não era exatamente um diretor de aventuras, até que se saiu muito bem neste trabalho. Afinal, a força maior está no magnetismo daquelas mulheres, as irmãs Miriam (Edla) e Ana (Odete), que logo se tornam objeto de desejo dos invasores, mas que têm no olhar um sentimento de desesperança que seria muito comum de se encontrar nos diversos personagens do mundo de Khouri, sejam homens ou mulheres. Isso ocorre principalmente pelo fato de todos ali já terem sofrido bastante, principalmente depois do assassinato do irmão delas, que é mostrado num lindo flashback.

Há um cuidado especial com o uso das sombras naquele ambiente sem energia elétrica. As cenas dentro da casa são belamente fotografadas, lembrando bastante o film noir americano, algo que já se notava em ESTRANHO ENCONTRO. Inclusive, pode-se dizer até que em NA GARGANTA DO DIABO essas sombras são mais estilizadas e mais belas do que no trabalho anterior de Khouri, embora trate-se de um filme menor, principalmente pela dramaturgia menos inspirada.

Em certo momento, a personagem de Odete Lara parece fugir do tom e o final feliz (ou agridoce) parece até uma concessão dada a produções hollywoodianas com o intento de agradar à audiência. Mas isso é até compreensível, já que a produtora era a Vera Cruz, que, se por um lado impôs uma qualidade técnica pouco comum no cinema brasileiro de então, copiou bastante o que se fazia nos Estados Unidos e na Itália.

Embora essas circunstâncias perturbem o que poderia ser mais um excelente filme de Khouri, não dá para negar a sua obrigatoriedade, especialmente para os fãs do cineasta, que vislumbrarão a assinatura do mestre em cada fotograma. E ainda se emocionarão com alguns momentos de uma beleza plástica admirável, além do sentimento de angústia que se tornaria tão presente nos trabalhos posteriores do cineasta.

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