domingo, agosto 21, 2016

CORAÇÃO DE CACHORRO (Heart of a Dog)



Laurie Anderson, uma artista que já trafegou por tantos diferentes tipos de arte, abre seu coração e expõe, com seu talento, seus sentimentos de luto sobre a perda de sua cachorra, Lolabelle, e sobre outras perdas que a afligiram, de uma maneira ou de outra, como a perda da mãe ou o sentimento que atingiu todos os americanos depois do ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. A associação que a diretora faz com sua cachorra conscientizando-se sobre ser presa de um falcão em determinada cena é bem inteligente.

CORAÇÃO DE CACHORRO (2015) é um desses trabalhos singulares, que adota um tom ensaístico que até lembra um pouco o de Jean-Luc Godard em ADEUS À LINGUAGEM, mas que tem uma identidade bem própria, até por ser mais acessível e as referências a filósofos como Kirkegaarde e Wittgenstein serem mais ilustrativas. Não funcionam exatamente como hipertextos, já que o que mais importa é o sentimento das histórias de Anderson.

E essas histórias são fascinantes. Não apenas a de Lolabelle, os seus últimos dias na Terra e a ligação que a diretora faz, de modo fascinante com o Livro Tibetano dos Mortos, entre outros momentos memoráveis; mas também o que ela fala sobre momentos de sua infância e adolescência, experiências que ela costura de maneira muito sutil e elegante ao longo da narrativa.

Às vezes ficamos um pouco confusos sobre o porquê de determinados assuntos serem abordados, como a questão das câmeras escondidas, do quanto os Estados Unidos guardam de dados sobre todos os cidadãos americanos, mas aos poucos vamos percebendo o quanto isso se liga com a história de Lolabelle. Ainda assim, acredito que algumas coisas ficam um pouco soltas na teia que ela constrói, como a morte dos irmãos gêmeos amigos dela. Ainda assim, isso ajuda a passar a ideia de que o filme adota um fluxo de consciência, semelhante ao usado por escritores como Virginia Woolf, James Joyce e Clarice Lispector. Esse deixar fluir o pensamento, ainda que possa ser apenas aparente, é um dos maiores trunfos do filme.

Outra coisa: a mistura de música (também de autoria de Anderson, exceto a canção final, de Lou Reed) com poesia escrita e também visual de CORAÇÃO DE CACHORRO é admirável, bem como a delicadeza com que ela trata assuntos tão espinhosos, como o fato de ela não gostar da própria mãe e não saber o que dizer para ela quando ela está prestes a morrer. No fim das contas, a reconciliação que ela faz com a mãe, a partir de uma forte lembrança de infância acaba sendo um dos momentos mais líricos e emocionantes do filme.

No mais, além de o uso da fotografia e do som serem tão sofisticados, há tanta coisa que o filme nos ensina ou nos lembra: sobre o bardo, sobre o olhar dos cães, sobre as lembranças que nós mesmos tratamos de apagar por serem muito dolorosas, e o mais bonito de tudo: sobre a morte ter uma ligação direta com o amor. Isso é maravilhoso.

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