domingo, março 30, 2014

ENTRE NÓS



Uma pena que um filme tão bom quanto ENTRE NÓS (2013) acabe espremido dentro de um circuitão ingrato, que dá pouco ou nenhum espaço a filmes menores. Por mais que seja um lançamento da Downtown, que costuma lançar produções que abarcam um maior número de espectadores que os filmes independentes, lançados no circuito alternativo, e da presença de vários atores e atrizes conhecidos da televisão, o filme de Paulo Morelli (CIDADE DOS HOMENS, 2007) é um exemplo de cuidado e atenção aos detalhes para a construção de uma obra que carrega sentimentos intensos.

A história começa no ano de 1992, quando uma turma de amigos se reúne para escrever cartas para si mesmos e colocá-las em uma caixa para ser enterrada. O objetivo é abri-las dez anos depois e ver o que mudou em suas vidas. Uma espécie de cápsula do tempo. Todos aqueles amigos tinham sonhos de se tornarem escritores. Acontece, porém, uma tragédia: um deles morre em um acidente durante aquela reunião. E só somos apresentados aos personagens novamente exatamente dez anos depois, quando eles retornam para ler as tais cartas.

O fato de haver uma reunião entre amigos e de um deles não estar mais vivo acaba remetendo a O REENCONTRO, de Lawrence Kasdan, um drama denso sobre amizade, morte e conflitos, que hoje é referência. ENTRE NÓS até poderia ser o nosso O REENCONTRO, mas a atmosfera do filme é mais pesada: há uma culpa que permeia o personagem de Caio Blat, que interpreta um homem que se tornou famoso por causa de um romance de sucesso e também teve a sorte de casar com a mulher mais bonita da turma, vivida por Carolina Dieckmann.

A atriz costuma se dedicar pouco ao cinema e, embora esteja bem no filme, seu desempenho acaba sendo eclipsado pelo sempre brilhante Júlio Andrade, que interpreta um crítico literário impiedoso, pelo já citado Caio Blat, pela solteira do grupo vivida por Maria Ribeiro e até mesmo por Paulo Vilhena, que faz o papel do rapaz depressivo do grupo, que lamenta não ter tido a mesma sorte do personagem de Blat. No entanto, há uma cena em especial com ela que é um dos momentos mais fortes do filme.

Em meio a uma lavagem de roupa suja entre eles, ressentimentos vêm à tona, mas o principal ponto tem a ver os escritos do membro mais inteligente do grupo, que não está presente fisicamente àquele encontro, mas cuja sombra (ou luz) paira sobre quase todos. O trabalho de Morelli na construção dos personagens e a forma como ele desenvolve cada um deles ao longo da duração média de um longa-metragem é admirável.

Para que isso fosse conseguido, o diretor e seu filho Pedro Morelli (creditado como codiretor) confinaram todos os atores em um sítio na Serra da Mantiqueira durante 15 dias. Foi importante para que eles, que já são amigos em sua maioria, pudessem construir seus personagens em regime de imersão. Morelli também surpreende ao utilizar recursos cinematográficos que funcionam muito bem para trabalhar uma atmosfera de suspense psicológico, com uso de muitos close-ups, dando ao filme um caráter bem intimista, uma fotografia com mais sombras do que luz, um inteligente uso do focar e desfocar dentro de uma janela scope que torna o filme ainda mais bonito e convidativo para uma apreciação em uma sala de cinema.

Sem dúvida, uma das melhores surpresas de nosso cinema este ano. Até por não se esperar muito de Morelli. ENTRE NÓS mostra que 2014, se não está ainda melhor que o ano passado em lançamentos estrangeiros, já se prova superior em se tratando de filmes brasileiros.

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