quinta-feira, março 28, 2019

PAIXÃO E ACASO

A vida de cinéfilo só não deve ser tão angustiante quanto a vida de um bibliófilo, ou seja lá como se chamam os amantes de livros de literatura. Afinal, ler um romance, um livro de contos ou algo de outra natureza costuma levar bem mais tempo do que ver um filme, que em geral tem menos de duas horas de duração. Ainda assim, um cinéfilo, ainda mais aquele que vive atarefado com um trabalho que consome muito de seu tempo e de sua energia, acaba ficando angustiado com o fato de não conseguir preencher lacunas fundamentais, como a obra de cineastas importantes, tanto do Brasil quanto de outros países.

Escrevo isso lamentando o fato de não ter visto a grande maioria dos filmes de um cineasta de quem gosto muito e que, infelizmente, foi para outro plano nessa semana, o carioca Domingos de Oliveira, autor de clássicos como TODAS AS MULHERES DO MUNDO (1966) e EDU, CORAÇÃO DE OURO (1968). Uma pena que, mesmo com seu retorno às produções tão pessoais com AMORES (1998), seguindo a retomada do cinema brasileiro na década de 90, ele não tenha alcançado uma popularidade necessária para ter um reconhecimento de um público maior do que o pequeno círculo de cinéfilos que se importam com o cinema brasileiro de baixo orçamento. Em Fortaleza, por exemplo, o último filme dele que entrou em cartaz foi TODO MUNDO TEM PROBLEMAS SEXUAIS (2008), e lá se vai uma década.

Assim, com a minha enorme lacuna, quis homenageá-lo vendo pelo menos um filme inédito seu. No caso, o que o destino reservou para mim foi PAIXÃO E ACASO (2012), o primeiro que completou o download, dentre os cinco que tentei pegar. Trata-se de um de seus trabalhos menores, com aquela cara de produção barata, mas feito com tanto carinho e esmero que fica difícil não se deliciar, até por ser do gênero comédia romântica intelectual.

No filme, Vanessa Gerbelli, luminosa, faz o papel de uma psicanalista que se apaixona primeiramente por um rapaz e depois pelo pai do rapaz. Isso depois de ter sido visitada pelo espírito de seu pai, que já lhe antecipara que seu período longe das paixões estaria prestes a ter um fim. De repente, ela se vê numa posição de não conseguir escolher apenas um dos homens e trata de organizar um horário de encontro com eles, adotando a mentira como rotina diária.

O filme começa com os créditos em tom apaixonado e um tanto exagerado e de cores fortes, lembrando um pouco Almodóvar, e trazendo a canção “A vida é confusão”, de Nico Nicolaiewsky, um belo exemplar de um romantismo que não tem medo de parecer cafona. A canção, aliás, retorna na narrativa em um dos momentos mais belos, que é o do beijo da protagonista com o rapaz, na livraria.

Se PAIXÃO E ACASO não tem o mesmo sabor de despedida ou de celebração à própria história do cineasta como o filme-testamento BR 716 (2016), traz uma ciranda de amores deliciosa e que é a cara de Oliveira, tão preocupado e interessado nas questões do coração. Viva Domingos de Oliveira e seu cinema do afeto!

+ TRÊS FILMES

SUEÑO FLORIANÓPOLIS

Muito boa esta comédia alto astral sobre família argentina passando férias em Florianópolis. Ver o filme é como se estivéssemos passando férias com eles e nos divertindo, embora eu preferisse que outros sentimentos além da alegria também fossem mais explorados, já que há muitas emoções em jogo nas cirandas amorosas. Direção: Ana Katz. Ano: 2018.

UM AMOR INESPERADO (El Amor Menos Pensado)

Nós, brasileiros, estamos precisando de um filme tão bom como esse e que atinja um grande público, junto. E com um casal tão bom quanto Ricardo Darín e Mercedes Morán. UM AMOR INESPERADO não é um filme que recusa o cafona: ele abraça, inclusive nas cores bem vivas e nas canções (tem uma canção brasileira que me deixou surpreso e emocionado!). Talvez falte um pouco mais de emoção no modo como nos pega na torcida pelo casal retornar, mas do jeito que ficou, um tanto assim contido, ficou muito bonito. E mal sentimos a duração, de tão interessados que ficamos na trajetória dos dois. Sem falar que há várias cenas bem engraçadas. Direção: Juan Vera. Ano: 2018.

EMMA E AS CORES DA VIDA (Il Colore Nascosto delle Cose)

Muito gratificante ver o cinema italiano se reerguendo em filmes pequenos e bonitos como esse, que pouca gente viu. Quase não li crítica ou repercussão a respeito, mesmo sendo de um diretor relativamente conhecido. Valeria Golino está muito boa e o sujeito que faz o rapaz mulherengo também é ótimo. Criativo e sensível o jogo de enquadramentos usando janelas diferentes, a partir do sentimento geral do filme. Direção: Silvio Soldini. Ano: 2017.

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