sábado, julho 06, 2024

ENTREVISTA COM O DEMÔNIO (Late Night with the Devil)



Algo que é ao mesmo tempo um problema e uma alegria para os fãs do cinema de horror (na verdade vale para qualquer gênero) é o vazamento de filmes na internet. Um problema para quem gostaria de ver certos filmes no cinema e às vezes nem sabe se alguma distribuidora chegou a comprar o objeto do nosso interesse para exibição futura. Eu, como não tenho tanto tempo disponível, vejo o ato de esperar pelo filme como algo interessante. Mas sei também que, em se tratando de terror, poderei ficar frustrado com o lançamento do filme em apenas cópias dubladas, o que tem sido comum de acontecer com filmes do gênero, infelizmente. Além do mais, há a questão das salas ruins, as salas com projeção tremida, muito escura ou com cores lavadas e sem nitidez. E eu já sei quais são várias dessas salas. Se não me engano, acabei optando por ver PEARL em casa, de Ti West, por um desses motivos: sala ruim ou cópias dubladas.

Recentemente mesmo (neste ano), pedi meu dinheiro de volta em duas ocasiões para filmes de terror: MERGULHO NOTURNO e IMACULADA – este, já havia caído na internet e deu pra vê-lo em casa. Então, ir ao cinema ultimamente tem sido uma caixinha de surpresas, nem sempre com final feliz. No entanto, sinto que fiz o certo em esperar alguns meses para ver no cinema ENTREVISTA COM O DEMÔNIO (2023), numa sessão apropriada, ou seja, perto das onze da noite (incrível como as redes de cinema agora estão empurrando as poucas sessões legendadas, principalmente dos filmes de terror, para bem mais tarde). Deixo claro que digo “apropriada” pelo “late night” do título original e não porque acho decente só colocarem sessões legendadas desses filmes muito tarde da noite, o que acaba espantando desanimando muita gente de vê-los.

Muita gente já viu o filme em casa quando vazou, e na época que vazou era possível ver muita gente postando no Letterboxd sobre ele, mas duvido muito que a experiência tenha sido tão boa quanto vê-lo na tela grande, com imersão e excelente som. Até porque este é um dos filmes da safra recente mais interessantes e diferentes, trazendo de volta o found footage de maneira muito criativa e contando com um time de atores tão bons que quase nos esquecemos de que se trata de um filme e não de um programa de TV dos anos 1970 que topa tudo para aumentar a audiência, inclusive entrevistar uma garota que supostamente está possuída por um demônio. Aliás, sobre a qualidade da atuação do elenco, o ator que faz o protagonista, David Dastmalchian, merece um prêmio. Está simplesmente incrível no papel do apresentador do programa.

Os irmãos Cameron e Colin Cairnes, talentos vindos da Austrália, assim como os irmãos Philippou, do impressionante FALE COMIGO, são criativos o bastante para colocar mais atrativos no programa de variedades. Por isso eu digo que é filme para se ver sabendo o mínimo possível, para valorizar as surpresas e as opções estéticas dos realizadores em sua condução da história até a conclusão, nem sempre muito querida dos espectadores. (Eu mesmo tenho minhas reservas quanto ao último ato, mas não desgosto totalmente.)

ENTREVISTA COM O DEMÔNIO relembra o pânico do satanismo que acometeu os Estados Unidos na década de 1970 e sabe trazer isso de forma muito particular. Nessa época, Hollywood soube aproveitar bastante essa onda de medo, que vem de uma reação conservadora a um avanço de costumes mais ligados à contracultura, como uma maior liberdade sexual, o uso de drogas e um abraçar maior ao rock’n’roll, um gênero musical que tem por tradição essa relação com o sexo e com as drogas – e às vezes até com o satanismo, dependendo da banda ou artista. Inclusive, essa reação da sociedade conservadora está voltando com força, embora de maneira mais delirante, na era da pós-verdade.

