segunda-feira, fevereiro 21, 2011

BIUTIFUL



Sábado à noite, estava indo em direção à casa de minha amiga Valéria e atravessava a Avenida da Universidade. Estava com os vidros do carro fechados e o ar condicionado ligado. Ía à festa de formatura do nosso amigo Manéu. Há um sujeito que fica mendigando ali pela avenida. Ele só tem uma perna, mas não usa muleta. Consegue se virar muito bem, pulando como um Saci. Ele vai de carro em carro, sem fazer cara de coitadinho. Mas às vezes, principalmente quando está chovendo forte e ele fica exatamente no meio da avenida sentado, como se quisesse que algum carro o atropelasse, é que eu vejo que ele pode estar mesmo sofrendo.

Ontem, enquanto ia à noite para essa festa, parei no sinal e fiquei pensando na minha vida, que andou me pregando umas peças nos últimos dias. Estava tão pensativo, que bastou ele bater no vidro do carro que eu tomei um daqueles sustos, como de filme de terror. Assustei-me e fiquei com raiva dele. Disse que não tinha dinheiro. Hoje passei pelo mesmo lugar no final da tarde. Lá estava ele de novo e o sinal novamente fecha. Eu estava com os vidros baixos e ouvindo Roberto Carlos. Aliás, tenho ouvido Roberto desde sexta à noite, usando quase como música de fossa. Dessa vez, eu dei uns trocados a ele. E ele percebeu que eu estava ouvindo Roberto e fez o comentário: "Ah, ele aí perdeu a perna num acidente de trem, não foi?". Eu respondi afirmativamente. Ele trocou de assunto, falando de um apartamento que estava ficando bonito do outro lado da rua. O sinal abriu. Eu me despedi dele e fiquei pensando no fato de ele ter se identificado com um artista tão famoso poder servir de alento para a sua existência.

Toda essa introdução um tanto deprê até combina com o filme em questão: BIUTIFUL (2010), o quarto longa-metragem do mexicano Alejandro González Iñarritú. Trata-se de um desses filmes que abordam desgraças, como já virou característica da obra do cineasta. Aliás, essa é uma das razões pelo fato de ele ter se tornado tão mal visto entre boa parte da crítica. Eu não tenho muito do que reclamar de seu cinema. Gosto até de sua obra mais fraca, BABEL (2006), e sou fã de AMORES BRUTOS (2000) e 21 GRAMAS (2003).

BIUTIFUL marca o desligamento de Iñarritú com seu antigo companheiro, o roteirista Guillermo Arriaga. Saem de cena os enredos múltiplos e costuradas de forma insólita, mas permanece a desgraça na vida de seus personagens. A começar pelo protagonista, vivido por Javier Bardem. Ele interpreta um homem que ganha dinheiro financiando o trabalho ilegal de imigrantes vindos da Ásia e da África em Barcelona. Ele também ganha uns trocados dos familiares de recém-falecidos, ouvindo o que eles pensaram pouco antes de partir. A pior desgraça da vida do personagem é que ele está com câncer de próstata num estado avançadíssimo. Ele tem no máximo dois meses de vida. Mas ele tenta negar isso, já que ele tem uma vontade muito grande de viver. Mesmo não tendo exatamente uma vida exemplar, já que tem que cuidar sozinho de seus dois filhos, pois a mãe do garotinho e da adolescente tem problemas de alcoolismo e é maníaco-depressiva.

Ao contrário do que eu esperava, e apesar de carregar bastante no sofrimento não apenas do protagonista, mas também de sua esposa, dos filhos e dos imigrantes e familiares, BIUTIFUL não é um filme melodramático. Iñarritú prefere um registro mais centrado na dor do que na comiseração ou na utilização de recursos mais vulgares de provocar o choro no espectador. Trata-se de um filme mais espiritual, mais de reflexão sobre a vida e a morte do que um filme sobre o lamentar a morte ou de valorização da vida, como geralmente acontece. Há elementos do cinema fantástico em alguns momentos e isso acaba destacando o filme dos demais. É um trabalho que merece o respeito do público. Sem falar que conta com mais uma ótima interpretação do mais versátil ator da atualidade.

BIUTIFUL recebeu duas indicações ao prêmio da Academia: ator (Javier Bardem) e melhor filme de língua estrangeira (concorrendo pelo México).

P.S.: Está no ar a edição #42 da Revista Zingu! O destaque do mês é o Dossiê Alfredo Sterheim. E que bom que vários filmes dele são resenhados. Vai servir de estímulo para que eu finalmente veja alguns dele que eu tenho guardados há algum tempo. Há também uma longa entrevista com o cineasta e crítico, além de vários depoimentos. Uma das melhores edições da Zingu!, hein!

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