quarta-feira, outubro 28, 2009

A RELIGIOSA (La Religieuse)



Em alguns momentos de nossas vidas nos encontramos tão desolados que parece que estamos sozinhos, sem Deus, sem ninguém, completamente abandonados à nossa própria sorte. E essa sorte não é das melhores. Posso até estar falando sobre mim, do meu atual momento, mas estou me referindo à personagem de Anna Karina em A RELIGIOSA (1966), obra-prima de Jacques Rivette, cineasta do qual conheço pouco, mas o pouco que conheço é brilhante, o que me leva a crer que ele é um dos gigantes do cinema mundial. Anna Karina, a musa da primeira e mais conhecida fase da filmografia de Jean-Luc Godard, interpreta Suzanne, uma jovem que é entregue a um convento para ser freira contra a sua vontade. No dia dos seus votos de castidade, pobreza e obediência, ela os rejeita. Isso provoca escândalo em sua família, que já havia gastado dinheiro com os dotes das duas outras filhas e que precisava do dinheiro da Igreja, que receberia entregando a filha ao convento. A ida de Suzanne para um convento seria também uma forma de expurgar o pecado de sua mãe - Suzanne seria fruto de um adultério. Sem ter nenhuma outra saída a não ser aceitar o destino cruel, ela finalmente aceita a vida de freira. Mas só inicialmente, pois cada vez mais ela se sente como uma presidiária e passa a lutar por sua liberdade, chegando a contratar os serviços de um advogado.

O filme é a adaptação de um romance inacabado de Denis Diderot, escritor e filósofo do século XVIII que ficou conhecido por suas ideias polêmicas sobre a moral de sua época. Alguns de seus livros foram queimados ou banidos até alguns anos após a sua morte. Como o romance não chegou a ser finalizado por seu autor, Rivette criou um final que julgou ser coerente com a trajetória da angustiada jovem. E se o filme inteiro tem uma narrativa mais acadêmica, o final drástico até lembra o cinema de Robert Bresson. Inclusive, de Bresson o filme de Rivette parece ter herdado o pessimismo, impregnado em toda a obra. Em certo momento do filme, um dos padres diz: "já estamos todos condenados mesmo". E o espírito do filme é mais ou menos esse.

Diferente do que se espera encontrar num filme sobre freiras, já que a maioria é do subgênero nunsploitation, o fato de A RELIGIOSA ser mais sério, não apresentando nenhuma cena de nudez e nenhuma abordagem propositalmente fetichista ou sensacionalista, faz com que ele seja até hoje um exemplar maldito pela Igreja Católica. Na época de seu lançamento, o filme também encontrou obstáculos e foi proibido para menores de 18 anos na França. Nos Estados Unidos, o filme só estreou em 1971, mas não sei dizer se foi por questões políticas ou religiosas. A RELIGIOSA também destoa de outras obras de Rivette, que são mais vanguardistas, mais experimentais. E algumas delas de duração bem longa. Trata-se, talvez, do trabalho mais acessível do diretor, o que o torna ainda mais "perigoso", se visto como filme-denúncia. O fato de a personagem de Anna Karina ser pura, enquanto todo o corpo da igreja é perverso, sádico ou hipócrita, contribui ainda mais para sua força.

Não posso esquecer de pelo menos mencionar a direção discreta e segura de Rivette, a bela fotografia do filme, as excepcionais tomadas nos corredores dos conventos ou aquelas que mostram as grades separando o mundo no convento do mundo exterior.

P.S.: Está no ar a nova edição da Zingu!, que completa três anos este mês e está de cara nova. A edição é toda dedicada a Carlão Reichenbach e conta com um texto meu, sobre ANJOS DO ARRABALDE. Talvez seja o melhor momento da história da revista.

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