Por isso até podemos dizer que o filme dos irmãos Cairnes retrata um pouco o espírito de nossa época, por mais que nos leve para um programa de televisão dos anos 1970. E nos leva de maneira muito envolvente. Enfim, fico feliz com essa nova onda de bons e muitas vezes ótimos filmes de terror trazidos por novos realizadores. Há vários muito interessantes chegando por aí.

Visto na muito boa sala 6 do UCI Iguatemi Fortaleza.

+ TRÊS FILMES

CHRISTINE, O CARRO ASSASSINO (Christine)

Não lembro se vi CHRISTINE, O CARRO ASSASSINO (1983) pela primeira vez na televisão ou em VHS. Mas o fato é que na primeira vez que vi fiquei encantado. Talvez mais do que agora, na revisão, embora continue sendo um dos grandes trabalhos do John Carpenter, que torna crível (talvez não tanto quanto Stephen King, mas nunca li o romance) a ideia de um carro maligno que tem vida própria e não apenas mata, mas também modifica a personalidade de um rapaz tipicamente nerd e que costuma sofrer agressões dos bullies na escola, mas que se converte num bully também já a partir do primeiro contato com Christine, o carro velho e abandonado que ele compra e restaura. O filme trata de um tipo de masculinidade muito associada à violência e da relação quase sexual que o homem contemporâneo tem por carros – isso é ainda mais explícito nos Estados Unidos. O filme pertence a uma das fases mais brilhantes da filmografia de Carpenter – ele vinha de pelo menos três joias consecutivas: A BRUMA ASSASSINA (1980), FUGA DE NOVA YORK (1981) e O ENIGMA DO OUTRO MUNDO (1982). Depois tem gente que não entende a idolatria que muitos têm por seu cinema. Visto no box em Blu-Ray Carpenter Essencial.

O CHICOTE E O CORPO / DRÁCULA, O VAMPIRO DO SEXO (La Frusta e il Corpo)

O livro da Versátil sobre pérolas do cinema de horror da coleção me lembrou de que já fazia muito tempo da última vez que havia visto O CHICOTE E O CORPO (1963) – foi em 2007 a primeira vez que vi (com áudio em italiano, que parece ser bem melhor que esse áudio em inglês que experienciei agora, e que acabou atrapalhando um pouco a imersão, não sei dizer o porquê). É talvez o mais estranho dos filmes de Mario Bava, uma história de amor doentia situada num castelo à beira-mar, que tem uma cadência um tanto irregular, mas com aquelas imagens de impacto, como a cena do Christopher Lee dentro do caixão sendo levado por aqueles homens de capuzes vermelhos, ou as vezes em que ele chicoteia a hesitante mas apaixonada mulher vivida por uma Daliah Lavi com seus olhos tão expressivos quanto a Barbara Steele de A MALDIÇÃO DO DEMÔNIO (1960). Seu horror, seguido de dor, prazer, êxtase e finalmente entrega diante de seu amante/torturador é de deixar a gente desconcertado. E há uma música que parece balançar ao ritmo das ondas do mar e faz ressoar aquele romance contado junto com algo parecido com um whodunit sobrenatural com aquela fotografia em cores fantástica, com destaque para o verde e o vermelho, a morte e a paixão.

A CURA (Cure)

