segunda-feira, maio 14, 2012

MEMÓRIAS DO CÁRCERE



Vendo um filme como MEMÓRIAS DO CÁRCERE (1984) é que temos novamente a certeza de que Nelson Pereira dos Santos é um dos gigantes de nosso cinema. Ele tem uma obra irregular, mas uma coisa a gente percebe, acompanhando seus filmes em ordem cronológica e sabendo um pouco dos bastidores: filmes em que ele trabalha com muitos anos de obsessão e entusiasmo saem maravilhosos. Caso de VIDAS SECAS (1963) e de COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS (1972). E assim como aconteceu com VIDAS SECAS, MEMÓRIAS DO CÁRCERE foi pensado durante muito tempo. Quase vinte anos antes ele havia pensando em adaptar o livro de Graciliano Ramos, mas diante de uma ditadura brutal como aquela um filme como esses era inviável.

Mas cada coisa com o seu tempo e MEMÓRIAS DO CÁRCERE, apesar de mostrar a dor da prisão de uma pessoa inocente, um intelectual que foi preso por suas ideias e não por ter cometido crime algum, o tempo de sua realização "coincidiu" com o do período da redemocratização do Brasil. E cada vez que o Hino Nacional é tocado ou cantado no filme, dá um arrepio no corpo, não exatamente de emoção patriótica, mas por ser um cantar pela pátria associado também à dor, ao que ela nos causou, como Jimmy Hendrix tocando "Star Spangled Banner", o Hino Nacional americano, no Woodstock. Há ali toda uma contradição: uma pátria que tanto maltratou os negros, mas que, no entanto, ele mesmo assim a abraça.

Em MEMÓRIAS DO CÁRCERE, tudo parece ter conspirado para dar certo: a escolha de Carlos Vereza para interpretar Graciliano; a jovem Glória Pires, como sua esposa frágil, mas capaz de não só suportar o ocorrido com o marido, mas também de procurar ajudá-lo enquanto ele estava na prisão; o elenco de coadjuvantes de peso, como José Dumont, Nildo Parente, Jofre Soares, Wilson Grey, Tonico Pereira, entre outros; e depois de tantas dificuldades nas filmagens (orçamento apertado e locações complicadas), a glória de receber prêmio da Crítica Internacional em Cannes (junto com PARIS, TEXAS, de Wim Wenders) e o prêmio de melhor filme no Festival de Havana, quando o Cine Charles Chaplin foi abaixo com tantos aplausos ao mestre.

Curiosamente, a cópia que eu peguei do filme foi um VHSrip em duas partes. Eu, sem saber, comecei a ver da segunda parte, que já começa com ele se despedindo da esposa e sendo levado pelos militares. E quando o filme acaba, tão rapidamente, eu fico feito besta. Só então fui ver as primeiras duas horas de filme. Devia ter desconfiado da falta dos créditos iniciais, mas é que o filme flui tão bem que, uma vez que deixamos rolar, nem dá vontade de interromper. Mas se eu gostei tanto do filme vendo-o assim, com as partes invertidas, imagino como seria se o tivesse visto na ordem correta.

Outra coisa que se percebe e que eu não canso de comentar quando o assunto é o cinema de Nelson é o tratamento diferenciado que o cineasta dá às mulheres em seus filmes. No caso de MEMÓRIAS DO CÁRCERE, como não li o livro, não pude fazer uma comparação, mas segundo Helena Salem, autora de "Nelson Pereira dos Santos – O Sonho Possível do Cinema Brasileiro", "embora a adaptação do livro tenha sido bastante rigorosa, em relação às personagens femininas ele se permitiu maiores liberdades – no clima. As mulheres da cela 4 são leves, riem, dançam, brincam entre si – apesar da cadeia. Enquanto que no livro não, na cela 4 há o mesmo clima pesado existente na ala dos homens."

E vale lembrar que, entre as mulheres da cela 4, estava Olga Benário, mulher de Luis Carlos Prestes, que é levada grávida, deportada para a Alemanha, para ser assassinada pelos nazistas, numa história já bastante conhecida. Achei morbidamente curiosa essa relação estreita entre Graciliano e Olga. A sequência é emocionalmente intensa, vista de um buraco que vai da ala dos homens para a pequena cela das mulheres.

No mais, há tanto a se falar sobre esse filme extraordinário, mas o post está ficando longo. Completo, então, falando dessa coisa tão importante chamada liberdade, que a gente geralmente tem e não dá valor. No caso do filme, há uma cena em que os presos passam dias em suas celas, sem poderem sair para a ala maior, depois de terem quebrado tudo num acesso de fúria rebelde. No dia que os soltam, é uma alegria imensa. O mesmo ocorre na sequência final, com Graciliano saindo da prisão. Mas mesmo com o Hino Nacional tocando, não tem como não ficar com aquela mágoa no peito, aquele nó na garganta, aquele sentimento de injustiça que ainda impregna a alma. Mas ao mesmo tempo, há um novo país se formando. E o filme representa também os novos e esperançosos tempos que viriam.