domingo, fevereiro 24, 2008

SENHORES DO CRIME (Eastern Promises)



É sempre complicado pra mim falar dos filmes de David Cronenberg, pois eles freqüentemente me trazem reações estranhas. Lembro de ter voltado pra casa com uma espécie de depressão depois da sessão de GÊMEOS: MÓRBIDA SEMELHANÇA (1988), de ter ficado com uma angústia tremenda, quase ao ponto de não conseguir ver até o fim MISTÉRIOS E PAIXÕES (1991) e de ter ficado estranhamente excitado com CRASH - ESTRANHOS PRAZERES (1995). O fato é que ver os filmes de Cronenberg é sempre uma experiência única, por mais que alguns pensem que depois de MARCAS DA VIOLÊNCIA (2005) ele passou a fazer um cinema mais comercial. Mas se todo filme comercial fosse assim, o comércio nunca seria encarado como algo quase desonroso. Com SENHORES DO CRIME (2007), sua segunda parceria com Viggo Mortensen, ele faz um filme irmão do anterior, também centrado na máfia, mas com uma caprichada ainda maior no quesito "violência". A começar pela seqüência inicial, com um homem tendo sua garganta cortada à navalha numa barbearia.

O eixo da trama é um diário escrito em russo que estava nas mãos de uma jovem adolescente ucraniana grávida que morreu de hemorragia, mas cujo filho sobreviveu. A enfermeira inglesa Anna (Naomi Watts), de família russa, mas que não domina o idioma, fica com o diário e pede para o seu tio traduzir. Dentro do diário, ela também encontra um cartão de um restaurante russo e acaba entrando na toca do lobo, ao visitar o lugar. Lá está havendo uma festa e ela conhece o patriarca da família, vivido por Armin Mueller-Stahl, o único ator realmente russo do cast principal. Mas vale dizer que os outros atores não-russos desempenham seus papéis com força e intensidade, não importando de que nacionalidade sejam - americana (Mortensen), inglesa (Naomi Watts) ou francesa (Vincent Cassel).

O personagem de Cassel, aliás, é um prato cheio para quem acredita na teoria de que há sempre um contexto homossexual implícito em todos os filmes de Cronenberg. Seu personagem, Kirill, filho do patriarca, mantém uma relação bem próxima com o seu motorista particular, vivido por Mortensen. E Mortensen é um sujeito estranho, de olhar estranho, pouco confiável, ambíguo, mas que se aproxima da família russa bem rápido, graças à sua inteligência e esperteza. Lá pelo final do filme é que saberemos mais um pouco sobre quem realmente ele é, embora suas intenções continuem ambíguas. Nesse ambiente sombrio, Anna, à medida em que procura a família da jovem de identidade não identificada, vai se afeiçoando à criança e pondo em risco a si mesma e à sua família, depois que descobre quem é o pai biológico do bebê e dos maus tratos sofridos pela pobre mãe da criança.

Dizem que Viggo Mortensen é praticamente co-autor do filme, ao lado de Cronenberg, já que foi graças a ele, que foi a campo pesquisar na própria Rússia sobre como funcionam as famílias mafiosas, que o filme ganhou vida. Foi lá que ele descobriu sobre as tatuagens no corpo dos criminosos, tatuagens que contam a história de vida da pessoa. A partir dessas informações, o roteiro foi reescrito e o filme se tornou essa maravilha que é. E também foi idéia do próprio Mortensen lutar nu na cena mais importante e impactante do filme, numa sauna, para dar mais veracidade e crueza à seqüência. Na cena, ele combate dois homens que chegam com armas afiadas para matá-lo. (Lidar com a máfia definitivamente diminui a expectativa de vida dos envolvidos.)

A brutalidade de SENHORES DO CRIME faz com que o drama da personagem de Naomi Watts não tenha a dramaticidade que normalmente seria comum, levando em conta o tema da maternidade, que supostamente seria motivo suficiente para aquebrantar o coração dos mais sensíveis. Mas esse tipo de sensibilidade não combina com Cronenberg, que sempre foi um cineasta visceral e que trata o corpo muitas vezes como carne. E essa carne, como um objeto estranho. O universo do diretor é o das sensações corporais, não o dos sentimentos. Por isso que dificilmente a cena que envolve Mortensen, Watts e o bebê vai levar alguém às lágrimas. O próprio bebê, na cena em que ele é retirado, é mostrado de maneira bem realista. Tanto nascer quanto "carregar" este corpo até o dia da morte é um negócio muito estranho. E essa consciência da estranheza do corpo, e das dores e dos prazeres que ele é capaz de trazer, é que é o forte e a marca do cinema de David Cronenberg.

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