Kiysohi Kurosawa é um dos mais interessantes cineastas da atualidade. Já o era lá nos anos 1990, mas eu nem sabia de sua existência. Só a partir dos anos 2000 que seu nome passou a ser mais celebrado, principalmente por seus filmes de terror ou thrillers, embora ele costume enveredar por outros gêneros também. A CURA (1997) é uma de suas maiores obras. É tão enigmático quanto KAIRO (2001), mas com outro tom, de investigação policial e com menos imagens escuras. O mal se manifesta às claras, ou na tonalidade cinzenta da fotografia. Os policiais investigam assassinatos muito estranhos e muito semelhantes, em que os assassinos não lembram suas motivações. Aos poucos, o filme vai encaixando as peças e apresentando novos players para o jogo, como um sujeito que se diz desmemoriado. Sua primeira aparição, na praia, já traz um senso de medo que se manifestará em diversos momentos ao longo da narrativa, que em muitos momentos parece um sonho ou pesadelo. O andamento é lento, mas a montagem é bem ágil, se prestarmos atenção nos movimentos de câmera, nos ângulos e nos cortes. O que vemos é um dos filmes de horror mais estranhos e originais das últimas décadas.

quinta-feira, julho 04, 2024

HERE



Alguns filmes são tão sutis que clamam por uma revisão imediata. No caso de HERE (2023), primeiro filme do cineasta belga Bas Devos que chega aos cinemas brasileiros, essa necessidade me surgiu quase que imediatamente. É como se fosse um objeto etéreo, muito pouco palpável, e talvez por isso mesmo muito atraente. O fato de ter uma duração curta (apenas 84 minutos) e terminar de maneira aparentemente brusca, ainda que perfeita, contribui para que queiramos adentrar seu mundo mais uma vez.

Talvez seja o caso de conhecer mais a poética de Devos para entendê-lo melhor, mas acredito que ter este filme como porta de entrada para seu cinema já é uma alegria. Ainda mais vendo numa sala tão especial quanto o Cinema do Dragão. O outro filme do diretor lançado no Brasil, TRÓPICO FANTASMA (2019), foi direto para o streaming, e acho uma pena que ver filmes em casa ultimamente esteja sendo uma tarefa um pouco mais complicada para mim, do ponto de vista da concentração.

O título do filme, HERE (“aqui”), pode se referir tanto ao lugar onde o protagonista masculino Stefan (Stefan Gota) pretende ficar, sua cidade natal Bruxelas (há uma repetição em sua fala de que  muito provavelmente ficará mais que o tempo de férias), quanto a uma forma de presentear alguém – “aqui, pra você”. Essa segunda opção me parece mais poética, e tem um pouco a ver com as sopas caseiras que ele costuma presentear para os amigos. Um presente artesanal parece ter maior valor que um  comprado numa loja.

HERE não é um filme com ênfase na narração, embora haja, sim, uma história. Mas ela é muito menos importante que as sensações que o verde e os sons da natureza provocam. O verde aqui chama mais atenção que nos filmes de Apichatpong Weerasethakul e ele é mágico, misterioso. É no verde que acontecem as cenas mais belas entre os dois protagonistas. São cenas tão sutis que até parece que nada aconteceu. Há uma cena, por exemplo, do tipo “piscou, perdeu”, em que algo brilha nas mãos do protagonista, como que enfatizando o caráter fantástico do filme, sem, no entanto, abrir mão do pé no chão. Afinal, a mágica presente em HERE é uma mágica presente na natureza, no mundo material.

Há um uso do extraplano magnífico, e uma outra cena, seguinte, com o som da chuva e uma iluminação singular que nem sei explicar direito o que me fez sentir. Acontece na cena em que o casal, Stefan e Shuxiu (Lyio Gong), depois de passarem um tempo na floresta, esperam a chuva passar abrigados debaixo de uma árvore. Aliás, a chuva desempenha um papel muito importante no filme. Vale lembrar da cena em que Stefan vai parar no restaurante chinês e é atendido justamente por Shuxiu.

Filmado originalmente em 16 mm, há uma textura muito particular em HERE que faz uma transição linda entre o ambiente mais urbano do início para o espaço rural e verdejante do desenvolvimento e conclusão. E o fato de o rapaz se relacionar com uma cientista e professora pesquisadora de musgos pode dizer muito sobre esse seu encontro com a calma, a paz, o amor, sendo ele alguém que sofre com insônia. Pena que vi o filme ainda em estado de saúde não muito apropriado. Ainda assim ele me encantou e me encanta cada vez mais, à medida que volto a pensar nele.

