Vendo TUDO BEM (1978) como homenagem a Arnaldo Jabor, falecido na última terça-feira, dia 15, percebi o quanto me falta ainda para compreender o seu universo, a sua poética. E como o filme foi realizado ainda com a ditadura civil-militar limitando as liberdades de expressão, há muita coisa cifrada. Ainda assim, Jabor já havia tido a coragem de fazer um documentário que deixava explícita a falta de consciência política da classe média e das classes menos desfavorecidas do que estava de fato acontecendo no Brasil. Refiro-me ao A OPINIÃO PÚBLICA (1967), um filme que só passou pela censura por não ser uma obra abertamente contrária ao regime, deixando o espectador tirar suas próprias conclusões a partir das opiniões das pessoas entrevistadas.
Já em TUDO BEM, sendo uma obra ficcional, Jabor estava em um território mais perigoso. Vindo de duas ótimas adaptações de Nelson Rodrigues, TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA (1972) e O CASAMENTO (1975), o cineasta estava em alta para continuar fazendo suas crônicas ferinas da classe média brasileira, tão cheia de hipocrisia e falso moralismo. Deixar de ser um “especialista” em Nelson Rodrigues e buscar sua própria voz foi um passo e tanto em TUDO BEM, que ele escreveu em parceria com o roteirista Leopoldo Serran.
O resultado é uma obra caótica (no bom sentido), uma verdadeira zona – em alguns momentos lembra teatro pelo estilo carregado da interpretação, construindo caricaturas dos seus personagens, como se estivesse usando uma lente que aumenta suas qualidades e seus defeitos. Na trama, uma família de classe média um tanto decadente convive com um grupo de pedreiros que estão trabalhando na reforma do apartamento. Junte-se a isso a empregada doméstica rezadeira (Maria Sílvia) e uma nova contratada, vindo da prostituição (Zezé Motta) – que é o lugar onde ela preferia estar, em vez de trabalhar em “casa de madame”.
Paulo Gracindo está ótimo como o patriarca frustrado pelo fantasma da impotência, ao mesmo tempo que fala com seus três fantasmas camaradas, que lhe dão dicas na hora de escrever textos ou cartas. Uma das coisas que mais chamou a atenção para mim nessas conversas do personagem de Gracindo com os três fantasmas foi a distância generacional cada vez mais abissal dessas pessoas com a geração dos dias de hoje, seja no modo de falar quanto na cultura adquira. Talvez Jabor, um homem que vejo como de espírito mais moderno, por ser da geração do Cinema Novo, quisesse apresentar aqueles homens como seres antiquados.
Enquanto isso, a esposa (Fernanda Montenegro), sentindo falta do sexo com o marido, acredita que ele a está traindo com outra. Em certo momento, ela chega até a apelar para a ajuda de sua empregada rezadeira, para arranjar uma forma de usar a magia ou o sobrenatural para seduzi-lo, fazer com que ele sinta desejo de ir para a cama com ela. Aliás, uma das coisas que chama bastante atenção em TUDO BEM é o modo como a religiosidade também entra na equação, ajudando a tornar aquele ambiente ainda mais caótico do que já aparentava desde o início, mas também mais representativo do Brasil.
Há uma cena que define bem essa confusão bem humorada, que é a que reúne um monte de gente no banheiro se molhando com o vazamento de um cano. Engraçado que antes dessa cena, eu já estava achando que havia no filme muitos paralelos com O ANJO EXTERMINADOR, de Luis Buñuel, mas no filme de Buñuel está presente na casa apenas a burguesia, enquanto Jabor une a classe média e os pobres. Os pobres que são bons, como afirma em diálogo muito engraçado e irônico a personagem de Montenegro, no momento em que os pedreiros estão comendo seus humildes almoços em suas marmitas. É muito melhor comer essa comida simples do que comer nesses restaurantes de luxo, diz ela, depois de tentar se desculpar por não oferecer almoço para eles.
Há um outro momento memorável nesse sentido: quando a família de migrantes de Piauí (José Dumont), um dos pedreiros, aparece na casa dos ricos porque foram enxotados de onde estavam por não ter como pagar o aluguel. Piauí, ao dizer que vai levá-los para morar debaixo da ponte, desperta um pouco da generosidade da matriarca, mas não o suficiente para aguentá-los por mais do que um dia no apartamento. Logo chamam o síndico do prédio para mandá-los embora.
Acredito que este é um dos poucos filmes brasileiros que mistura de maneira tão explícita as classes abastadas com a classe miserável dentro de um mesmo ambiente. Tudo isso com uma direção de arte e fotografia que privilegiam a sujeira. Coisas do cinema brasileiro da época, que tinha essa função de incomodar nos tempos da ditadura, fazendo aquela contraposição com as telenovelas da Rede Globo, que mostravam apenas pessoas bonitas, ricas e maquiavam a realidade brasileira.
Quanto a Arnaldo Jabor, especificamente, houve quem dissesse que ele já “tinha morrido” quando deixou o cinema, com o fim da Embrafilme, e passou a trabalhar como comentarista político (com viés direitista) e a escrever crônicas políticas e afetivas no jornal O Globo, de 1995 a 2016. Entre essas crônicas, há uma que muito me emocionou. Já chorei em várias vezes que a li. Ela aparece (creio que sem o parágrafo inicial original) neste LINK. Só por isso, por essa sensibilidade em lidar com as dores, e também pelo cinema, claro, Jabor merece nosso respeito e consideração.
+ DOIS FILMES
PERDOA-ME POR ME TRAÍRES
Eis o caso de adaptação que já denuncia a origem teatral. Há algo na conclusão do filme que funcionaria melhor no teatro do que no cinema. Nas duas conclusões, por assim dizer. O melhor de PERDOA-ME POR ME TRAÍRES (1983) está no grande flashback, que conta a história de Judite (Vera Fischer) e seu marido ciumento (Nuno Leal Maia). É curioso como o ciúme acaba lembrando o filme do Claude Chabrol recentemente revisto (CIÚME – O INFERNO DO AMOR POSSESSIVO), mas a obra de Nelson Rodrigues segue um outro caminho, tão perturbador quanto. Quanto à Vera, ela está numa beleza tão divina que me peguei pensando se ela não seria a mais bela de todas as estrelas do nosso cinema. A história inicial, encabeçada por Lídia Brondi, por sua vez, não tem força, funcionando mais como objeto de vingança, ao final. No mais, há também que se destacar o brilhantismo de Nelson em usar frases geniais, como "amar é ser fiel a quem nos trai", entre outras. Braz Chediak se saiu bem melhor no antológico BONITINHA, MAS ORDINÁRIA OU OTTO LARA REZENDE (1981).
A FOME DE LÁZARO
Um filme que aposta mais nas imagens do que nos diálogos. Aliás, praticamente não há diálogos no curta A FOME DE LÁZARO (2020). O que ouvimos de vozes humanas são as rezas. As escolhas que o diretor Diego Benevides faz em seu trabalho de estreia são muito acertadas, sabendo muito bem o que quer na montagem para construir a narrativa, cujo momento máximo está no banquete oferecido em promessa a São Lázaro. O modo como são vistos de perto tanto os cães quanto os sertanejos aparece como uma forma de unificá-los, de colocarem a eles (e a nós) numa posição de igualdade com os animais. Muito interessante.
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