+ TRÊS FILMES

CAPTURAR O FANTASMA

A trajetória de Davi Mello é fascinante e deveria ser mais conhecida e reconhecida, por mais que saibamos que o curta-metragem ainda seja uma espécie de formato mais marginal em sua dificuldade de aproximação com um público maior. Depois do viajante PROMESSA DE UM AMOR SELVAGEM (2022), que conta com uma produção mais cara e caprichada, temos um filme menor, com apenas três atores em cena num espaço fechado, naquilo que parece ser uma cozinha. CAPTURAR O FANTASMA (2024) é talvez o seu filme mais lynchiano (inclusive pelo uso do som), por trazer uma espécie de medo de algo que não sabemos muito bem o que é, o que eu costumo chamar de medo irracional, embora esse termo não seja assim tão feliz. Na verdade, pela primeira fala, é possível acreditar que o filme seria sobre ver fantasmas  é o que a personagem de Yasmin Gomes diz, sobre apenas as mulheres de sua família terem esse dom. E então a cena corta para Gilda Nomacce, essa atriz incrível que já participou de outro excelente trabalho do realizador, AS VIAJANTES (2019), e que acrescenta mais mistério em seu segmento. Já o segmento de Raimundo Moura é o que mais se aproxima do espectador, em sua falta de compreensão do medo que sente. Certamente é um filme que ganha mais em revisões, de modo a se perceber mais atentamente as falas, certas palavras-chave, os gestos e o não-dito.

VERISSIMO

O segundo longa de Angelo Defanti, depois da adaptação do romance O Clube dos Anjos, de Luís Fernando Verissimo, em 2020, é um olhar para o próprio Verissimo, esse autor celebrado da literatura brasileira, mais especificamente nos dias que antecedem seu aniversário de 80 anos. Como alguém de poucas palavras, pelo menos em conversas e entrevistas, o escritor seria um personagem complicadíssimo para encabeçar um documentário em que ele é o protagonista. No entanto, é esse aspecto de sua personalidade que faz com que esse filme se torne único. Como se fôssemos convidados a desvendar o mistério que é a mente desse senhor. Às vezes a impressão que dá, vendo VERISSIMO (2024), é que as pessoas se aproximam dele apenas por ele ser quem é; sendo um anônimo, talvez não fosse atraente o suficiente. O filme tem alguns momentos de humor sutil, bem característico da personalidade do escritor. A opção pelo registro de observação das imagens escolhidas na mesa de montagem foi acertada, no sentido de que se torna um filme em que os espectadores vão acessar de maneira ainda mais pessoal.

AS LINHAS DA MINHA MÃO

Há uma cena em AS LINHAS DA MINHA MÃO (2023) em que Viviane de Cássia Ferreira conta de uma experiência que teve na França. Nesse instante, o olhar cansado de alguém que sofre em se equilibrar entre a sanidade e a perda de controle mental parece mudar. Ela fica bonita, até remoça, como diria Chico Buarque. É como se ela tivesse se transportado para aquele evento de seu passado. E o mais incrível é que lá perto do final ela fala de algo envolvendo realidades alternativas, quando cita um presente que recebeu de Tom Jobim. A opção de João Dumans (um dos diretores de ARÁBIA, 2017) por cortes aparentemente independentes e às vezes bem diferentes entre si para formar capítulos divididos por telas pretas dão ao filme certa pluralidade para o espectador entender e se solidarizar com Viviane. Há outro "capítulo" muito bonito, que é quando ela conversa com um amigo, enquanto fuma e bebe uma cerveja. Dumans parece perceber que a personagem em si já é meio caminho andado para o sucesso de seu filme. Ainda que "sucesso" seja um termo bem relativo, principalmente em se tratando de filmes "pequenos" como este.